“Y – O Último Homem” e a praga do binarismo de gênero

“Y – O Último Homem” e a praga do binarismo de gênero

Criado por Brian K. Vaughan (“Ex Machina”, “Saga”) e co-criado e desenhado por Pia Guerra, o quadrinho “Y – O Último Homem” foi publicado originalmente pela Vertigo Press, entre setembro de 2002 e março de 2008, nos Estados Unidos, em 60 capítulos. No Brasil, a série foi lançada integralmente pela Panini Comics, a partir do segundo semestre de 2009.

Y – O Último Homem” apresenta um cenário apocalíptico em que todos os seres de cromossomo Y foram dizimados simultânea e instantaneamente por uma espécie de praga de origem desconhecida, à exceção de Yorick Brown, um jovem adulto desempregado e seu recém-adquirido macaco de estimação, Ampersand.

A partir daí, Yorick e seu macaco se veem com a responsabilidade de garantir o futuro da espécie humana e, escoltados pela agente 355, juntam-se à bioengenheira especialista em clonagem Dra. Allison Mann para ajudarem-na em suas pesquisas sobre a praga e dar início ao projeto de clonagem para o repovoamento da população masculina do planeta.

AVISO: Contém pequenas revelações que não estragam o prazer da leitura

Gênero no universo de “Y – O Último Homem”

Y - O Último Homem

O universo da história de “Y – O Último Homem“, espelho do nosso, é patriarcal e profundamente marcado por um binarismo de gênero, em que só há a possibilidade de gênero masculino e feminino e estes são obrigatoriamente correspondentes ao sexo biológico e que, dentre suas manifestações, têm na função social do gênero a mais palpável. Nessa lógica, a figura masculina (e, portanto, do homem) ocupa posições e carreiras relativas a suas ditas “características inatas”, como ativa, líder, provedora, dentre outros, e a figura feminina (e da mulher) exerce papéis e carreiras relacionados à submissão, cuidado, delicadeza e tudo o mais que não caiba no masculino.

Tendo a quase extinção dos homens como premissa, é natural que questionamentos a respeito da identidade de gênero e dos femininos possíveis perpassarão a obra como um todo, fazendo parte tanto de conflitos principais quanto de tramas secundárias, de conflitos coletivos e também individuais. Esses questionamentos estão presentes nos três personagens principais que se desviam, cada um à sua maneira, da norma do binarismo de gênero do mundo pré-praga: Yorick não é suficiente másculo, agente 355 não está dentro dos padrões de feminilidade e a Dra. Allison, lésbica, não corresponde às expectativas heteronormativas que acompanham a dicotomia de gênero.

Yorick e 355: identidades mutáveis que fogem das normas

Y - O Último Homem

Yorick, é, como a maioria dos protagonistas de histórias de ficção científica, um jovem branco e hétero de classe média. As semelhanças cessam aí, pois Yorick não performa masculinidade como os heróis tradicionais. É uma enciclopédia da cultura pop, formado em literatura, fraco atleticamente e romântico em sua busca incansável por sua namorada, que se encontrava do outro lado do mundo no momento da extinção e a quem tenta permanecer fiel, mesmo sendo o último homem do mundo. Por essas e outras características, Yorick chega a ser alvo de piada, não sendo considerado viril o bastante por algumas personagens.

Ao longo da história de “Y – O Último Homem“, além de desenvolver as características necessárias ao amadurecimento, tais como responsabilidade e seriedade, Yorick desenvolve também a empatia e a capacidade de reconhecer suas próprias limitações, sem que isso se torne um motivo de insegurança. O jovem aprende a deixar de lado o “heroísmo” de arriscar-se desnecessariamente e começa a valorizar a própria vida – o que significa, em muitos momentos, confiar nas mulheres ao seu lado e deixar que elas resolvam determinados conflitos. Não por serem mulheres, mas por serem mais capacitadas.

