[CINEMA] “Origem: Espíritos do Passado” e o protagonismo (ainda) masculino

[CINEMA] “Origem: Espíritos do Passado” e o protagonismo (ainda) masculino

Culpa nossa: nos enganamos, em um primeiro momento, pelo marketing focado na protagonista feminina. Afinal, pela sinopse de “Origem: Espíritos do Passado”, bem como pelos posteres, pensamos que a protagonista da trama será, indubitavelmente, a garota do passado chamada Tula. É claro, a atuação de Agito – por ser ele quem a retira de seu sono de anos – não deixaria de ter sua importância, mas não era esperado que ele fosse se transformar no protagonista real do filme, mesmo o título original em japonês levando seu nome (Giniro no Kami no Agito). Em pouco mais de uma hora, somos levadas a uma jornada que mistura a importância da flora e da fauna (inclusive a humanidade) em uma história mais mental e espiritual do que física, em meio a cenários impressionantes e um enredo rápido e dinâmico. Isso, porém, não nos distrai do fato que, mesmo após o apocalipse, o protagonismo ainda é masculino.

Origem: Espíritos do Passado
Shunack e Jessica

A situação apresentada no anime é evidentemente assustadora. Acontece que, em razão – é claro – da atuação humana, não apenas a parte majoritária do ecossistema terrestre foi destruída, mas a própria e única Lua. Agora, alguns anos depois do acontecido, a humanidade se divide entre as ruínas da Cidade Neutra e os muros da cidade-militar Ragna, precisando conviver com uma natureza que controla os meios naturais de sobrevivência e que está, inicial e aparentemente, contra a humanidade.

“Origem: Espíritos do Passado” se inicia com a demonstração do que aconteceu com o ecossistema e com a Lua, mas sem claras especificações dos responsáveis. Depois, uma breve apresentação da Cidade Neutra nos é dada através de um sequência dinâmica na qual conhecemos algumas das personagens da trama. Tanto na introdução quanto na sequência inicial, a maneira primorosa com que os cenários foram construídos nos chama atenção, tendo sido misturadas ilustrações 2D com efeitos especiais e CGI, dando vida ao que normalmente é um pano de fundo.

Origem: Espíritos do Passado

O CGI também é utilizado para dar vida aos robôs de batalha, ou mesmo nas missões de resgate de objetos e alimentos efetuadas na Cidade Neutra, agindo como elementos importantes ao aspecto adicional de ação do filme. A característica futurista do anime foi intensamente explorada pelos efeitos utilizados pelos animadores e pela equipe de produção, sendo ela um agente essencial ao andamento do enredo e ao desenvolvimento da trama.

Tudo isso, porém, não nos afasta do foco principal de “Origem: Espíritos do Passado”: a relação entre a humanidade e a natureza. A floresta que faz fronteira com o lado oeste da Cidade Neutra está integralmente viva, sendo representada fisicamente através de Druidas e de dois espíritos femininos com poderes premonitórios, Berui e Zerui, mas serve, na maior parte, essencialmente como um empecilho e não como uma aliada. É dela e nela que a solução para o renascimento da relação humana-natureza cresce e, finalmente, se revela ao fim do filme, em um término tão emocionante quanto surpreendente.

Origem: Espíritos do Passado
Berui e Zerui

Mesmo assim, é curiosa a troca do protagonismo feita no filme. É claro, foi Agito quem acordou Tula de sua condição de animação suspensa e possibilitou o seu retorno à vida plena após 300 anos de sono, mas, de início, Tula é tratada como protagonista, sendo vista como a única solução para um renascimento da floresta, mesmo que através das chamas. O dispositivo eletrônico que leva em seu pescoço, o Raban, é visto pela floresta como uma arma, mas pelo soldado de Ragna, Shunack, o apetrecho representa o triunfo da humanidade sobre a floresta dominante, sendo claro, em ambos os casos, o (agora pseudo) foco narrativo em Tula.

Após Agito tomar emprestado o poder da floresta para salvar Tula, ainda cremos que é dela o protagonismo da trama, até que, em meio a batalha final dentro da grande empreitada tecnológica E.S.T.O.C., vemos que o verdadeiro protagonista na verdade é Agito. A partir daí, toda a representação feminina do anime nos é revelada como uma simples busca por preenchimento de espaços sem uma devida construção.

