[LIVROS] A Cidade de Bronze: A intolerância na fantasia

[LIVROS] A Cidade de Bronze: A intolerância na fantasia

A Cidade de Bronze, livro da norte-americana S. A. Chakraborty, conquista a um primeiro olhar pela linda capa. No entanto, o livro revela que há mais na história. Desenvolve, assim, uma narrativa complexa. Consegue englobar uma mitologia bem desenvolvida com a trajetória da protagonista Nahri. Apresenta ainda personagens ambíguos e indecifráveis, situados em situações que surpreendem. Discute, enfim, a violência, o preconceito, o extremismo religioso e a disputa de poder político em uma história cativante e instigante.

Daevabad: a cidade de bronze

Ambientada no século XVIII, a história de A Cidade de Bronze tem como protagonista Nahri, uma órfã de 20 anos. Com estranhos poderes de cura, Nahri sobreviveu nas ruas de um Egito em guerra, disputado entre franceses e otomanos. E fez sua vida como curandeira  – e ladra também.

Até que um dia, Nahri performou um ritual desconhecido. E ao entoar uma antiga cantiga, sem querer invocou o daeva Dara. Entre criaturas mitológicas diversas e guerras entre espécies, Nahri é arrastada para Daevabad: a cidade de bronze. E uma vez lá, Nahri jamais conseguirá retornar à sua antiga vida no Cairo.

Em Daevabad, Nahri começa, então, a entender aquele que pode ser o seu mundo. Conhece mais daquela que pode ser sua família. Mas também conhece mais daqueles que podem ser seus inimigos. Simultaneamente ao descobrir mais acerca do seu passado, Nahri se aproxima de um dos filhos do rei Qahtani. Ali, o mais novo, líder militar da cidade. Ali, o religioso fiel e questionador que, assim como Nahri, está descobrindo o que há por trás da história da cidade mágica. 

E em meio às intrigas de uma corte dividida entre entidades daeva e djinn, entre  djinn e meio-sangue shafit, Nahri começa a desvendar uma guerra que vai além da política e da religião: uma guerra de sangue por poder.

A Cidade de Bronze

Velocidades distintas no rumo da história

A Cidade de Bronze poderia ser dividido em duas principais partes, de ritmos um tanto distintos. Na primeira metade do livro, intercala-se, em regra, um capítulo narrado por Nahri e outro narrado por Ali. Assim, de um lado conhecemos mais profundamente algumas questões políticas de Daevabad. Já do outro, acompanhamos a trajetória mais rápida de Nahri e Dara. Além disso, conhecemos mais desses dois personagens, que acabam por cativar mais que o príncipe Ali.

Todavia, os dois pontos de vista também possuem ritmos distintos entre si. Isto porque a história de Ali possui menos ação. Uma vez que foca mais em questões políticas, acaba sendo, também, mais lenta do que a história de Nahri e Dara. Esses dois, diferentemente, estão em uma rota de fuga do Cairo a Daevabad. São perseguidos constantemente por diversas forças. E é, portanto, a história dos dois que dá ritmo à primeira parte.

Já a segunda metade assemelha-se mais ao ritmo do ponto de vista de Ali. Uma vez que Nahri já se encontra na cidade de bronze, ela é envolvida pelas mesmas tramas que Ali um dia fora. Nesta segunda parte, tanto Ali quanto Dara perdem um pouco do foco. Este então, se concentra majoritariamente em Nahri e suas descobertas.

Riqueza de personalidades ambíguas e indecifráveis

Não se pode dizer que os personagens superam a trama, porque o enredo de A Cidade de Bronze é o que mais conquista. Todavia, a autora consegue construir bons personagens, ainda que poucos deles conquistem.

Os personagens de S. A. Chakraborty, com exceção de Nahri e Dara, não são feitos para serem amados. Cada um, ao seu modo, revela preconceitos diversos. Estão, desse modo, enredados por seus próprios estigmas e interesses. No entanto, talvez essa seja a questão. A obra inteira de A Cidade de Bronze gira em torno dos preconceitos que se carregam. E, do mesmo modo, das batalhas que se travam em face da intolerância.

Portanto, ninguém é confiável. Cada personagem apresentado pode parecer confiável num momento. Mas no momento seguinte pode contrariar todas as expectativas pela vontade de poder. Igualmente, não se consegue discernir quem defende causas justas de quem deseja apenas tomar o poder e instaurar sistemas tão violentos quanto os anteriores.

Nahri e Dara são os personagens mais próximos de uma confiança. Contudo, não significa que sejam perfeitos. Nahri, inicialmente, parece seguir o estereótipo da heroína prometida. Surge do nada, sem um passado e sem uma expectativa de futuro. Mas aos poucos revela deter poderes há muito adormecidos. Todavia, não é tão simples. Pelo contrário, quando se espera que Nahri vá revelar um poder extraordinário, descobre-se que, talvez, ela não seja capaz de tudo o que se espera. Ou que, para atingir seu potencial, ela precise de tanto esforço quanto qualquer indivíduo.

