Foi você “Quem matou o Caixeta?”

Foi você “Quem matou o Caixeta?”

Ao mesmo tempo que a leitura de Quem matou o Caixeta? nos parece extremamente essencial, a mensagem do quadrinho – principalmente após os resultados parciais ou não, das eleições do último domingo – nos pega em um recorrente desconforto. Não apenas nos últimos anos, mas desde quando “o mundo é mundo”, a questão do confortável privilégio de um sobre outros é a pauta de cansativas conversas entre marginalizados e aliados. E hoje, apesar de termos nos aproximado de uma resposta, a solução ainda parece longínqua.

A era digital trouxe mais do que a possibilidade de se conectar com diversas pessoas ao redor do mundo ao apresentar-se como meio de divulgação de ideias dos mais diversos assuntos, além de visões, sociais e políticas. O conhecido fenômeno da globalização foi vendido, em seu início, como o construtor de pontes entre indivíduos diversos ao redor do globo, porém não se imaginava que ele seria essencial à construção de densos e altos muros.

A HQ de Rainer Petter apresenta o youtuber Caixeta Oliveira e o mistério que envolve a sua morte, trazendo relatos de conhecidos e familiares acerca dos possíveis motivos da mesma, bem como do verdadeiro Caixeta.

“Meu filho cresceu em uma família muito bem estruturada. Dentro de casa, ele sempre foi extremamente responsável.”

– Nedson Monteiro Oliveira, pai do Caixeta

Ilustrado com alguém responsável, estudioso e religioso – pelo menos na infância e pré-adolescência – Caixeta não parece, ao primeiro olhar, capaz de nenhum mal (será mesmo?), mas, ao contrário, tendo sido criado de forma aparentemente moral.

Ora, o molde de criação de Caixeta é extremamente comum na sociedade brasileira, a qual alega seguir e pregar os bons costumes e o bem acima de tudo. Entretanto, sabemos que os ideais de bons costumes são aqueles trazidos pelo colonizador conservador europeu há séculos atrás e que, curiosamente, não se modificaram na maioria comum desde então. É certo, porém, que a habitualidade e quantidade de um comportamento não o faz certo, mas, ao contrário, pode criar uma verdadeira ditadura da maioria autoritária e anacrônica.

Quem matou o Caixeta

Caixeta era um tipo de youtuber – e indivíduo – que conhecemos muito bem: o crítico do “politicamente correto”. No primeiro monólogo do personagem, ele já faz a conhecida declaração que tudo está muito chato, que, como ele mesmo diz, “O mundo está chato pra caraleo!” e logo depois saí em um rompante de ataques gratuitos a minorias como negros, mulheres e gordos.

Talvez o mais interessante nem seja o próprio Caixeta – e seu fim – mas sim o diálogo e a situação paralelos a sua história que são apresentados no quadrinho. Veja bem, Quem matou o Caixeta? traz uma trama multidimensional à leitora, apresentando situações passadas e atuais em um mesmo plano figurativo, de forma que a riqueza da história é apenas multiplicada. Afinal, ao longo da recapitulação de quem foi Caixeta e dos possíveis vários Caixetas que nos cercam, vemos uma discussão bastante familiar de um casal de namorados. Ela, a histérica de TPM, e ele, o macho-alfa.

É curioso observar, principalmente na presente situação social, que tão logo a discussão do casal se inicia, nós, leitoras, pensamos automaticamente no pior, isto é, na morte da personagem feminina em questão. Afinal, em um país que mata 13 mulheres por dia e uma a cada 2 horas (Mapa da Violência Contra a Mulher), não é surpreendente, mas sim desconcertante, que este seja o pensamento inicial frente a uma situação de aparente perigo.

Nesse mesmo diálogo inicial entre o casal, vemos como o namorado e Caixeta tem ideias comuns. Apesar de não abordar – que saibamos – pessoas em meio a rua para expressar discursos “politicamente incorretos” e preconceituosos, o namorado reproduz a violência exteriorizada por Caixeta e ensinada (e aprendida) desde a infância, como demonstra a própria HQ, nas mais diversas situações.

Quem matou o Caixeta

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É claro, tal posicionamento sociopolítico (e nenhum outro, a propósito) não é motivo para morte – seja de Caixeta ou de outros – sendo certo que se sabe que a única solução para a resolução de conflitos é o diálogo aberto e universal, mas cabe ressaltar que esse mesmo posicionamento mata, seja direta ou indiretamente e seja literal ou figurativamente. Este posicionamento aqui falado é fruto de um sistema patriarcal pautado na masculinidade tóxica e na supremacia branca, em que é ensinado – mesmo que sutilmente – a inferioridade do gênero feminino, bem como das raças e etnias distintas do default branco.

Através das dicas e demonstrações do quadrinho, não há dúvidas acerca de quem (e o que) efetivamente matou Caixeta. O ódio gerado e refinado pelo sistema social (aparentemente) majoritário levou o youtuber, antes filho exemplar e religioso, a uma posição de outdoor público do sistema em questão. O cotidiano, bem como demonstrado na obra, nos dá exemplos diários de mentes quadradas e retrógradas como a de Caixeta, que desde pequenas são criadas para serem simples peões e reprodutores de uma dinâmica integralmente desigual.

“Quem matou eu não sei, mas, se descobrirem, por favor, deem uma medalha pra esse herói.”

– Entrevistado

A morte do primeiro Caixeta ocorreu por sua criação dentro desse sistema, um que em seu próprio processo criativo mata mentes e emoções com justificativa de manutenção. Já quanto a morte do segundo, isto é, sua morte física, só nos resta especular sobre seu causador. Apesar de não estar claro o seu causador direto, estamos certas que o mesmo sistema que criou o Caixeta também criou o seu assassino, seja este, teoricamente, uma vítima do sistema ou um peão. Talvez a névoa ao redor de seu assassino seja o objetivo do autor, afinal, é certo que o mistério nos fez questionar mais a própria sociedade e seus motivos do que talvez acontecesse se ele ficasse claro.

Quem matou o Caixeta? é uma obra perturbadora e intimamente desconcertante, que nos obriga não apenas a pensar no mistério, mas a questionar suas causas mais enraizadas e sutis, justamente aquelas responsáveis por tantas estatísticas ao longo dos anos. Apesar disso, é significativo o fato de que tal obra conseguiu ser financiada coletivamente pelo site Catarse, antes de ser arrematada pela Editora Avec, talvez querendo dizer a tão esperada reconsideração social “da moral e bons costumes”. Talvez ingenuamente, escolhemos pensar que sim.


Quem matou o CaixetaQuem matou o Caixeta?

Autor: Rainer Petter

AVEC Editora

96 páginas

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