[QUADRINHOS] As muitas mulheres africanas em “Aya de Yopougon”

[QUADRINHOS] As muitas mulheres africanas em “Aya de Yopougon”

Há anos atrás, quando eu era adolescente e sentia vergonha do meu cabelo cacheado, uma pessoa me disse que eu tinha raízes africanas, que meu cabelo era parte dessa identidade. A partir desse dia eu passei a me enxergar de outra forma, tinha em mim um sentimento de pertencimento que não existia antes. A África passou a ter um significado pra mim muito diferente do que como eu costumava olhar. E no meio de tanta produção mostrando o lado triste e assustador do continente, hoje posso dizer que quem me apresentou a beleza e a vida cheia de cores da África foram as mulheres.

A África costuma ser retratada como um continente de extrema pobreza, fome, doenças e conflitos. A representatividade também ameniza fronteiras e histórias únicas, como explica a escritora africana Chimamanda Ngozi Adichie em sua palestra no TED, “O perigo de uma única história”. É preciso olhar e olhar de novo. Então quando entrei na loja de quadrinhos e vi Aya sorrindo na prateleira, não tive dúvidas de que estava me chamando.

 

Aya é uma menina de 19 anos, que mora na comunidade de Yopougon, região pobre de uma das cidades mais ricas da Costa do Marfim, Abidjan, nos anos 70. Ela foi criada pela escritora Marguerite Abouet, que também é natural de Abidjan, transformando a história num olhar muito pessoal sobre a própria cidade. E a arte é do marido de Marguerite, Clemént Oubrerie, parisiense apaixonado não só pela esposa como pela Costa do Marfim.

O quadrinho segue de perto a vida de Aya e de suas duas melhores amigas, Bintou e Adjoua, além de suas familias. As três garotas tem planos completamente diferentes para o futuro, mas se apoiam e se incentivam como podem, mesmo que algumas diferenças às vezes atrapalhem. Aya quer ser médica e não descansa dos estudos, enquanto suas amigas estão convencidas de que arrumar um marido seja um caminho mais realista.

 

“Aya de Yopougon” mostra um lado divertido da vida dessa pequena comunidade, com muita dança, paquera, confusões engraçadas. E também retrata com naturalidade e seriedade a tradição patriarcal, o machismo ao qual as mulheres eram submetidas e as diferenças sociais.

A sororidade é um ponto forte do quadrinho. Com discrição e leveza, Aya chama a atenção das amigas para coisas que elas não costumam dar importância, como o cuidado com o corpo, a responsabilidade em relação a filhos. E essa cumplicidade vai muito além da amizade das três, inclui também as mães, tias e outras mulheres que vez ou outra se ajudam ao longo da história, mesmo que seja preciso fazer um escândalo. 

Não bastasse o roteiro cheio de energia de Marguerite Abouet, o traço leve e as cores fortes de Clemént Oubrerie são um espetáculo visual, e ouso dizer que muito melhor apresentado que na adaptação para a linguagem audiovisual. Os desenhos são uma leitura maravilhosa da cidade de Abidjan, com o pôr-do-sol, os dias limpos, noites estreladas, vilarejos arborizados, regiões urbanizadas. Cada detalhe parece descompromissado e ao mesmo tempo cheio de sentido.

E para completar, cada edição traz no final um anexo com um dicionário de expressões usadas no quadrinho e também receitas de pratos típicos da região, informações sobre uso de tecidos estampados e tradições locais. Muito bom pra quem se interessa por apropriação cultural, já que roupa, cabelo, tudo é expressão de uma cultura muito maior que nós mesmos.

Infelizmente para nós, pobres mortais, dos 6 volumes lançados de “Aya de Yopougon”, só 2 volumes foram publicados no Brasil. Apesar do sucesso do quadrinho nos países de língua francesa, tendo vendido mais de 500 mil exemplares e ganhado vários prêmios lá fora, não existe nenhuma pista sobre as continuações das traduções por aqui.

“Aya de Yopougon”, volume 1 e 2, foram publicados pela Editora LP&M. E a gente fica na expectativa pelos próximos volumes, que mal conheço e já considero pacas. E pra quem não vai aguentar o suspense, também dá pra conferir o filme que a gente comentou um pouquinho na nossa lista de animações com protagonismo feminino.

 


 

Aya De Yopougon – Vol. 1

Marguerite Abouet, Clément Oubrerie

Editora LP&M

112 páginas

Compre aqui: Amazon


 

Aya De Yopougon – Vol. 2

Marguerite Abouet, Clément Oubrerie

Editora LP&M

128 páginas

Compre aqui: Amazon

Escrito por:

39 Textos

Bagunceira e bagunçada, por dentro e por fora. Prefere ver séries em maratonas, menos Game of Thrones, porque detesta spoiler. Totalmente apaixonada por desenho e animação. Tem mania de citar filmes em conversas, conselhos, brigas ou onde couber uma referência. Prefere gastar dinheiro com quadrinhos do que com comida, sendo muito entusiasta do quadrinho nacional e graphic novels em geral. Formada em Jornalismo, mas queria mesmo trabalhar com roteiro e ilustração.
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