Respiro: a jornada de uma garota no Irã e o cinema de Narges Abyar

Respiro: a jornada de uma garota no Irã e o cinema de Narges Abyar

Respirar não é uma opção. É uma necessidade. Se não respirarmos, morremos. Mas, usualmente, apenas voltamos nossa atenção para a respiração quando ela nos falta. É algo que tomamos como certo, mas não é. “Nafas” é o nome persa, em inglês o título é “Breath”, e em português é “Respiro“. Nafas é também sopro, respiração. A diretora e roteirista Narges Abyar disse em entrevista que o título representa “vida, medo e esperança“.

Apesar de o filme ter recebido indicações e prêmios, a diretora sofreu críticas em seu próprio país, acusada de ser anti-islâmica, principalmente pela mensagem contra a guerra que é transmitida. Mas Narges Abyar também afirma que ela está acostumada a ser alvo de críticas simplesmente pelo fato de ser mulher: “No Irã, como em muitos outros países, as mulheres são desdenhadas, consideradas cidadãs de segunda classe … Como mulher, se você quer produzir novas ideias e ser bem-sucedido, você tem que lutar”.

Respiro
Na foto: a diretora Narges Abyar durante as filmagens do filme. (reprodução)

A diretora também afirmou encontrar dificuldade para apresentar seu filme por causa da crescente onda de xenofobia, que considera todo o povo islã como terrorista – a mesma onda que faz um país considerar os estrangeiros que buscam asilo como invasores. Abyar é graduada em Literatura Persa, é escritora de livros infantis, juvenis e para adultos. Sua carreira no cinema, como diretora, se iniciou em 2005. Abyar também já produziu diversos documentários sobre os conflitos entre o Irã e o Iraque.

CENÁRIO POLÍTICO

Respiro
Imagem: filme “Persépolis” (reprodução)

O filme “Persépolis” (de Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud, França, 2007) também trata sobre o conflito no Irã. É baseado na autobiografia da iraniana Marjane Satrapi, escrita no formato HQ, e mostra a questão da liberdade de ser mulher, de ter escolhas. A história em Persépolis acontece na mesma época da do filme “Respiro”: quando, no Irã, a mulher sofreu a imposição de leis ainda mais limitantes e perdeu todos os direitos que havia conquistado.

Um pouco de História

O Irã era parte do Antigo Império Persa. Ele foi regido por Xás, que são um tipo de rei, e sua ideologia era próxima da do Ocidente. Mas, em 1979, o Xá é deposto, e o Irã passa a ser a República Islâmica do Irã, cuja liderança política é também religiosa, o sistema dos aiatolás. E leis mais duras e retrógradas passam a imperar, como o uso obrigatório do Hijab pelas mulheres, a Educação passou a ser diferenciada para homens e mulheres, a pena de morte foi instaurada, etc. Para entender um pouco sobre as origens históricas desse conflito, indicamos esse vídeo.

Foto: Cem mil mulheres iranianas protestaram, em 8 de março de 1979, contra o uso obrigatório do Hijab. Este foi o último dia que elas puderam caminhar sem as vestes obrigatórias do islamismo. Fotógrafa: Hengameh Golestan. Crédito da Imagem.

O FILME

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Imagem: filme “Respiro” (reprodução)

Em “Respiro” a história se passa no Irã do final da década de 1970, tendo como pano de fundo as mudanças no sistema político do Irã e o conflito com o Iraque. A história é contada do ponto de vista da menina Bahar, e é falado em farsi.

Bahar é uma menina inteligente. É a primeira de sua turma na escola. Ela vive com o pai, a avó materna, dois irmãos e uma irmã em Yazd, uma cidade nas montanhas. Antes, a família vivia em Teerã, mas o pai teve que se mudar para tentar atenuar suas crises de asma. Por causa da doença do pai, Bahar sonha em ser médica, para ajudá-lo a respirar melhor. A menina adora desenhar e ama ler. Ela rouba livros de um tio, já que não há quase nenhum recurso em sua casa, além de pouca liberdade na escola.

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Imagem: filme “Respiro” (reprodução)

Sua imaginação voa em histórias que ela mesma cria, e que são mostradas no filme como os desenhos que ela faz; suas invencionices são baseadas nos contos de seu pai, como Sansão e Dalila, Hassan (o careca) e a princesa; também nos livros que lê; e nos desenhos que imagina ver na argamassa mal passada no banheiro.

No final da história, a família volta a viver em Teerã e aí o terror dos conflitos com o Iraque se tornam mais pungentes e aterrorizantes. A história é como uma coletânea de momentos da vida da menina, não há uma linha de narrativa que conduza a um clímax ou a um desfecho lógico das ações. O filme é um apanhado de retratos do cotidiano.

