Qual a questão com “Rick e Morty”?

Qual a questão com “Rick e Morty”?

Espera-se que uma série – seja animada ou não – tenha um apelo inegável para conseguir se manter por mais de um ano, como é o caso de “Rick e Morty“, que estreou sua mais recente temporada em 2017. A fama da animação, porém, se divide entre polêmicas sociais e políticas e um enredo dinâmico e arrojado, mesmo assim, focando-se em um novo grupo: os fãs não apenas de animação, mas de ficção científica. A popularidade do desenho é inegável, mas ainda nos perguntamos o porquê de uma série tão, no mínimo, polêmica, ser aceita e fazer sucesso, especialmente com o público socialmente minoritário.

Ora, o machismo existente na série e não faz questão de ser excluído ou sequer disfarçado por seus roteiristas, sendo uma característica constante desde o piloto. Apesar do protagonista Rick ser o seu maior expoente, as demais personagens – recorrentes ou não – também reproduzem o machismo existente a cada episódio. Machismo esse que, curiosamente, se ampliou até mesmo aos demais planetas do universo, sendo igualmente reproduzido.

Talvez o episódio em que tal machismo seja mais – até mais que o normal – evidente, seja o episódio sete da primeira temporada “O pequeno Gazorpazorp”, marcando a primeira empreitada espacial de Summer, a irmã adolescente de Morty. Logo no início, Rick demonstra o seu machismo e limitação de gênero ao explanar como as mulheres não são aptas para aventuras espaciais, sendo erraticamente rechaçado por Summer. O amplo carregamento de machismo do episódio é, aparentemente, questionado e quebrado ao descobrirmos que o planeta visitado é governado pelas fêmeas da espécie.

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Promissor, não? A farsa, por sua vez, não dura muito. Tão logo Summer e Rick chegam à sede do governo, e após serem identificados como espécies de um planeta distinto e retrógrado, a verdadeira face do desenho retorna, passando a retratar as personagens femininas em questão como seres fúteis, exageradamente emocionais e vingativos, além de possuidoras de uma enorme necessidade de se provarem superiores aos machos.

Tal episódio é o exemplo mais evidente do tratamento de segunda classe que as mulheres da série recebem, havendo poucos momentos de verdadeiro protagonismo das mesmas sem qualquer relação com as personagens masculinas, mas de longe é o único. A diversidade de narrativas, tanto quanto ao default do duplo gênero, mas também em relação às narrativas raciais, capacitistas e de classe, é praticamente inexistente, apenas sendo certificada a permanência do ponto de vista do homem branco cisgênero.

Rick e Morty

Ora, mas já estamos cansadas de saber que a diversidade de narrativa só é possível com a diversidade de equipe, certo? Não poderíamos esperar, apesar de mesmo assim esperarmos, que em uma equipe formada majoritária e constantemente por homens brancos seja apresentada de forma profunda, e através de uma personagem tal como eles, uma visão diversa e inclusiva. Entre a equipe creditada, apenas quatro escritoras são mulheres, as quais participaram de apenas 10 episódios em três anos, e apenas três escritores são pessoas de Cor*. Isso torna ainda mais curioso – e revelador – o fato do sobrenome de Rick ser de clara origem latina: Sanchez.

A tentativa superficial de se aproximar da narrativa do “politicamente correto” ao adicionar um relacionamento latino à família protagonista, bem como pouquíssimos personagens de cor ou femininos sem nenhum reconhecimento narrativo além da estereotipização e objetificação, como simples elementos narrativos aos protagonistas, é incrivelmente desonesta. Não há adição à história com tal tentativa nem desenvolvimento humano das personagens em questão, sendo apenas adereços jogados e majoritariamente irrelevantes em meio a trama de Rick e Morty.

Como então, em pleno 2019, e em uma época de renascimento e reconstrução global dos fatores determinantes de beleza, raça, classe, gênero e etc, é possível o sucesso de uma série como essa, não apenas entre o público dominante, mas também entre os dominados? A resposta é tão simples quanto capciosa: o enredo.

Rick e Morty

Ao longo dos 31 episódios lançados até agora, somos catapultadas à vida da família Smith como um todo, havendo uma sensação de sitcom americana típica dos anos 90, misturada com um filme trash proibido para menores de 18 anos. As desavenças e normalidades que pintam a vida da família Smith a aproximam da vida da telespectadora, sendo uma das únicas coisas que afastam a totalidade da série do gênero fantasia. O fato da oficina (laboratório) de Rick ser na garagem da família – um dos clichês da vida norte americana – se certifica de fazer a ponte entre suas aventuras intergalácticas e a casa suburbana em que reside, comprometendo-se em criar uma dualidade constante a narrativa.

Da mesma forma, as relações inter e intrapessoais retratadas são essenciais ao andamento da trama, sendo as maiores responsáveis – para nós – de seu sucesso. Ora, apesar de todas as inúmeras empreitadas científicas a cada episódio, os mesmos sempre apresentam situações capazes de nos fazer analisar não apenas o desenho, mas nossas próprias vidas pessoais. Questões desde as crises que permeiam um casamento até as mais profundas – mesmo que discutidas pelos personagens de forma breve – como existencialismo e niilismo são levantadas na série a todo momento, sendo, na verdade, as viagens de Rick e Morty apenas panos de fundo e ferramentas para tais discussões.

Rick e Morty

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A fachada do protagonista Morty como um simples garoto adolescente no auge da puberdade, que tem preocupantes problemas de autoestima e obsessão, é densamente explorada pelos escritores e é, a todo momento, aprofundada – em suas diversas versões – ao longo da série. Afetado pelas filosofias do avô, mas também pelas do resto do universo, algumas reações de Morty – o “original” – não são exatamente surpreendentes, mas ainda assim inquietantes (como o restante do desenho). Já Rick se assemelha a um tio inteligente, mas completamente discriminatório e arrogante que toda família parece ter em comum, mas que ainda (incrivelmente) se importa com uma pequena parcela da existência.