Origem: Espíritos do Passado
Tula

Sim, sabemos que o desfecho trazido com Tula não seria correto ou vantajoso em relação ao desfecho trazido com Agito, mas por que Tula não pôde ser aquela a se conectar com a floresta, ainda mais que ela parecia ser a única com efetiva capacidade de destruí-la? Por que, em vez de tentar matá-la, a floresta – através dos criadores do anime – não tentou se aproximar de Tula e, assim, salvar a si e a humanidade? Ora, a facilidade trazida pelo protagonismo masculino pareceu melhor.

A animação do estúdio Gonzo – o mesmo que nos trouxe a obra-prima “Neon Genesis Evangelion” e a nova versão dos “Cavaleiros do Zodíaco”, “Saintia Shô”, entre outros – falhou com suas personagens femininas de uma maneira que só nos transparece como preguiça.

Origem: Espíritos do Passado
Yolda

Ao todo, existem quatro personagens femininas – além de Berui e Zerui, que não iremos considerar – falantes: Tula, Minka, Jessica e Yolda. Estas duas últimas, embora em lados inicialmente opostos, dividem o fato de ocuparem lugares de aparente decisão. Yolda é a líder central da Cidade Neutra e Jessica parece ser a comandante do exército de Ragna, mas o destaque dado a ambas se resume a algumas situações de aparente e frágil liderança. O maior destaque de Jessica é em momentos breves da batalha final, enquanto no restante do filme funciona quase como uma pseudo guarda costas de Shunack. Já Yolda, apesar de ter uma grande mesa e um escritório exclusivo, além de ser a porta voz da Cidade Neutra, não exerce nenhum poder de decisão além de castigar Agito e seu amigo Cain.

Tula, como já dissemos, teve sua possibilidade de protagonismo usurpada, mas é em Minka que encontramos a maior decepção em termos de representação feminina. Não há grandes aprofundamentos acerca da personagem, além do fato de ser filha de um dos chefes e de estar apaixonada por Agito. Em uma das primeiras interações que a menina tem com Tula, a ação escolhida pelas escritoras foi a criação de uma falsa competitividade entre ambas em torno de Agito, infantilmente “avisando” seu compromisso a Tula. Parece que o papel relegado às personagens femininas da trama é ou de falsa liderança ou da vida privada, nesse caso, ou pensando em se casar ou sendo visadas para tanto, como o caso de Cain e Tula.

Origem: Espíritos do Passado
Aguito (ao fundo) e Cain
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Em todos os quatro casos, as personagens femininas são exemplos claros do que poderia ter sido se apenas houvesse uma melhor atenção e importância dada às mesmas. O potencial da trama é, no mínimo, maculado pelo tratamento infame dado a tais personagens, de tal forma que mesmo no fim e com a mensagem de sustentabilidade e conexão ecológica do filme, não nos é possível esquecer e deixar de lado o que poderia ter sido.

A escolha do verdadeiro protagonismo – e antagonismo, no caso de Schunack – na trama, segue a conhecida preferência do roteiro focado na vivência e existência masculina. Ora, Agito não apresentava nada excepcional que justificasse sua escolha como protagonista, apenas sendo – em nossa opinião – escolhido pela floresta em função da clara aversão da mesma por Tula. O poder que o mesmo desenvolveu, após a conexão com a flora, não necessitou de nenhuma habilidade especial do personagem, podendo, na verdade, ter sido passado a qualquer um.

Com a expectativa criada ao redor de “Origem: Espíritos do Passado”, tanto pelo sua sinopse quanto pelo seu estúdio e equipe, incluindo o diretor Keiichi Sugiyama, o resultado final é decepcionante. Na verdade, o fato do filme ser o resultado de roteiros conjuntos de Nana Shiina e Naoko Kakimoto, ambas mulheres, é estarrecedor e nos faz lembrar como a questão feminista de representação positiva feminina ainda não é uma certeza. Talvez, com o crescimento do movimento feminista na Ásia – inclusive no Japão – e através do movimento #MeToo isso mude, mas em 2006 (data original de lançamento do filme) tal realidade ainda nos era distante.

Origem: Espíritos do Passado
Minka

Origem: Espíritos do Passado” consegue, sim, trazer um entretenimento a telespectadora. O enredo é feito de forma dinâmica e clara, sem pontas soltas ou lentidão da trama, sendo apresentadas novas questões a todo momento. Quanto a animação, ela foi construída de forma impressionante, dando vida à ficção científica da trama e agindo quase como um organismo vivo dentro da história. Isso, porém, não legitima a subrepresentação feminina mostrada, nem a escolha preguiçosa pelo protagonismo masculino. Tula, Minka, Jessica e Yolda – e as demais nem mencionadas – mereciam mais. E nós também.

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