[LIVROS] Leve-Me Com Você: A sensibilidade de uma história sobre perda, dor e luto

[LIVROS] Leve-Me Com Você: A sensibilidade de uma história sobre perda, dor e luto

Este ano tem sido grandioso em termos de lançamentos literários. Porém, os números de lançamentos só tomam uma proporção absurda quando percebemos que muitos desses livros estão sendo escritos por mulheres. E por que isso é tão importante afinal?

Não é apenas porque ler mulheres é um ato político em meio a uma literatura misógina, dominada pelo famoso fantasma do cânone. No caso de Catherine Ryan Hyde, autora que tivemos o prazer de conhecer neste ano, é a possibilidade de ver personagens masculinos construídos de uma maneira única, sem a masculinidade tóxica que envolve os homens. Nós também somos responsáveis pelos personagens masculinos que escrevemos e amamos.

Leve-Me Com Você, lançado pela DarkSide Books, é uma história tão dura quanto as rochas do Parque Nacional de Yellowstone, com a sensibilidade de uma autora que sabe retratar a perda, a dor e o luto de uma forma muito verdadeira. Catherine nos convida a dar um passeio a um dos medos mais primitivos do homem: a morte.

Atenção! Este texto contém spoilers!

A autora que quebra a quarta parede

Uma das discussões mais acirradas em termos de literatura é aquela diz respeito ao tão famigerado cânone. Afinal o que é o cânone? Trata-se de uma convenção, digamos assim, que dita quais são os clássicos a serem lidos. Por exemplo, Machado de Assis é um autor muito respeitado na literatura brasileira e faz parte do cânone. Porém, o buraco é mais embaixo. Na verdade, o cânone é ditado por homens brancos, héteros e velhos, que insistem em excluir minorias da literatura. O fato de Conceição Evaristo ter perdido uma cadeira na ABL (Academia Brasileira de Letras) para Cacá Diegues, um cineasta, diz muito sobre isso.

Muitas pessoas que seguem a palavra do cânone acreditam que literatura de massa não tem qualidade. Isso é um absurdo. Ao olharmos a sensibilidade e o poder das narrativas propostas por J.K Rowling e John Green, por exemplo, percebemos que não precisamos apenas de Eça de Queirós para nos fazer refletir sobre o amor e a sociedade.

O que isso tem a ver com Catherine Ryan Hyde?, você nos pergunta. Tudo! Ela é autora de inúmeros best-sellers, começando pelo famoso “A Corrente do Bem”, que até virou filme. A qualidade de sua escrita é fantástica e dá vontade de esfregá-la na cara de todos que desdenham autores populares. Catherine prova que não é somente Machado de Assis a única pessoa a escrever com maestria sobre a condição humana. Ainda bem, temos condição humana para todos os gostos!

Outro aspecto interessante sobre Catherine Ryan Hyde é que ela quebra a quarta parede que separa o leitor do escritor. Uma rápida pesquisa no Google por seu nome nos informa que ela tem um blog no qual costuma escrever. Lá, encontramos fotos de seus animais de estimação, como o cavalo que a acompanha há muitos anos. Descobrimos que é possível enviar um e-mail a ela. Não é o máximo?

Ao quebrar essa parede, Catherine democratiza a escrita. Ela sai do canto escuro onde escritores se refugiam, mostrando que eles são pessoas bem comuns até. É o oposto de Jean-Paul Sartre, por exemplo, imóvel, tomando seu cafezinho no Café de Flore. Dessa forma, a autora mostra que qualquer pessoa pode tomar o caminho que ela escolheu. Para a nossa geração, que cresceu com Internet e blogs, é um alento.

Três personagens em busca de um norte

Leve-Me Com Você subverte a historinha “gênero férias”. Esqueça a praia. O negócio aqui é as paisagens duras das reservas naturais dos Estados Unidos. A areia toma o lugar das pedras do Parque Nacional de Yosemite, por exemplo. A escolha do cenário não é aleatória: a própria Catherine adora visitar esses parques. Há várias fotos de suas escaladas em seu blog.

São nesses cenários de tirar o fôlego que as três personagens principais do livro se reúnem para compartilhar a maior aventura de suas vidas. Tudo começa quando August, um professor de ciências, está viajando para visitar o Parque Nacional Yellowstone e seu trailer quebra no meio do caminho. Ele acaba parando em uma oficina para consertar o trailer e acaba conhecendo Wes, o mecânico, e seus dois filhos, Seth e Henry.

Wes faz uma proposta bastante incomum para o professor: ele não precisará pagar o conserto do trailer se levar seus dois filhos na viagem. O motivo? O mecânico terá de cumprir três meses na cadeia e não tem com quem deixar Seth e Henry. Relutante, August acaba aceitando.

É a partir desse gancho que a história começa de fato. A maior aventura da vida dessas três pessoas não é apenas as paisagens fantásticas do interior dos Estados Unidos, mas também a convivência entre elas. August é um cara desiludido, alcoólatra, e que carrega o peso da perda de um filho nas costas. Já os irmãos Seth e Henry, apesar de terem 7 e 12 anos respectivamente, já carregam as próprias cruzes.

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A luta contra o alcoolismo e reflexões sobre perda e luto

O que Catherine Ryan Hyde faz com o nosso coração durante esse livro não pode ser de Deus. Ela nos traz August, um personagem que subverte o estereótipo do alcoólatra. Não sei vocês, mas sempre que me pedem para pensar em um personagem com problemas de alcoolismo, Santana (Vera Holtz), da novela “Mulheres Apaixonadas”, é a primeira visão que tenho. Algo bastante caricato.