INFÂNCIA INVISÍVEL

A infância é o lugar mágico, em que a realidade e a fantasia se mesclam. Independente do meio que a cerca, a criança tem a imperiosa necessidade de criar, de brincar, de ser feliz. Quando ela está em um bom ambiente, sua criatividade a diverte. Mas, quando o entorno é ameaçador, a sua criatividade em sonhar é o que a salva.

Outros filmes já exploraram esse olhar de uma criança, como vimos em “O Labirinto do Fauno” (Guillermo Del Toro, 2006), em que uma menina, que no mundo real vive em uma comunidade conturbada pela violência e guerra, encontra um labirinto no jardim da casa, que a leva a um mundo também de perigos, mas com a promessa de salvação.

Respiro
Imagem: filme “O Labirinto do Fauno” (reprodução)

Assim como no filme de Del Toro, em “Respiro” a menina escapa da dura realidade ao sonhar acordada, e seus devaneios são entrecortados pela violência, levando-nos a adivinhar a que destino são conduzidas as crianças que vivem em ambientes repressores. Essas crianças são levadas pela mão invisível do destino. Mas, esse destino não é inevitável, não é traçado por forças misteriosas: o destino é friamente arquitetado pelo mundo das guerras que as silencia.

Mostrar a guerra e seus efeitos devastadores através do olhar das crianças é uma viagem que nos leva de volta àquele lugar de magia e inocência, mas, subitamente, nos expulsa de lá, deixando-nos assombrados pela abrupta consciência de que o terror realmente existe. Nessa mesma linha, há outros filmes que podem ser indicados, como “O Túmulo dos Vaga-lumes” (1988) e o brasileiro “O ano em que meus pais saíram de férias” (2006), sobre a Ditadura Militar.

MEDO

Respiro
Imagem: filme “Respiro” (reprodução)

“Respiro” não é apenas sobre a infância roubada. Mostra também a disparidade entre a vida do homem e da mulher. Assim como no filme brasileiro “Sudoeste” (2012), a mulher é levada pelo vento, como uma folha, e são nulas as chances que ela tem para tomar as rédeas de sua própria vida. Mesmo sendo a vítima, ela é invisível, nem sua dor é levada em consideração, e sua própria existência parece não deixar rastros.

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Imagem: filme “Sudoeste” (reprodução)

Quero ser um garoto”, é o que Bahar diz, sem pestanejar, quando seu pai pergunta a ela o que ela quer ser quando crescer. “Quero ser um garoto”. Porque assim ela não precisaria se preocupar se seu cabelo estivesse desarrumado ou em não conseguir casar. Não teria esses medos. O pai dela, então, conta a história do quebrador de pedras. Essa história não é narrada no filme, mas pode ser conhecida aqui. E a mensagem desse conto é a de que cada um é forte quando encontra sua identidade e sua essência. O pai não quer dizer para a filha que ela tem que se conformar, mas o pai diz, através do conto, que a mulher é, sim, tão forte e capaz quanto um homem.

Bahar pensa muito sobre a paixão. Ela até se interessa por um dos meninos de sua classe, mas ele é rude com ela quando percebe que ela é quem foi a primeira colocada em sua turma. Ser bonita e se casar não são sonhos, não são nem opções, mas são imposições feitas a ela, e que a assombram.

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Imagem: filme “Respiro” (reprodução)

Na escola, a professora a ajuda, reconhece sua inteligência, e até dá de presente um par de tênis (ao notar a pobreza em que vivia a criança), mas a professora logo desaparece, e seu substituto é violento e constantemente ameaça a menina.

Em casa, o pai é amoroso, mas está sempre ausente por conta de seus trabalhos. A avó que a cria é presa a superstições e quase caricata, mas pode também representar a realidade das mulheres das quais são retiradas as opções. A avó é uma mulher que vive para a família, cuidando das crianças, interagindo com as outras mulheres e também imersa na religião. A avó também diz verdades, ela diz, por exemplo, que antigamente não havia coisas de meninos e coisas de meninas, que um barco era um brinquedo perfeitamente normal para uma menina ou para um menino. Em outro momento, a avó diz à menina que “ler muito enlouquece”. Nessa sequência, a menina acaba por concordar com a avó e atira o livro que lia no riacho, assim que chega ao trecho onde a “mocinha, ao encontrar seu amado, em vez de ser feliz para sempre, morre”.

