“VOX”, de Christina Dalcher: Nunca calarão nossas vozes!

“VOX”, de Christina Dalcher: Nunca calarão nossas vozes!

O mundo está ao contrário. Mesmo com tantas vidas resistindo e insistindo em simplesmente ser, há repressões por todos os lados, às vezes veladas e às vezes escancaradas, com anuência de inúmeras pessoas. VOX, livro distópico de Christina Dalcher, assusta por possuir aspectos encontrados em nosso cotidiano opressor e por conversar sobre as liberdades das mulheres colocadas em situação de risco recorrentemente, incluindo o direito de ter voz. Uma obra atualíssima e necessária no cenário em que vivemos.

Se só fosse permitido às mulheres falarem até 100 palavras por dia? Isto seria o suficiente? Esta é a premissa de VOX, livro que tem como ambientação os Estados Unidos, governado por um presidente autoritário, o qual colabora para a prática de um fundamentalismo cristão que dita todas as regras na vida das pessoas, especificamente na das mulheres, que precisam tornar-se submissas às próprias famílias e ao direito de livre expressão: para tanto, todas elas ganham um contador no pulso, que contabiliza palavras e até mesmo sussurros ditos por elas. Caso falem mais do que a cota permitida, sofrem consequências físicas muito graves.

VOX
Imagem/foto: reprodução.

Na trama, acompanha-se Jean McClellan, uma ex neurolinguista muito conceituada que precisou abandonar o emprego por conta do novo regime autoritário do país. Ela precisa conviver todos os dias com o fato de que os homens podem falar e até mesmo expressar-se não verbalmente, ao passo que meninas desde pequenas têm este direito tomado; Jean vive com o marido, Patrick, um médico que possui ligação estreita com membros do governo, três filhos homens e a pequena Sonia.

“Às vezes risco letras invisíveis na palma da mão. Enquanto Patrick e os meninos falam com suas bocas, eu falo com os dedos. Grito, reclamo e xingo sobre, nas palavras de Patrick, ‘como era antes’. Agora as coisas são assim: temos uma cota de cem palavras por dia. Meus livros e revistas – até os exemplares antigos de Julia Child e (que ironia) uma publicação para donas de casa que uma amiga me deu como um presente de casamento brincalhão – estão trancados em armários para que Sonia não possa pegá-los. Isso significa que eu também não posso (…).”

(pág. 20)

O livro é apresentado em narrativa não linear e a protagonista conta através de flashbacks como a situação do país chegou ao ponto caótico em que se encontrava. Livros religiosos tornando-se leituras obrigatórias em escolas ao passo que leituras aleatórias são trancadas em armários ou descartadas, discursos misóginos aparentemente inofensivos para parte da população e liberdades constantemente vigiadas foram aos poucos criando tentáculos e arrancaram tantos fatores preciosos e inerentes à vida das mulheres. Uma personagem importante, Jackie, amiga feminista de Jean, luta pelos direitos das mulheres e tenta a qualquer custo alertá-las do mal que estava por chegar, ao passo que é constantemente ignorada ou tida como histérica e maluca.

“Jackie o ignora e crava seus olhos enlouquecidos, os cílios cheios de rímel, na direção da câmera, de modo que parece me encarar.

– Vocês não fazem ideia, senhoritas. Absolutamente nenhuma ideia. Estamos a um passo de voltar à pré-história, meninas. Pensem nisso. Pensem onde vocês vão estar, onde suas filhas vão estar, quando os tribunais atrasarem os relógios. Pensem em expressões como ‘permissão do cônjuge’ e ‘consentimento paterno’. Pensem em acordar um dia e descobrir que não têm voz em nada. (…)”.

(pág. 16)

Jean é uma mulher extremamente forte e inteligente, comete erros, precisa conviver com sentimentos de culpa de um passado não tão distante e é retratada de forma muito real. A desconstrução que sofreu com o passar dos anos é gigantesca, o que faz com que a leitora relembre como era antigamente, a consciência sobre a importância de discussões acerca do feminismo que não era devidamente abordada, e como isto pode refletir na sociedade.

É angustiante ver os fatos pela perspectiva dela, como a ocasião de ter de abandonar o emprego no auge de uma pesquisa importante, e também quando precisa lidar com o desenvolvimento da própria filha que, por se comunicar na maioria das vezes apenas com ruídos, terá o a cognição prejudicada ao longo dos anos – para tanto, Jean aceitará até mesmo trabalhar para o lado opressor, contrariando a própria personalidade e integridade para que a filha possa ter um futuro melhor.

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Outro fator a ser analisado na obra é o comportamento dos homens, incluindo os familiares de Jean. Mesmo conhecendo a situação precária das mulheres, mesmo convivendo com a esposa e a filha e reparando no quanto sofrem, tanto o marido quanto o filho mais velho, Steve, escolhem não ajudá-las ou ao menos se compadecer da situação. Steve aceita o fundamentalismo religioso sem questionamentos, gerando muitos desconfortos entre ele e a mãe. Com comportamentos e falas abusivas, os dois demonstram que mesmo dentro do lar as mulheres da história encontram-se sozinhas. Serão sempre “elas por elas”.

“Steve aparece com três tigelas de sorvete e comenta que a mulher na televisão está histérica.

Histérica. Odeio essa palavra.

– O quê? – pergunto.

– As mulheres são todas malucas – continua ele. – Isso não é novidade, mãe. É aquela história das mulheres histéricas de ‘surtos da mãe’.

– O quê? Onde você ouviu isso?

– Aprendi hoje na escola. (…)”

(pág. 14)

O livro possui capítulos bem curtos, pois acompanham o ritmo monótono dos dias e das poucas falas da protagonista, e isto promove uma leitura dinâmica. Até por volta da página 80, a leitora é situada na problemática da história e o ponto de virada começa quando o irmão do presidente sofre um acidente que compromete a cognição deste e, para tanto, o governo solicita a ajuda de Jean e seus conhecimentos neurolinguísticos.

VOX
Imagem/foto: reprodução.

Assim como em O Conto da Aia, de Margaret Atwood, lemos em VOX acontecimentos que, por mais ficcionais que pareçam, não estão distantes de nossa realidade. Em um mar de medo e cegueira coletiva, a literatura é indispensável como bússola ao encontro de dias e pensamentos melhores para o bem de todos e todas.

Christina Dalcher é linguista, doutora e professora universitária. Em VOX colocou muitos conhecimentos científicos de sua área de estudo, tornando a leitura ainda mais informativa.


VOX VOX

Autora: Christina Dalcher

Editora Arqueiro

Tradutor: Alves Calado

318 páginas

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Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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