Maria Bonita: a força das mulheres nordestinas em meio ao cangaço

Maria Bonita: a força das mulheres nordestinas em meio ao cangaço

Maria Bonita e Lampião são, de certo, dois dos personagens mais icônicos da História do Brasil. Ambos dividem opiniões no imaginário coletivo nacional: ora vistos como heróis, ora como vilões, o casal de cangaceiros serviu e serve até hoje de inspirações para obras literárias, filmográficas e musicais, mantendo a memória viva de episódios dolorosos no sertão nordestino, como o da seca da década de 30 e a luta do povo por sobrevivência. No livro Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço, publicado pela editora Companhia das Letras, a jornalista Adriana Negreiros esmiúça e investiga a vida e o legado não só de Lampião e seus homens, mas também das mulheres que os acompanharam ao longo das jornadas pelo calor do cariri e foram extremamente fortes.

[TW: ABUSO SEXUAL]

O cangaço foi um movimento de luta por igualdades e justiça para as parcelas mais pobres da sociedade nordestina, muito conhecido pelo teor violento, com o qual seus participantes abordavam e furtavam os líderes locais e a polícia das cidades pelas quais passavam nos interiores da região. Os grupos do também denominado “banditismo social” não pensavam duas vezes antes de trucidar quem tentasse lhes parar.

Um dos maiores cangaceiros foi Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião. Nascido em Serra Talhada, Pernambuco, em data imprecisa, o homem chegou a estudar e trabalhar como artesão, mas aos 22 anos entrou para o cangaço para vingar o assassinato do pai, e pouco tempo depois criou o próprio bando.

Maria Bonita

Apesar de Lampião ser o comandante de seu bando predominantemente masculino, houve espaço para a inserção de mulheres após a chegada de Maria Gomes de Oliveira, a Maria de Déa (naquela época, homens e mulheres carregavam a alcunha de pertencimento ao pai no lugar do sobrenome, um dos inúmeros vestígios do machismo implícito nas instituições familiares) ou, popularmente chamada, Maria Bonita.

A moça, nascida em Malhada da Caiçara, Bahia, em 17 de janeiro de 1910, vivia uma vida monótona ao lado do marido, José Miguel da Silva, um primo dela seis anos mais velho que, ao vislumbrar qualquer oportunidade, traía Maria com as moças da região. Cansada de viver a mesmice e ser enganada pelo próprio cônjuge, ela sonhava com uma vida de luxos e aventuras – e não tardou para que Lampião fosse o alvo destes anseios.

“No começo dos anos 1920, os ventos da chamada primeira onda feminista começavam a soprar nos grandes centros urbanos do Brasil, mas demorariam a chegar ao sertão nordestino. Maria de Déa era, portanto, em quaisquer circunstâncias, uma mulher de comportamento transgressor. De uma senhora casada, ainda que insatisfeita com o relacionamento, esperava-se nada além de cega obediência ao marido.” (pág. 22)

Dona de um espírito livre e confrontador, Maria era vista de forma tortuosa pelos conhecidos, inclusive pelo próprio marido. Tentando ao máximo escapar das decepções do casamento, saía escondida para aproveitar a vida e, quando descobria, José a agredia, o que aumentava a dor e a frustração da jovem, casada com ele desde os 15 anos. Nascida para ser do lar, dotada de conhecimentos sobre bordado e sobre a vida pacífica e submissa que uma mulher precisava levar, Maria queria ir além.

“’Toda construção social gira em torno da mulher nas suas máximas expressões – esposa e mãe. Se o lar representa para o homem o remanso de repouso e de prazer na vida, é para a mulher a própria vida’, dizia um anúncio da Associação de Crédito Hipotecário Lar Brasileiro, publicado nos jornais cariocas de 1926.

