A Balada do Black Tom: universo Lovecraftiano pelo olhar de um homem negro

A Balada do Black Tom: universo Lovecraftiano pelo olhar de um homem negro

Quem é fã de H.P. Lovecraft vai, em algum momento da vida, ter uma crise existencial. Assim como fãs de diversos outros autores e autoras que escreveram obras incríveis, mas eram pessoas que refletiam ideias e ideais discriminatórios (racistas, machistas, lgbtfóbicos, etc.).

E é normal que nós, como um mecanismo de defesa, criemos mil formas e desculpas de tornar aquelas obras aceitáveis, mesmo que, no fundo, saibamos que certas coisas são indefensáveis. É nesse contexto que surge o livro A Balada do Black Tom (no original: The Ballad of Black Tom, 2016), lançado no Brasil no final de 2018 pela editora Morro Branco, onde Victor LaValle encontrou o seu próprio jeito de lidar com isso.

“Para H.P. Lovecraft, com todos os meus sentimentos conflitantes”

(Victor Lavalle)

Lovecraft é o mestre do horror cósmico. Ele foi um dos precursores da ficção científica de horror, pois abandonou os monstros comuns e os substituiu por criaturas cósmicas medonhas e indescritíveis, criando, assim, uma mitologia própria que atravessou gerações e inspirou grandes escritores (como Stephen King e Neil Gaiman) e a cultura pop em geral; Lovecraft também é um dos escritores mais racistas e xenófobos que conhecemos e cujas obras, em sua maioria, transparecem tais preconceitos.

Os fãs de Lovecraft frequentemente racionalizam seu racismo como sendo um produto de seu tempo, ou sugerem que devemos olhar “além” dele. Mas o horror cósmico de Lovecraft era um construto profundamente racista, irrevogavelmente ligado à necessidade de afirmar a superioridade branca.

(Tammy Oler – tradução livre)

A Balada do Black Tom

Lovecraft possui obras de horror cósmico surreais e que são uma poesia para os olhos dos fãs desse gênero literário, dentre elas, destacam-se A Cor que caiu do espaço e A Sombra Vinda do Tempo. No entanto, obras como A Sombra de Innsmouth e O horror em Red Hook são referenciadas como as mais racistas e xenófobas.

“Avenidas de uma noite ilimitada pareciam irradiar para toda direção e poderia-se pensar que aqui estava assentada a raiz de uma epidemia destinada a adoecer e engolir cidades e engolfar nações no fedor de híbrida pestilência. Ali havia entrado o pecado cósmico, espalhando-se por ritos profanos e começando a marcha ameaçadora da morte que viria nos apodrecer em aberrações fúngicas horríveis demais para o abraço no túmulo.”

(O Horror em Red Hook – H.P. Lovecraft)

Se em O Horror em Red Hook, Lovecraft reforça estereótipos racistas e xenófobos, ao fazer a sua releitura do conto, LaValle reimagina o mesmo através de Charles Thomas Tester, ou Tommy, como era conhecido. Um simples trambiqueiro metido a músico que lutava para conseguir um prato quente de comida para ele e seu pai. Em A Balada do Black Tom, temos uma obra que consegue superar o seu homenageado em tudo, inclusive porque, nela, temos uma crítica ácida às questões levantadas na obra original.

“Os imigrantes legais da Europa – alemães e ingleses, escoceses e italianos, judeus, franceses, irlandeses, escandinavos – eram bem-vindos ao centro de imigração da Ilha Ellis. Mas, e o restante?[…] Havia outros portos menos famosos para esses imigrantes, claro, mas havia também um terceiro canal, as rotas ilegais conhecidas apenas por traficantes de seres humanos.”

(A Balada do Black Tom – Victor Lavalle)

É inegável que a obra seja um tributo a Lovecraft, pois tudo é minimamente pensado e ambientado no universo mitológico do autor. Até o nome de Tommy, se prestarmos atenção, faz uma leve alusão ao nome do protagonista do conto O Caso de Charles Dexter Ward.

