A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata: em tempos sombrios só o amor e a arte edificam

A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata: em tempos sombrios só o amor e a arte edificam

A palavra escrita no papel só ganha vida quando lida pelo seu destinatário. Escrever um livro é tal qual lançar uma garrafa no oceano, nunca se sabe por quem ela vai ser resgatada ou se o será. É nesse contexto em que se entrecruzam os caminhos de uma escritora em crise no mercado editorial, à procura de inspiração para escrever uma nova obra, e um leitor em busca de resgatar sua humanidade por meio da literatura.

Baseado na obra literária de Mary Ann Shaffer e Anne Barrows, a narrativa de A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata foi adaptada para o audiovisual e distribuída pela Netflix. O enredo é ambientado na ilha de Guernsey, num cenário póstumo à Segunda Guerra Mundial. Embora o conflito armado tenha cessado, os moradores do lugar ainda sofrem com os efeitos destrutivos da guerra, que além de mortos deixou um saldo de muitas feridas abertas e almas destroçadas.

Juliet Ashton (Lily James) é uma escritora na Londres de 1946, que após receber uma carta do até então desconhecido fazendeiro de Guernsey e integrante de um clube literário, Dawsey Adams (Michiel Huisman), decide visitar a ilha que fora invadida pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial.

Dawsey encontrou entre os destroços da guerra o livro que mudaria os rumos de sua vida, de autoria de Charles Lamb. Em uma das páginas internas da obra constava o endereço de Juliet, pois o livro pertencera a ela. Como não havia restado livrarias em Guernsey após a ocupação alemã, ele solicitou à Juliet, desconhecendo que esta era escritora, que lhe enviasse uma cópia dos Contos de Shakespeare, de Charles Lamb. Juliet atende o pedido em troca de saber informações acerca do clube de leitura intitulado A sociedade literária e a casca de torta de batata, fundado clandestinamente durante a guerra, como subterfúgio dos moradores para sobreviverem à condição de penúria e solidão decorrentes de um confronto bélico.

Sociedade Literária

Segundo relata Dawsey, em resposta ao questionamento de Juliet sobre a origem do clube, os alemães levaram todos os porcos em 1940 e mandaram os moradores da ilha plantar batatas. A comida passou a ser escassa e os sobreviventes da guerra viviam isolados, até que um dia o fazendeiro recebeu um convite da jovem revolucionária e idealista Elizabeth Mckenna (Jessica Findlay) para matar um porco, que fora escondido por uma das moradoras e seria servido em um jantar coletivo a fim de saciar a fome dos convidados, que postumamente construiriam o clube de leitura.

Além de Dawsey e Elizabeth, compunham o grupo, o carteiro Eben (Tom Courtenay), a fabricante de gin, Isola (Katherine Parkinson) e a viúva Amelia Maugery (Penelope Wilton). Nos encontros, cada membro do clube levava um pouco de comida, bebida e humanidade para os corações devastados pela guerra que tentavam se reerguer perante os escombros. Eben contribuía com a receita e idealização da famosa torta de casca de batata, feita sem manteiga e farinha, Isola ficava incumbida de levar o gim, Amelia concedia o espaço de sua casa e Elizabeth foi a peça fundamental dessa tentativa de renascimento, uma vez que percebeu a verdadeira fome de seus companheiros e companheiras, a fome de companhia e contato humano.

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Ao chegar à ilha e deparar-se com personagens de histórias fascinantes e de grande lição de resiliência, Juliet que também havia perdido seus pais na guerra, encontra a si mesma ao reconhecer no sofrimento daqueles moradores um pouco da sua dor, além da fonte de inspiração para se lançar à escrita de um novo livro. Lá, ela constrói profundos relacionamentos com os moradores do lugar e integrantes do clube da leitura, sobretudo com Dawsey, com quem vivencia um relacionamento amoroso, abrindo mão de um noivado com um militar norte-americano. Nos dizeres da escritora e protagonista da ficção, “Há um instinto nos direcionamentos dos livros que faz com que eles cheguem aos leitores perfeitos“.

O protagonismo e complexidade da personagem Elizabeth Mckenna

Apesar de o enredo centrar-se nas vidas de Juliet e Dawsey, uma personagem que logo desperta fascínio em face de sua coragem e senso de justiça, é Elizabeth Mckenna que merece destaque. Ela é uma jovem inglesa e a responsável por idealizar o clube de leitura, que antes funcionava clandestinamente durante os horrores e o autoritarismo da ocupação alemã. Como uma válvula de escape e forma de resistência, o clube de leitura trouxe aos moradores o fortalecimento necessário para prosseguir e sonhar com dias melhores, através das relações humanas e do poder da literatura. 

Ao longo da trama, Elizabeth denota gestos de sensibilidade ao sofrimento alheio, como quando ajuda um garotinho escravizado, doente e faminto, o que resultou na captura e deportação da jovem por parte do exército alemão. A personagem, que tem uma filha pequena, acaba sendo presa e arrancada de sua filha e do seu lar, em nome de um propósito maior, o de lutar pelo ideal de justiça e humanidade.

Sociedade Literária

A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata é uma obra que reúne histórias de guerra, resistência, humanidade e amor, ressaltando a importância e o poder de reabilitação que o universo lírico da literatura desperta no âmago do indivíduo, e o quão o ser humano pode se fazer forte, mesmo quando sonhar parece uma realidade intangível e não se resta mais nada a não ser reinventar um novo motivo para viver. Parafraseando Leminski, em tempos árduos, todas as armas são boas, como noites e poemas. Armas no sentido edificante da palavra, que representem instrumentos de transformação e ressignificação.

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18 Textos

Jornalista, pós-graduada em Comunicação, Semiótica e Linguagens Visuais, estudante de Direito, militante femimista, autora do livro A Árvore dos Frutos Proibidos, desenhista, cinéfila e eterna aprendiz na busca do aprender a ser.
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