A agente 355, membro da organização governamental Círculo Culper, é uma dessas personagens altamente capazes, de habilidades físicas e intelectuais bem acima da média. Responsável por escoltar Yorick, ela é a única personagem negra do núcleo principal e também do núcleo secundário. Se o protagonista não é “homem o suficiente”, agente 355, inicialmente, aparenta ser máscula demais para uma mulher: musculosa, alta, lutadora exímia, suas escolhas de utilizar vestimentas folgadas e cabelo curto contribuem para que os outros personagens a percebam dessa forma, e Yorick inclusive chega a chamá-la de “machorra”.

Y - O Último Homem

Ao final do quadrinho, que abarca os seis primeiros anos após a praga, nota-se que sua aparência se modificou bastante: 355 passou a deixar os cabelos longos e as roupas mais justas, em um visual mais feminino. É interessante notar que esse processo se dá de forma gradual e remete a um retorno a uma identidade perdida.

Após a morte dos pais, quando ainda era uma menina, 355 encontra uma realidade difícil e passa a assumir uma postura mais dura e séria como estratégia de sobrevivência, se distanciando cada vez mais de sua infância e, também, da delicadeza. Um símbolo disso é sua relação com o vestido, peça que utilizava quando criança e que se permite utilizar novamente após completar sua missão – e sua jornada pessoal de aceitação da própria identidade e suas várias facetas.

Ao contrário de um makeover para agradar ao personagem masculino em uma ocasião específica, esse simples comportamento de comprar um vestido se torna um reflexo de uma mudança psicológica mais profunda. Em “Y – O Último Homem“, tanto a construção da identidade quanto a construção de gênero são contínuas e, da mesma forma, mutáveis.

Y - O Último Homem

Extinção, função social do gênero e reorganização social no mundo pós-praga

No plano físico e coletivo, vê-se que as consequências da praga, devido à função social dos gêneros nas civilizações, são devastadoras. Conforme os dados apresentados no volume 2 da edição brasileira de “Y – O Último Homem“, o androcídio:

“Exterminou instantaneamente 48% da população global, ou aproximadamente 2,9 bilhões de homens. 495 dos 500 maiores CEOs listados pela revista Fortune estão mortos agora, bem como 99% dos proprietários de terras do mundo. Só nos Estados Unidos, mais de 95% de todos os pilotos comerciais, motoristas de caminhão e capitães de navio morreram… assim como 92% dos presidiários condenados por crimes hediondos. Internacionalmente, 99% de todos os trabalhadores nas indústrias mecânica, elétrica e de construção estão mortos agora… embora 51% da força de trabalho agrícola do planeta ainda esteja viva. […] No mundo inteiro, 85% de todos os representantes governamentais estão mortos.”

Portanto, essa falta quase absoluta de liderança faz com que impere o caos. Uma série de acontecimentos leva os personagens a atravessarem os Estados Unidos e percorrerem outros países, transformando a história em uma espécie de Road Comics. Isso possibilita à leitora testemunhar as consequências da praga em nível mundial e como as sobreviventes buscam enfrentar os problemas físicos, sociais e também identitários decorrentes do extermínio dos homens.

Seria de se imaginar que com o fim do cromossomo Y, se extinguiria também o sexismo. Contudo, se há algo que “Y – O Último Homem” nos mostra é que os corpos morrem muito mais facilmente que as culturas. Não faltam tentativas das sobreviventes de se reorganizar mimetizando comportamentos patriarcais e colonialistas de opressão e, por ironia, o grupo que diz se afastar dessa lógica é o que mais se aproxima dele: as Filhas das Amazonas, uma espécie de gangue autodenominada feminista.

Y - O Último Homem

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Um feminismo que se mostra torto desde o início: na hierarquia vertical das Filhas das Amazonas não há espaço para discussão ou pluralidade de ideias. Ou às ordens são acatadas ou o destino é a expulsão, tortura, ou qualquer outra forma de coerção. Mesmo aquelas que não discutem estão sujeitas ao abuso psicológico por parte de sua líder Victoria, que lista diversas opressões e injustiças sofridas pelas mulheres ao longo dos séculos, ao mesmo tempo em que se aproveita sem escrúpulos da fragilidade das mulheres ao seu redor, que passam fome e perderam parentes, amigos, irmãos.