Respiro
Imagem: filme “Respiro” (reprodução)
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As mulheres à volta vivem para o ambiente doméstico, para o casamento. Mas não são dóceis. Em uma das cenas, uma das esposas reclama do marido e do limitado papel que a ela é dado, mas ela é completamente ignorada, como se não existisse, como se fosse invisível. Essa mulher resmunga quando o marido diz a ela que “o rancor endurece o coração”, a mulher resmunga algo como “não é isso que endurece o coração”.

Tudo é opressor para a menina Bahar: há as ameaças de bombardeio, há o garoto que a ignora na escola, a avó que a agride, os professores que são violentos, a quase constante ameaça verbal e física. Como respirar em um ambiente desses?

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Imagem: filme “Respiro” (reprodução)

ALMA

A menina ganha um barco de brinquedo. A menina que não conhecia o mar. Só a vemos com o barco quando ela está doente, em um tonel de água com cal. E ela não brinca com o barco em nenhum momento, e o barco não conhece a água pura, a não ser no final da história, o que nos faz pensar em ser ele uma metáfora para a alma, aprisionada, sem ter como navegar.

Em uma outra cena, a menina segura um peixinho nas mãos, fora da água, e o observa, depois ela o devolve ao córrego. Respirar não é uma opção, é uma necessidade: o peixe morre se não respirar, o pai morrerá se a asma piorar e ele não respirar.

O filme começa com uma das cenas principais que vemos ao final, sendo assim uma espécie de tragédia anunciada – todas nós desconfiamos qual será o destino da menina. E quando pensamos que haverá uma esperança, que algo será feito para realmente ajudá-la, que ela encontrará alguma redenção ou amor, não há continuidade, e o momento se vai, e nada é oferecido à menina.

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Imagem: filme “Respiro” (reprodução)

ESPERANÇA

Os diálogos são entrecortados por cenas de beleza idílica, em câmera lenta, como as crianças brincando de guerra de travesseiros e as penas enchendo o ar; a menina correndo com o primo pelos campos de trigo; a menina lendo, deitada no chão forrado de casulos de bicho-da-seda; a menina girando no balanço. Essas cenas são o respiro, são o fôlego, e nos dão a sensação de que há beleza, de que há felicidade e esperança. Mas essas cenas estão sempre em câmera lenta. Como se, para conseguir ser, para ter a chance de viver, a menina tem que estar em outro tempo, em outro lugar, em outra realidade – semelhante à experiência de Malala, cuja sobrevivência apenas foi possível quando saiu do Paquistão, depois de passar por um caminho de violência e de sua quase morte, e ela, então, conseguiu brilhar e sua luta teve mais resultados.

Respiro
Imagem: filme “Respiro” (reprodução)

VIVER SEM MEDO E COM ESPERANÇA

Bahar é o nome da menina, mas também significa “Primavera”. Há nela a semente da esperança, toda uma estação de possibilidades que irão florescer caso não a arranquem pela raiz. O filme não quer, prioritariamente, discutir o conflito Irã e Iraque, mas sim nos mostrar que tipo de futuro existe para uma menina – mesmo que ela seja inteligente e tenha um grande potencial. E nos alertar para o fato que, muitas vezes, pode não existir um futuro. Que, muitas vezes, a mulher é tão sufocada que ela não tem a mínima chance de ser nada além do que impõem que ela seja. Muitas mulheres lutam e muitas perecem.

Respiro” nos alerta para o fato de que a mulher ao redor do mundo ainda é massacrada, ainda vive sob opressão, com medo e sem esperança. Em muitas regiões, a mulher nem chega à idade adulta, ela é subjugada pelo casamento infantil, ou é silenciada pelas proibições impostas pelo Estado ou religião (como o acesso à Educação), ou ainda é considerada propriedade de um homem. Portanto, se nós conhecemos a liberdade, ela não deve ser tomada como garantida, nem tranquila, nem suave. A liberdade da mulher é refeita todos os dias, tem que ser reafirmada a cada passo, a cada respiração.

Autora convidada: Érica Bombardi é escritora e freelance em edição de texto. Publicou livros e vários contos, como os livrosCanto do Uirapuru” (2016) e “Além do deserto” (2012), e os contos “A Caçadora de Dragões D’Água” (2015), “Por dentro” (2014), além dos ebooks “Nunca pare no acostamento” e “As chaves do invisível” (Amazon, 2018). Tem algumas premiações literárias, como o livro “Canto do Uirapuru” que recebeu o Prêmio Literário Biblioteca Nacional, categoria juvenil (RJ, 2016). Onde encontrar suas poesias e crônicas.

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