As perspectivas filosóficas, bem como as diversas discussões políticas trazidas no desenho, são inúmeras e afetam principalmente os protagonistas através de debates pesados sobre moralidade e mortalidade. De uma forma ampla, o enredo de uma animação aparentemente simples se mostra como uma verdadeira mesa-redonda filosófica e existencial sobre a humanidade em seus diversos aspectos. Morty talvez seja o expoente que melhor representa essa concepção, sendo o mais sensível e afetado pelas peripécias de Rick e de seus familiares, mas é apenas a ponta do iceberg.

Os elementos emocionais das personagens – sejam protagonistas ou não – bem como das telespectadoras são o combustível da série, que, por sua vez, usa das infinitas possibilidades à uma animação para colocar discussões pessoais em cenários fantasiosos. Isso, acreditamos, é o motivo primordial do sucesso da série, apesar de sua evidente falta de diversidade e seu comportamento jocoso em relação às minorias de raça, classe e, principalmente, de gênero.

Rick e Morty

Tal motivo, claro, não é justo, mas justifica o fato de tantos expoentes das mesmas minorias sub-representadas ou simplesmente maltratadas pela série estarem presentes entre seu público. Como parte dessa parcela, é claro que não ignoramos os inúmeros problemas de representação da série, nem tampouco suas “piadas” discriminatórias, porém nos é impossível ignorar a destreza crítica da trama.

Ao abordar questões existenciais, mesmo que sem claros recortes étnico-sociais, “Rick e Morty” ainda consegue questionar principalmente alguns importantes aspectos políticos-sociais. Tal questionamento ficou claro na terceira temporada, mas especialmente a partir do episódio sete “A Ricktlântica confusão”, na qual foram abordadas questões de imperialismo, duplos Estados e segurança estatal. O objetivo da série não é propor discussões aprofundadas a telespectadora, mas suas pinceladas sobre os mais diversos assuntos não nos passam despercebidos, mesmo que inserindo-se nos multi enredos do desenho.

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Quanto aos pontos negativos e positivos da série, não é possível analisá-los objetivamente, cabendo a própria telespectadora julgar se as discussões apresentadas valem relevar o tratamento às minorias. Ao final dessa análise, bem como após revisitarmos a série, não conseguimos chegar a um resultado concreto. E mesmo observando os problemas indiscutíveis que a série possui, estamos ansiosas para a 4ª temporada de “Rick e Morty”, e talvez seja esse o objetivo final da série: fisgar a telespectadora, mesmo que ela seja diretamente atacada pela narrativa, utilizando-se da aceitação (ainda) majoritária – e inconsciente – da população acerca de tais aspectos discriminatórios.

Rick e Morty” é, antes de qualquer coisa, uma série compatível com a época em que foi criada. Seus protagonistas são típicos americanos de televisão, racial e economicamente falando, os quais discutem apenas questões relacionadas diretamente às suas próprias vidas, e quanto as demais apenas no limite do que reproduzem a partir de canais liberais (leia-se, branco de classe média democrata) da mesma televisão. Em suas vidas pessoais não existe ampla diversidade e, por terem sido criados em meio ao conservadorismo cristão, agem, no geral e mesmo que inconscientemente, dessa mesma forma.

Rick e Morty

Não é surpreendente a série ser um sucesso, já que segue a fórmula das recentes séries animadas para adultos que contém algumas críticas sem aprofundamento por episódio. O que surpreende é a nossa devoção a tramas do tipo, continuando a assisti-las a cada, aparentemente nova, estreia. As discussões existenciais são coerentes, mas, na verdade, só servem para nos revelar como seres vulneráveis e falhos e talvez explicar que não apenas a própria existência humana não importe, mas a existência enquanto minoria – e a consequente luta por reconhecimento enquanto minoria – também não.

Agora é oficial: nos tornamos Rick Sanchez!

Notas:

O termo “pessoa de Cor” utilizado no sexto parágrafo do presente texto, quando nos referimos aos roteiristas do desenho, provém da filosofia anti-sistêmica seguida pela autora do texto, isto é, o feminismo interseccional e o feminismo negro. Inspirada acadêmica e pessoalmente por autoras de reconhecido prestígio e conhecimento dentro do espectro de ambas as vertentes do movimento feminista, a escolha pelo termo “pessoas de Cor” seguiu a filosofia da, mais especificamente, ativista Audre Lorde.

Em um discurso de 1979, que mais tarde se inseriu na coletânea “The Master’s Tools Will Never Dismantle the Master’s House. Sister Outsider: Essays and Speeches”, publicada pela Editora Berkeley, New York, em 1984, a autora tomou para si o termo antes exclusivamente ofensivo e o utilizou para exemplificar e, assim, demonstrar – entre outras coisas – a violência sofrida por mulheres pobres e de Cor tanto na esfera privada quanto na pública, sendo certo que tal termo foi adotado pelo movimento negro (especialmente o norte americano), bem como pelos demais movimentos com lideranças “não-brancas” e projetos contra a supremacia branca.

Dessa forma, a autora do presente texto, tendo em vista sua realidade como ativista e vivente dos movimentos feministas interseccional e negro, escolheu e escolhe utilizar e – igualmente – tomar para si o termo, não empregando-o de forma a ofender e separar, mas sim de maneira a especificar e unificar, na medida do possível, as realidades e vivências de indivíduos e comunidades não brancas.

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