A peça da Associação procurava se valer de um recurso comum na publicidade – conquistar a mulher para influenciar as escolhas do homem.” (págs. 22 e 23)

A família de Maria era uma das que ofereciam hospedagem (as denominadas “famílias coiteiras”) e mantimentos aos cangaceiros que, disfarçados e sempre escondidos, buscavam apoio em algumas casas da cidade com as quais podiam deixar seu paradeiro guardado sob sigilo absoluto. Foi nestas circunstâncias que Lampião conheceu aquela que viria a ser sua esposa e primeira mulher do cangaço (antes disso, o chefe do bando apenas arrumava romances sem compromisso, por pensar que o lugar das mulheres não era naquela vida).

Apaixonados, encontraram nos pais de Maria o primeiro obstáculo para o desenrolar do romance, tanto que a moça foi literalmente carregada contra a vontade de dona Maria Joaquina e do senhor José Filipe, que no processo precisaram mudar-se para a casa de alguns parentes em Alagoas por terem a casa vandalizada pelos cangaceiros.

Maria Bonita
Lampião, à esquerda. Cangaceiras Inacinha (canto superior direito) e Maria Jovina (canto inferior direito), a qual sofria agressões constantes do cangaceiro Pancada, como ser arrastada pelos cabelos.

Deu-se, então, o início de um futuro que, para Maria, parecia promissor, mas que aos poucos tornou-se horrendo, assim como para as demais mulheres que tiveram a liberação do capitão Virgulino para acompanharem seus homens.

Uma das histórias mais tristes, de Sérgia Ribeiro da Silva, conhecida como Dadá, é relatada por Adriana no livro: a menina que, aos 13 anos, foi tirada da família e violentamente abusada por Corisco, conhecido como o Diabo Louro, teve de largar as bonecas com as quais ainda brincava e assumir a postura de esposa de cangaceiro, vindo a se endurecer para a vida e o mundo que lhe podia oferecer tantas oportunidades, se as mesmas não lhe fossem privadas. Estupros coletivos e atrocidades feitas às mulheres com as quais os homens tinham contato eram uma característica horrivelmente marcante do cangaço, com anuência e participação do próprio Lampião, já casado com Maria Bonita.

“A ausência de Dadá – e a certeza de que, nas mãos de Corisco, ela seria violentada – era um dos motivos de sofrimento na residência dos Ribeiro da Silva. Mas estava longe de ser o único. Para as forças volantes, Dadá não tinha sido raptada, e sim fugira com o cangaceiro. Seu Vicente passou a ser tido, a partir de então, como coiteiro (…).” (pág. 34)

De meninas sonhadoras a sofredoras, as mulheres do cangaço, quando não eram sequestradas como Dadá, eram grandes entusiastas de uma perspectiva de vida livre que era prometida pelos cangaceiros, muitas vezes derivada da repressão dentro do próprio lar. Mas, em ambos os casos, o machismo era explícito principalmente pela falta de escolha com a qual se deparavam: aquelas que entravam por livre e espontânea vontade não podiam sair e, aquelas que não queriam entrar, também eram obrigadas a ficar.

Nenhum anseio positivo se concretizou. Nenhuma delas foi plenamente feliz (há relatos de que alguns deles não chegavam a agredir as companheiras e as tratavam com algumas regalias; Lampião era um deles. Mas, para uma mulher, uma agressão crucial é ter seu direito de ir e vir privado e controlado por quem se diz, literalmente, seu dono).

“É possível que a Pantera Negra dos Sertões tratasse bem sua mulher por saber o quanto, em segredo, era invejado por outros rapazes. Afinal, a mulher mais desejada entre as cangaceiras pertencia a ele. E pertencia mesmo. No bando, quer tratassem suas mulheres com mesuras, quer as agredissem fisicamente, os cangaceiros as consideravam suas propriedades.