A Balada do Black Tom

LaVelle consegue criar um conto no qual o horror em Red Hook é o racismo e a xenofobia e onde toda violência vivenciada pelo protagonista culmina no acontecimento que leva à intersecção sangrenta entre o LaVelle e Lovecraft. É neste exato momento em que Tommy vira Black Tom e LaVelle nos leva a uma segunda fase da viagem, na qual passamos a ver a história através do detetive Malone, o protagonista original do conto de Lovecraft.

“- Charles Thomas Tester – disse Malone. – É seu nome. E você é do Harlem, não de Red Hook.

– Me chamam de outra coisa agora – disse o preto. – E meu nome de nascença não tem mais poder sobre mim. Morreu com meu pai.”

(A Balada do Black Tom – Victor Lavalle)

Se é sufocante ler o conto através dos olhos de Tommy e viver, através de sua pele, o racismo social e institucional, a pobreza e a violência policial, é através de Malone que vemos o verdadeiro horror manifestado.

A reviravolta sangrenta do conto nos lembra muito o livro Carrie – a Estranha, do Stephen King. No entanto, é interessante como talvez se tenha mais empatia por uma garota branca que sofreu bullying e destruiu toda uma cidade, do que por um homem negro que vivenciou o racismo a sua vida inteira.

– Carrego um inferno dentro de mim – rosnou Black Tom. – E quando descobri que ninguém tinha compaixão por mim, quis arrancar árvores, espalhar o caos e a destruição ao meu redor e depois me sentar e desfrutar da ruína.

– Então, você é um monstro – comentou Malone.

– Fizeram de mim um monstro.

(A Balada do Black Tom – Victor LaValle)

O livro parece ter algum feitiço que nos prende a ele de forma que sempre que acabamos um capítulo, ansiamos por mais. Talvez seja porque LaVelle escreve de uma forma indescritivelmente bem, ou talvez seja apenas porque queremos ouvir, mais uma vez, o Black Tom tocar o seu violão ensanguentado.

Leia também:
>> [OPINIÃO] O estereótipo da mulher louca nos filmes de terror: O medo feminino tratado como loucura
>> [SÉRIE] A Maldição da Residência Hill: Muito mais que uma história de terror (sem spoilers)
>> [CINEMA] A Tale of Two Sisters: Um terror psicológico que subverte os estereótipos femininos

SOBRE O AUTOR

A Balada do Black Tom

Victor LaValle é autor de quatro livros: Slapboxing with Jesus, The Ecstatic, Big Machine e The Devil in silver. Foi agraciado com diversos prêmios, inclusive um Shirley Jackson Award e um American Book Award. Foi criado no Queens por sua mãe, uma imigrante ugandense, que se mudou para os Estados Unidos aos vinte anos. Hoje dá aulas na Universidade de Columbia e vive em Washington Heights com sua esposa e filhos. Aprendeu o Alfabeto Supremo com dezoito anos de idade e o tem usado desde então. (fonte: Editora Morro Branco)


A Balada do Black TomA Balada do Black Tom

Victor Lavalle

160 páginas

Editora Morro Branco

Se interessou pelo livro? Compre aqui!

Comprando através do link acima, você ajuda a manter o Delirium Nerd no ar, além de ganhar nossa eterna gratidão por apreciar e apoiar o nosso trabalho!

Escrito por:

51 Textos

Feminista e membra da União de Mulheres de São Paulo, onde é coordenadora adjunta do Curso de Promotoras Legais Populares, projeto voltado para a educação popular e feminista em direitos. É viciada em Lego, apaixonada por ficção científica/terror/horror, apocalipse zumbi e possui sérios problemas em procrastinar vendo gif’s e não lembrar o nome das pessoas. No mundo real é advogada.
Veja todos os textos
Follow Me :