A Atração: ressignificando as sereias da Disney

A Atração: ressignificando as sereias da Disney

A mitologia das sereias é bastante conhecida e tem algumas particularidades em cada região do mundo. O primeiro longa-metragem da polonesa Agnieszka Smoczynska, A Atração, foi a sensação do último Festival de Sundance com o qual saiu com o Prêmio Especial do Júri.

A fim de contar um pouco da sua experiência particular de ter crescido em um ambiente de clubes noturnos, mas sem pretender se expor de forma autobiográfica, a diretora junto com o roteirista Roberto Bolesto, optou por filmar uma fábula de horror musicada recheada de surrealismo.

Se as sereias, no nosso imaginário regado à Disney, habitam um mundo de fantasia repleto de beleza e feminilidade, as de Agnieszka Smoczynska foram buscar nas de Homero um lado visceral e antropofágico. No filme polaco, elas não vivem num lago encantado, mas em um clube noturno da Varsóvia dos anos 80.

Devoradoras de homens, imbuídas de uma natureza selvagem e sedentas por sangue e carne humana, Prateada (Marta Mazurek) e Dourada (Michalina Olszanska) são descobertas por uma família que decide fazer delas a maior atração desta boate decadente.

Cena de "The Lure" (2015)

A opção extravagante de contar essa história, geralmente pueril, através de um filme musicado de terror é o grande diferencial da diretora. O apuro estético salta aos olhos, pois a fotografia, a direção de arte, a maquiagem e a cenografia não poderiam ser mais acertadas. A inspiração e homenagem ao filme As Pequenas Margaridas, da cineasta checa Věra Chytilová, ficam bastante evidentes em diversos momentos.

De igual forma, todos os personagens, mesmo os mais periféricos, estão bem trabalhados e servem de forma eficiente ao conjunto do argumento. Porém, o filme perde um pouco de ritmo na metade final, na qual alguns números musicais poderiam ser dispensados, mas consegue retomar seu fôlego num desfecho macabro. Ressalte-se, ainda, o incrível desenho de som que causa as mais diversas sensações no espectador, fazendo intersecção entre plano, contraplano e extra campo, transformando o experimento fílmico, não apenas visual e narrativo, mas eminentemente sonoro.

Numa clara crítica ao que permeia o mito do “ser mulher”, a diretora cria duas personagens extremamente interessantes na medida em que algumas surpresas são reveladas ao longo da projeção, inclusive em relação aos seus órgãos genitais. Há uma clara repulsa à imposição fetichista, a la Playboy, e fashionista, que desenha as mulheres de carne e osso como bonecas “barbies” em um cena impagável, em que as irmãs sereias fazem compras em uma loja de departamentos cercadas por um exército de mulheres comandado pela personagem interpretada por Jakub Gierszal, que acaba sendo uma espécie de tutora para as moças no mundo fora das águas.

Cena de "A Atração" (2015)

A mulher objeto, a mulher coisificada, a mulher que vira atração para olhos sedentos de homens que não as percebe nas suas subjetividades é posta de lado aqui, já que as protagonistas travam um embate sobre esse padrão de feminilidade imposto pela dominação masculina, colocando em cheque ainda o ideal nefasto de amor romântico, costumeiramente vendido pelas produções Hollywoodianas, que aprisiona e mata muitas mulheres em todo o mundo.

Em um ano em que o filme Raw, dirigido pela francesa Julia Ducournau, já havia impactado diversos espectadores, para falar de assunto similar utilizando a metáfora do canibalismo, Córki Dancingu (no original) também surpreenderá na medida em que subverte o imaginário mitológico da sereia ao utilizá-lo com uma linguagem pouco convencional. Certamente não é à toa que no auge da primavera feminista duas diretoras escolham flertar com o gênero de terror para falar sobre a condição das mulheres em seus filmes.

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Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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