Perdidas no mundo de “Justiça Ancilar”

Perdidas no mundo de “Justiça Ancilar”

É curioso. Logo no início da leitura de Justiça Ancilar temos a intuição que a história será diferente de qualquer coisa que já tenhamos lido, mesmo com as poucas dicas dadas na sinopse temos essa impressão que não terminaremos a leitura como as mesmas pessoas que a iniciaram. Apesar dessa sensação, ousamos ler com um pé atrás, isto é, tendo em mente a possibilidade de estarmos sendo induzidas ao erro, como já fomos em diversas outras obras. Mais curioso ainda foi descobrir que estávamos certas – ou erradas em duvidar? – em crer no potencial do livro.

Isso, porém, gerou um outro problema. Quer dizer, o fato dessa space opera ser espetacular é um ponto imensamente positivo, mas agora que o lemos e fomos intensamente transportadas ao mundo do Radch, a questão que fica é: como sair? Ou melhor, é possível sair?

A história de Justiça Ancilar apresenta a protagonista Breq Ghaiad em sua busca de vingança contra a autoridade máxima do governo dominante radchai: Anaander Mianaai. Curiosamente, Breq nem sempre teve a forma humana atual, visto que antes de deixar o Radch se denominava majoritariamente como Justiça de Toren, uma nave porta-tropas regida por uma única inteligência artificial (AI), que tanto habitava quanto controlava o corpo de milhares de soldados.

Justiça Ancilar

Não queremos dar spoiler, mas a trilha de Breq para vingar o ato de traição sobre si, e que destruiu sua antiga existência como Justiça de Toren, torna Justiça Ancilar um ganhador evidente dos grandes prêmios da ficção científica, como o Hugo, Nebula, Locus, Arthur C. Clarke e BSFA, sendo mais um ganho à representação feminina com a celebração de Ann Leckie, a autora.

“Temos um ditado no lugar de onde venho: poder não pede permissão nem perdão.”

– Breq Ghaiad

Não à toa, adiantamos que o primeiro volume da Trilogia Império Radch ganhou tantos prestígios da comunidade literária de ficção científica. A proposta de Ann Leckie é intensamente experimentada por nós, leitoras, não apenas através de uma intensa descrição de espaços, sentimentos e costumes, mas em razão da própria forma com que a trama é escrita.

Logo no preâmbulo, nos é explicado a razão da escrita – pelo menos a parte gramatical dela – ser como é, isto é, o uso indiscriminado de pronomes femininos para se referir a machos, fêmeas ou plurais, algo incomum especialmente na língua portuguesa. Tal escolha se deve tanto por opção da autora – e do responsável pela tradução, Fábio Fernandes – quanto pela trama ao se tratar, na verdade, de uma tradução da língua dominante radchai, a qual não possui distinções com base em sexo e/ou gênero.

Justiça Ancilar
Ann Leckie, a autora
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Essa opção de escrita e tradução ao português resulta, mesmo que involuntariamente, em uma representação literária feminina maior, afinal, sabe-se que o uso de pronomes masculinos pela língua é mais uma forma de reforço e manutenção do sistema bi-gênero e dominando por homens de nossa sociedade. Ao longo da leitura de Justiça Ancilar, porém, nos esquecemos que essa é a realidade. A ilusão de fuga do pesadelo patriarcal se traduz principalmente na língua apresentada no livro, como já dito, mas se consolida através da manifestação da enorme gama de personagens femininas existentes. Além disso, as personagens – sejam elas masculinas ou femininas – apresentam uma enorme pluralidade de cores, origens, etnias, culturas e etc, sendo o livro uma grande epopeia de diversidade.

O estado em que a personagem principal, Breq, inicia o livro – e se encontra atualmente – representa o incomum de protagonismo por si só. Fêmea e de pele escura, o fato de estar no protagonismo de uma obra literária de ficção científica leva o livro à proximidade de ideais sociais através da diversidade literária, como também vemos na obra da autora N.K. Jemisin, A Quinta Estação.

Justiça Ancilar

Não apenas ela, mas Ann Leckie considera a fundo, em sua descrição das personagens, o fato de que elas ou são alienígenas ou simplesmente humanas, as quais possuem as mais diversas características físicas e emocionais. Fêmeas e machos altos, baixos, claros e escuros e etc, se misturam e interagem no mundo em questão, tornando mais fácil a leitora imaginar a diversidade utópica de representação, com descrições expressas dos personagens.

Mesmo assim, a premissa de Justiça Ancilar é uma recorrente no mundo do entretenimento, inclusive o literário. Não apenas a história de bem contra o mal, a qual é difícil fugir, mas a questão do governo maléfico e praticamente ditatorial é incrivelmente comum também em ficções científicas, desde Star Wars até Justiça Ancilar, não sendo o Radch intrinsecamente diferente.

A situação do Radch, e de seu monopólio, se assemelha àquela da história das colonizações da nossa humanidade, visto que essa civilização usava de exércitos militares para forçar indexações em outros territórios, agora dominados pelas radchai. Mesmo com o domínio, o governo radchai permite algumas atuações diversas às suas em seus territórios, trazendo, como o colonialismo real, a fantasia de cidadania aos não colonizadores.

“(…) a ideia de atirar em cidadãs era, na verdade, extremamente espantosa e perturbadora. De que, afinal de contas, valia a civilização, se não garantisse o bem-estar das cidadãs?”

– Um Esk, da Justiça de Toren

Como a frase acima denota, a noção de cidadania e humanidade aos dominados é extremamente relativa, podendo ser extirpada deles a qualquer momento em que os dominantes – radchai – bem entenderem. Além disso, a discussão e embate entre as diferentes classes sociais – estejam elas divididas por raça ou berço – é uma constante do livro, trazendo também para o plano literário da ficção científica esse aspecto tão comum à nós, o que importa ainda em uma maior identificação com a trama e imersão na mesma.

Justiça Ancilar

No mais, mesmo com o cliché do governo imperialista e ditatorial, a dualidade de bem contra o mal, apresentada na obra, não é clara. No início acreditamos que trata-se apenas de Breq contra o Radch, mas ao final descobrirmos que o enredo é muito mais complexo do que isso, tendo Ann Leckie feito uso amplo do aparente poder de divisão e multiplicação de corpos que certas personagens possuem.

As informações e os constantes questionamentos que surgem, aflorados pela própria autora, nos deixam mais curiosas sobre os mundos e universos criados por Leckie, sejam eles radchai ou não. As personagens são, separada e conjuntamente, o maior atrativo de Justiça Ancilar, servindo como grande motivo de não sermos capazes de largar a história nem por um segundo, mas, ao contrário, devorarmos cada página e reviravolta com imenso apetite. Ao fim dessa análise, não apenas da trama, mas do que a história significou para nós, sabemos que a pergunta a ser respondida não é mais se é possível sair, mas se realmente desejamos sair.

“Se for fazer algo tão louco assim, guarde para quando puder fazer uma diferença.”

– Tenente Skaiaat Awer


Justiça AncilarJustiça Ancilar

Autora: Ann Leckie

384 páginas

Editora Aleph

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