O August de Ryan Hyde nos mostra que o alcoolismo vai além de simplesmente escolher beber ou não. O que há entre o beber e o não beber é muito maior que a nossa vã compreensão. O personagem sabe disso e é por isso que ainda frequenta o AA (Alcoólicos Anônimos), mesmo após tantos anos sem beber.

É por perceber o papel que o alcoolismo desempenha em sua vida que August dá um jeito de comparecer a qualquer reunião do AA, não importa onde estiver. É uma forma de sempre relembrá-lo de que a luta para estar sóbrio é contínua. Em uma dessas ocasiões, o encontro acontece no trailer de uma reserva indígena e Seth é autorizado a participar, já que seu pai também é alcoólatra. É de longe a cena mais emocionante de todo o livro. Nessa ocasião, o garoto está pensando em realizar uma intervenção para que o pai pare de beber e recebe o conselho de Emory, o líder da reunião:

Vou quebrar uma regra e falar uma coisa para você, filho. Não devemos responder nas reuniões. E isso não é uma regra que impede apenas interrupções, mas uma que evita que a gente se meta onde não deve. Temos que nos ater à nossa própria história, mas vou passar por cima dessa norma apenas hoje. Filho, nunca peça desculpas por falar o que é verdade, principalmente em uma sala como esta, feita para isso. O que você sente é o que você sente, e, por mais que pense que deveria sentir outras coisas, não pode mudar seus sentimentos. Tem coisas na vida que podemos mudar e outras não. Tenho certeza de que August diz as mesmas coisas para você. (…) E se as palavras forem certas, você terá feito o que estava ao seu alcance. Se ele não tomar jeito depois disso, não é mais da sua conta. Não temos esse controle. Não assuma essa responsabilidade.

(Página 158 e 159)

Dessa forma, Catherine mostra que o alcoolismo também passa por uma questão de escolha. A pessoa não escolhe o vício, mas pode escolher parar. E se ela não o consegue, não devemos nos culpar por não ter nos esmerado o suficiente para fazer o/a alcoólatra. No fim das contas, às vezes precisamos entender que nem tudo está ao nosso alcance. Leve-me com você versa muito sobre isso.

Tamanho cuidado ao falar sobre alcoolismo está ligado ao fato de que Catherine também é alcoólatra. Ela sabe o que é conviver com o problema no dia a dia, e essa é mais uma prova de como ela não tem medo de se envolver com sua escrita, mesmo que isso denote uma possível fragilidade.

Além do alcoolismo, August também nos faz refletir sobre o luto. O medo de perder entes queridos é algo que carregamos durante toda nossa trajetória neste planeta azul. Spoiler: a vida não nos prepara para a morte. Talvez porque não falemos o suficiente sobre ela com o devido respeito (e até mesmo medo) que ela merece. O fato é que as pessoas se vão, mas o luto que carregamos permanece. Muitas vezes esse sentimento é repelido, como se tivéssemos de fingir que está tudo bem. É o que acontece a August. Ele percebe lá pelas tantas que não teve tempo de chorar a morte do filho. E não há nada de mal em chorar. Então, durante uma passagem muito especial do livro, ele presta uma homenagem a ele. A saudade permanece, mas agora ele está em paz com o sentimento de perda, pois ele o viveu.

Leve-me com Você

Seth, don’t carry the world upon your shoulders

E o que falar sobre a personagem Seth? Que garoto maravilhoso e precioso. Quando comentamos lá em cima sobre o fato de que esses personagens não são atravessados pela masculinidade tóxica, é porque em Leve-me com você meninos e homens são livres para sentir sem serem taxados de maricas. E é tão difícil encontrar retratos assim, não é? Seth é um garoto com milhares de sentimentos.

Um dos aspectos que mais chama a atenção em Seth é que ele carrega o mundo nas costas. Sempre procurando fazer tudo corretamente, ele se magoa quando decepciona as pessoas. Seth pede desculpas a todo momento. Por ter um pai alcoólatra em casa, o garoto acabou tomando a casa e a criação do irmão menor para si. São fardos para um menino de apenas 12 anos.

Ao longo da viagem, August ensina Seth que carregar o mundo nas costas é suicídio. Você não pode ser responsável por tudo. O controle nem sempre está em nossas mãos e tudo bem. É impossível não se identificar com ele. Cada pessoa carrega um fardo na vida, mas quando você é mulher, as coisas mudam de figura. As pressões são dobradas, e cada passo em falso é uma decepção que deixamos no rosto de alguém. É preciso fibra para seguir em frente.

É interessante, aliás, ver como Catherine retrata um garoto com essas características. Geralmente, garotos são criados para conquistar e não ter medo. Pedir desculpas não está no vocabulário. Porém, Seth não apenas pede desculpas a todo momento, como também carrega um senso de responsabilidade forte. Não é sempre que nos deparamos com um personagem masculino complexo assim.

Leve-me com você é uma leitura transformadora. Saímos mudadas após essa temporada nas reservas naturais dos Estados Unidos. Mais gentis, quem sabe aceitando melhor que transbordamos sentimentos também. Além disso, a leitura nos mostra que é possível, sim, criar personagens masculinas fugindo do machismo e da misoginia. É a condição humana retratada da forma mais incrível possível.


Leve-me com vocêLeve-me com você

Autora: Catherine Ryan Hyde

DarkSide Books

336 páginas

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Tradutora e noveleira. Criou, em 2014, o canal sobre cinema clássico no YouTube, o Cine Espresso, para espalhar na Internet o amor pelos filmes esquecidos. Gosta de chá preto acompanhado de um bom livro.
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