Dara, por sua vez, possui um passado conturbado. Ao mesmo tempo em que a leitora é conduzida a desculpá-lo, colocando-o num papel de vítima dos seus próprios atos, não há como ignorar atitudes arrogantes e tão preconceituosas quanto as dos antagonistas da história.

Luta contra o preconceito e o ciclo de violência

Então, nesse ínterim, consegue-se perceber que talvez tenha sido a intenção da autora contrapor essas diferentes perspectivas. E, assim, deixar a leitora de A Cidade de Bronze confusa acerca dos rumos que a história tomará. Mas também despertar um questionamento sobre a própria história humana.

Nahri sai de um país em guerra, disputado por franceses e otomanos. Enquanto isso, os egípcios passam fome, sofrem com a guerra e com a pobreza. Não obstante, sofrem preconceito constante dos invasores. E quando Nahri foge com Dara, parece que finalmente encontrará o cenário de vida ideal. Acaba, contudo, encontrando algo semelhante àquilo de quando fugiu. Daevabad, antes dominada pelos daeva, era um lugar perigoso para os shafit. Quando os djinn assumiram Daevabad, os daeva foram perseguidos, em um sangrento conflito político. Já os shafit, que esperavam melhores condições, continuaram a ser perseguidos por não terem sangue nobre.

Nas lutas contemporâneas a Nahri, cada lado possui uma perspectiva. Cada um, portanto, possui razões para tomar o poder e para temer os demais povos. Afinal, a violência é sempre avassaladora. A autora de A Cidade de Bronze não se estende nas descrições. E nem seria interessante a um livro que não pretende trazer à tona dores como essas. Mas também não se esquiva de trazer ao enredo práticas de violência comum nas guerras, como assassinatos, estupros, torturas dos mais diversos tipos. E, por fim, traz o questionamento: como garantir que o ciclo de vingança, violência e intolerância não se perpetue.

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Mitologia bem construída e inserida na narrativa

A mitologia desenvolvida por S. A. Chakraborty em A Cidade de Bronze, inicialmente, lembra bastante a mitologia usada por Alwyn Hamilton em A Rebelde do Deserto. Contudo, as semelhanças se encerram num história ambientada no deserto e no uso da palavra djinn. Claro, ambas as histórias falam sobre preconceitos, sobretudo em relação aos descendentes dos djinn, mas apresentam narrativas bastante distintas. Talvez a história de A Cidade de Bronze seja um tanto mais madura e complexa que a história finalizada em A Heroína da Alvorada. Ainda assim, são ambas boas histórias, cada qual com sua narrativa e foco.

O interessante da história de A Cidade de Bronze é que mais figuras mitológicas, inspiradas na mitologia persa, são exploradas. Há, por exemplo, além dos djinn e dos daeva, os peris e os marids. Não obstante, há toda uma história da origem desses seres e de como eles começaram a interagir com os seres humanos – através da violência, observe-se. E o mais importante é que essas histórias não são apenas narrativas ilustrativas, elas importam para o enredo. Contribuem, assim, para a explicação da jornada de Nahri.

Ressalta-se, ainda, que a mitologia desenvolvida pela autora insere-se nos elementos políticos e religiosos de sua cidade de bronze fictícia. De um lado, coloca-se um governo autoritário que utiliza da religião como forma de controle da população e confirmação do status de poder. Do outro, coloca-se uma fé transformada em dogma e extremismos, tão violenta, em alguns momentos, quanto o próprio poder político.

A Cidade de Bronze

Final surpreendente

Como mencionado anteriormente, A Cidade de Bronze conquista pelo seu enredo. Não é um livro de muita ação, mas a leitura flui rápido. S. A. Chakraborty consegue conquistar com suas palavras e, de certo modo, com sua imprevisibilidade. Algumas questões, como um surgimento de um romance ou a importância do passado de Nahri, certamente era previsíveis. A história, todavia, possui algumas reviravoltas que surpreendem.

Personagens aparentemente indiferentes podem despontar como essenciais à trama. Personagens de quem se espera algo podem agir de forma oposta. Ou mesmo podem até morrer. A autora consegue unir isto a mistérios que não são resolvidos no primeiro livro. E também a fatos supervenientes que instigam a curiosidade. Desse modo, resta a ansiedade pelas continuações. O próximo livro, intitulado The Kingdom of Copper (O Reino de Cobre) está previsto para lançamento em janeiro de 2019 nos Estados Unidos.


A Cidade de BronzeA Cidade de Bronze

S. A. Chakraborty

Editora Morro Branco

608 páginas

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Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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