Em “Y – O Último Homem“, ao saber da existência de Yorick, Victoria faz o possível para dar-lhe o mesmo destino dos outros homens, pois para ela as mulheres só serão soberanas quando não houver mais o masculino. Nem mesmo os espermas são poupados. Victoria questiona o patriarcado, querendo substituí-lo por um matriarcado igualmente opressor e autoritário. Contudo, nesse mundo pós-apocalíptico de “Y – O Último Homem”, não se trata de ocupar o lugar do masculino, mas de ressignificar o que é o feminino e o que é o masculino em sua essência.

De nada adianta inverter os polos do binário, como tentam as Filhas das Amazonas. E a chave é encontrar outras alternativas e outras possibilidades de ser e de exercer a própria subjetividade, lição que alguns personagens aprendem em suas jornadas pessoais, mas que se torna mais óbvia com o sucesso da cidadezinha autossuficiente de Marrisville, em Ohio, único oásis de ordem em meio ao caos pós-praga.

As habitantes de Marrisville em “Y – O Último Homem” exercem todos os tipos de atividades possíveis para a manutenção da cidade, de cortar lenha a cuidar da manutenção e limpeza do hospital. Ao fazerem-no, superam a dicotomia de gênero e se tornam uma prova de que é possível uma verdadeira mudança de paradigma e de que ela é necessária para garantir o futuro da humanidade.

A organização da cidade, com uma liderança forte na figura da senhora Lydia, mas com várias outras figuras proeminentes, mostra ainda que é preciso abandonar vícios hierárquicos ligados à opressão e ao silenciamento para que todas participem como cidadãs. Notavelmente, é na representação dessa cidade que é possível observar a maior gama de corpos, idades e etnias distintas durante toda a série, sugerindo que é na diversidade e no exercício da sororidade que residem à força para enfrentar os desafios do futuro.

Y - O Último Homem

A história de “Y – O Último Homem” permanece, infelizmente, de extrema relevância diante do cenário atual. Se o mundo fosse acometido por uma praga nos dias de hoje, as consequências não seriam tão diferentes daquelas imaginadas pelos autores da série há mais de uma década. Mesmo que os percentuais de mulheres em cargos de poder e funções tradicionalmente masculinas estejam ligeiramente diferentes daqueles apresentados no quadrinho, ainda há muito o que ser feito para chegarmos à paridade. As culturas são sim, mais resistentes que os corpos, mas estão longe de serem permanentes.

Vencedora do prêmio Eisner de Melhor Série Continuada em 2008, “Y – O Último Homem” vale a leitura tanto por sua qualidade narrativa e gráfica quanto por suas indagações pertinentes. Os conflitos físicos e sequências de ação se equilibram bem com os aspectos dramáticos e psicológicos dos personagens, tudo isso com uma pitada de ironia e alguns aspectos surpreendentes, como a forma orgânica com que é inserida a metalinguagem dentro do quadrinho. Com um desenho consistente, diálogos afiados, personagens cativantes e bem construídas, “Y – O Último Homem” tem o mérito de fazer refletir ao mesmo tempo que entretém, fisgando a leitora desde a primeira página e corroborando o status de Y como um dos novos clássicos das graphic novels americanas.

Autora convidada: Jane Carmen Oliveira é ilustradora freelancer formada em Cinema de Animação. Aprecia um bom papo, adora livros, quadrinhos, animações 2D, filmes antigos e quase tudo que vem junto com o rótulo de pseudocult. Detesta bife de fígado, café e escrever autobiografias. Gastou meia hora para escrever essas linhas.

Y – O Último Homem

Brian K. Vaughan e Pia Guerra

Editora Panini

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