O código do cangaço previa que as mulheres deviam fidelidade e submissão a seus companheiros, sendo permitido a eles, quando sentissem contrariados, penalizá-las da forma que melhor lhes aprouvesse. Com a morte, inclusive.” (pág 76)

Maria Bonita
Em sentido horário das imagens: Maria Bonita e Dadá, Joana Gomes e Inacinha, Adília e Sila e, por último, Neném. Fotos de Benjamin Abrahão.

Pantera Negra dos Sertões, codinome de Zé Baiano, era, junto a Corisco, um dos mais cruéis cangaceiros do bando de Lampião. Armado com um ferro, cujas letras JB, suas iniciais, eram gravadas, marcava as faces, nádegas e seios de mulheres que ousavam lhe contrariar ou que, para ele, eram “impuras” de qualquer forma.

Até mesmo quando grávidas, pois a vida precária no sertão não permitia o uso métodos contraceptivos, as mulheres eram obrigadas a andar de sol a sol e sem cuidados, o que muitas vezes fazia com que os bebês nascessem mortos ou morressem com poucos dias de vida. E, quando sobreviviam, como foi o caso de Expedita, filha de Lampião e Maria Bonita, eram entregues aos cuidados de famílias coiteiras, padres ou pessoas ricas que os pudessem cuidar.

As mulheres eram separadas de seus filhos logo após o nascimento e, para esconderem a lactação, prendiam faixas apertadas ao redor dos seios para não permitir que molhassem as vestes. As crianças não podiam ser criadas no cangaço para que seus choros não denunciassem o bando às volantes e por conta do ambiente pouco propício para que vivessem. Há relatos, na obra, de crianças que foram abandonadas nos acampamentos em fugas rápidas dos cangaceiros, crianças estas encontradas por policiais e levadas para serem criadas nas cidades.

A obra de estreia de Adriana Negreiros é rica em documentações históricas e preza muito pelo contexto feminista que a época e os acontecimentos sugerem como discussão. O modo de vida dos cangaceiros e cangaceiras são apresentados em detalhes, o que auxilia ainda mais as leitoras a se transportarem para os eventos expostos na obra (donos de um estilo ímpar, até mesmo as vestimentas utilizadas pelos homens e as mulheres serviram de inspiração para coleções de figurinos, celebrados pela famosa estilista brasileira Zuzu Angel, em Nova York, como citado por Adriana no prólogo de seu livro – Maria Bonita amava andar enfeitada com anéis e o cabelo no estilo das melindrosas dos anos 20, o que tornou-se uma marca registrada de sua personalidade).

O período histórico da Era Vargas e a caça aos cangaceiros instituída pelo então presidente Getúlio Vargas também aparecem no livro, permitindo as leitoras conhecerem os dois lados da biografia de Lampião e Maria Bonita. Uma obra plena de significados, representatividades femininas e histórias que assustam por serem reais e que merecem destaque extremo na resistência que viemos construindo ao caminhar dos séculos.

Maria Bonita

Maria Bonita
Maria Bonita. Foto de Benjamin Abrahão.
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A estrutura do texto é confortável e, além de dados históricos, apresenta depoimentos dos próprios cangaceiros e cangaceiras, reportados pela autora. Há passagens de violências que são muito descritivas e que chocam pelos requintes de crueldades, o que pode incomodar leitores e leitoras sensíveis aos temas. Em certos momentos, Adriana vale-se da licença poética e inclui chamamentos regionais na própria narrativa, evidenciado também nas frases que abrem cada capítulo que, juntas, formam um cordel sobre a vida de Maria Bonita.

Se você se interessa por história do Brasil e feminismo, Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço é uma obra completa e muito importante, principalmente nos dias atuais. Entender o passado de mulheres resistentes e fortes, como as do bando de Lampião, é entender o nosso presente de lutas e conquistas. Vivam as mulheres nordestinas e suas jornadas! Viva Maria Bonita!


Maria Bonita

Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço

Autora: Adriana Negreiros.

Objetiva, 2018

293 páginas

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Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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