Quando peguei o primeiro romance da escritora G. Willow Wilson para ler, estava esperando uma leitura confortável e rápida. Não poderia estar mais enganada. A escrita de G. Willow Wilson (também é roteirista de quadrinhos como a graphic novel “Cairo” e a nova fase da “Ms. Marvel”) é bem gostosa de se acompanhar e os capítulos correm despercebidos, o mesmo não se pode dizer sobre as reflexões que o livro traz.
Para saber, “Alif, o Invisível” trata da história de um hacker que usa a primeira letra do alfabeto árabe, o Alif, como seu nickname. Ele é um garoto pobre, fruto de um segundo casamento de seu pai árabe com a mãe indiana e se recente pelo fato de não ser bom o bastante para o pai e sua família de casta superior.
A história se passa na Cidade, um emirado fictício que poderia muito bem se tratar de qualquer estado muçulmano fechado e com forte censura aos meios de comunicação. É nesse lugar que Alif realiza o trabalho que faz melhor: ele usa seus conhecimentos sobre computadores e rede de internet para proteger sites em diversos lugares contra o poder do governo, que os hackers apelidaram de “A Mão”. Não há nada de nobre nesse trabalho, seus clientes podem ser tanto feministas; um site de pornografia; ou um partido de extremistas religiosos. Para Alif eles significam dinheiro e ele não pensaria duas vezes em abandoná-los para salvar sua pele.
As coisas começam a mudar quando a namorada de Alif, Intisar, uma garota árabe rica, termina o relacionamento dos dois para se casar com um pretendente escolhido para ela pelo pai. Alif, em um arremedo de maturidade decide tornar-se invisível para Intisar, escrevendo um programa, o “Tin Sari”, que identificasse os padrões de escrita da garota, seus históricos de busca, o perfil de seus usuários de rede e a bloqueasse totalmente. Assim, mesmo que Intisar mudasse de computador ou criasse novos usuários de e-mail, ela não seria capaz de encontrar nada sobre Alif, ou entrar em contato com ele, jogando, metaforicamente, um véu de estanho sobre a garota.
Em uma última tentativa de contato, Alif manda sua vizinha e amiga de infância, Dina, levar uma caixa contendo alguns pertences de Intisar, que retorna o gesto enviando um livro raro e antigo para Alif, o Alf Yeom, Os Mil e Um Dias, uma narrativa dos djins sobre sua história, e é aqui que a história realmente começa.
Fica claro para mim que “Alif, o Invisível” é uma declaração de amor de Wilson, americana convertida ao islã, para a cultura do oriente médio que é muito rica. Nesta cyber fantasia quase distópica a autora reúne a modernidade do mundo conectado dos computadores e fibra óptica, aos milênios de tradições religiosas e mitológicas dos povos do oriente médio, mas acima de tudo, este é um livro para provocar a nós, ocidentais, e nossas visões limitadas do que são essas tradições.
Alif é um descrente, apesar de sua criação dentro das normas da religião, sua visão amargurada da sociedade à sua volta vive em conflito com sua necessidade interior de ter algo a mais em que acreditar. Outros dois personagens vivem em constante conflito com Alif devido a sua descrença. Dina, a garota egípcia que o conhece desde a infância decidiu aos doze anos que usaria o niqab, cobrindo seu rosto como forma de devoção, apesar da desaprovação dos pais e o Xeque Bilah, sacerdote da mesquita de Al Basheera, a maior, mais antiga e respeitável mesquita da cidade.
Entre os embates filosóficos desses personagens, que beiram à pregação, Wilson delineia sua própria visão do que é a religião muçulmana e tenta quebrar os esteriótipos que foram difundidos no ocidente, principalmente pós o 11/09. Ainda assim, ela tenta ter uma visão imparcial de alguns problemas sociais, como a falta de liberdade de expressão, a desigualdade social extrema, o racismo e o machismo da sociedade. Este último é mostrado através de comportamentos de Alif, que despreza o marasmo da vida cotidiana por considerá-la feminina e provinciana demais, a ponto de não se incomodar em dirigir nenhuma palavra de afeto à mãe ou à empregada que trabalha em sua casa.
Em contraponto, a autora procura mostrar o olhar feminino da própria religião. Enquanto aqui no ocidente somos levadas a pensar que as mulheres muçulmanas estão subjugadas por sua religião, Wilson mostra que não é bem assim e ilustra a liberdade existente por trás do véu, como nas palavras do Xeque Bilah para Alif quando diz que: “Apenas a uma mulher é permitido observar sem ser vista”.
Apesar do esforço, ao meu ver a autora falhou na construção de suas personagens femininas tornando-as meros fantasmas dos personagens masculinos à sua volta. E aqui preciso dar alguns *spoilers* então, prossiga por sua conta e risco.
No livro temos uma série de personagens femininas: Dina, a vizinha de Alif, Intisar sua namorada, Sakina e Azalel, que pertencem ao povo dos djins, mencionados no Corão como parte da criação divina, mas separados dos homens e, por fim, a convertida, que como sua própria alcunha deixa claro é uma americana convertida ao islã.
O problema com essas personagens começa no momento em que seus arcos narrativos são apenas reflexos da história dos homens que movem os acontecimentos. Dina é uma figura santificada e unidimensional, seus julgamentos morais nunca estão errados, desde quando adverte Alif sobre os perigos das metáforas, até quando julga o caráter de Intisar com base em sua casta social. Ela sempre tem as respostas para todos os problemas e nunca questiona suas escolhas pessoais ou sua fé, nem mesmo quando um grupo de demônios os ataca. Ah, ela também esperou por dez anos que Alif acordasse pra vida e notasse que ela o amava. Enquanto Alif evolui durante a narrativa fazendo com que nós gostemos cada vez mais dele, Dina já nasceu pronta e deixa pouco espaço para a identificação do leitor com ela.
Falando em Intisar, sua falta de coerência só pode ser justificada como uma saída fácil para que Alif percebesse que o que ele sentia por ela não era amor (era cilada) e começasse a reparar em Dina, sua verdadeira prometida. Intisar é quem encontra o Alf Yeom e percebe o quão perigoso ele pode ser nas mãos erradas -no caso seu noivo- é ela quem o entrega a Alif para que o proteja, mas alguns capítulos depois ela deliberadamente o trai, sem nenhum remorso moral ou social pelos seus atos, apenas uma menina rica e mimada.
A figura da convertida é a mais decepcionante. Uma pintura patética de uma mulher carente a quem nem a dignidade de um nome foi dada e que aparentemente só serviu para um casamento às pressas para não sentirmos o baque da morte de um personagem querido.
As djins são ainda mais subutilizadas, servindo apenas como um “deus ex machina” para o sucesso da empreitada de Alif. Ainda assim o livro vale muito a pena pelas reflexões sobre as distopias reais no nosso mundo, como Estados de regime totalitários erguidos com base na opressão de seus povos e até mesmo sobre a importância da internet para a difusão de ideias que alimentam as revoluções que vemos atualmente e também pela criatividade em inovar dentro do gênero fantástico, trazendo personagens, mitologias e locais fora do eixo América-Europa. O estranhamento causado pelo livro é proposital e me fez desejar que, em futuras reedições, fosse anexado um glossário para termos religiosos e palavras em árabe que são difíceis de assimilar.
- Alif, o Invisível
- G. Willow Wilson
- 352 páginas
- Editora Rocco
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