Ao menos desde a estreia de “Histórias Cruzadas” (2011), Hollywood nos deve um filme sério, “real” e respeitoso, protagonizado por mulheres negras. E quando falo protagonizado, quero dizer que somos instruídas o bastante para saber que tempo em tela, nome nos créditos e sobreviver no final não tem exatamente a ver com importância. Eu falo do valor da negritude e o poder de protagonizar o querer e gerenciar a própria vida sem intermediárias.
Aquele filme desnudou a necessidade de propor personagens com histórias próprias, sem o branco salvador, sem meritocracia, sem homens brancos abusivos, e, acima de tudo: sem whiteporn – a exposição de pretos sofrendo, só pra continuar a repetir o que todo mundo já sabe. Já vimos isso demais e com grande destaque nos últimos anos, ao passo que produções incríveis como “Bessie” (Dee Rees, 2015) ou “Crazyhead” (Howard Overman, 2016) não foram divulgadas o suficiente. Como um amplo gesto de reparação, “Estrelas além do tempo” (Hidden Figures, 2016) chega nos cinemas brasileiros em 2 de fevereiro de 2017.
Primeiros Passos
O primeiro aspecto que me chama a atenção na produção audiovisual são os créditos iniciais. Se há personagens negras conhecidas, fico buscando seus nomes e, quando as desconheço, fico brincando internamente de descobrir qual dos nomes são os delas. Com o tempo, você pega a manha e, na maioria das vezes, descobre mesmo. Quarto ou quinto nome, mesmo quando os papéis são relevantes. Em “Crazyhead” minha cabeça explodiu quando li o nome da Susan Wokoma, mesmo que em segundo lugar – significa muito e, ao menos, a sobrevivência em tela! Mas a surpresa e admiração maior veio no trailer de “Estrelas além do tempo”. Os nomes de Taraji P. Herson, Octavia Spencer e Janelle Monáe estão no topo, com letras maiores e todo o destaque que merecem.
Elas trazem à luz três mulheres negras que foram imprescindíveis às operações espaciais no auge da Guerra Fria: Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson. Um aspecto crucial como os créditos iniciais junto ao cartaz do filme revelam que, a despeito das violências, do racismo e sexismo, nós também podemos existir de forma plural, para além das repetidas cenas de escravização e do trabalho doméstico. Diferente das horrendas cenas vividas por Brunhilde (Kara Washington) em “Django: Livre” e Aibileen Clark (Viola Davis) em “Vidas Cruzadas”, eu finalmente me vejo em cada uma delas.
Verdade, Realismo e Crueldade
Muita gente poderá argumentar que “Histórias Cruzadas” é um filme realista, porque “a vida para negros naquela época era assim mesmo”. O que esse tipo de perspectiva não compreende é a diferença de narrar a experiência negra por meio de interpretação branca e a narrativa de quem foi segregada realmente. O que estou pondo em jogo não é a capacidade ou não de alguém descrever a sensação do outro, mas a disputa discursiva sobre a “verdade” da escravização.
Não é agradável estar associada a uma história de derrotas e sujeição. É doloroso. E não apenas pelo passado: a forma como o racismo é expressado cotidianamente, faz com que não esqueçamos por um só instante que, onde quer que estejamos, as circunstâncias das plantation serão atualizadas. Neste sentido, mais doloroso que o fato em si, é a reiteração duma narrativa que assujeita negros e nos submete à bondade branca. Quando não é sobre a morte da inocência (não saber que a dor do outro existe) o que motiva a pessoa branca é o interesse próprio. Ambos reforçam a importância e civilidade branca e apagam traços de humanidade negra. “Vidas Cruzadas” não faz brancos chorarem porque é triste, mas porque “como alguém é capaz de separar banheiro?”.
Em contrapartida, o choro é pouco no país em que garotas trazidas para o lar são quase da família, até que o estupro gere filhos. Esta história não é digna de choro porque enfatiza o papel real do privilégio, porque sendo sintética, privilégio é aclamação geral para oprimir, e raramente opressor gosta de se ver assim. Ele gosta de se ver como justo, bom e esforçado. Racismo “é errado”, eles dizem. Por que o errado emociona tanto?
Aristotélicos dirão que é o reconhecimento do real, a tal da mimesis. Mas meus óculos fazem crer que “o real” é que o conforto de um silencia a dor do outro, a ponto do sotaque universal do “dialeto negro” tornar reconhecível o sujeito ainda que desencontrado de imagem. Essa paixão pela ignorância, essa negação do próprio envolvimento presente com a escravidão, gera altos investimentos em produções hollywoodianas que ocultam Angela Davis, Assata Shakur, Audre Lorde e Alice Walker, a menos que nós por nós façamos “Preciosa”, “A Bem-amada”, “Queen Sugar”, “I Will Follow” e “Middle of Nowhere”.
Assim como Poussey (Samira Wesley) não precisava morrer daquela forma em “Orange is the New Black“, não precisávamos assistir a Viola Davis comparando sua pele à cor duma barata em “Vidas Cruzadas”. Ninguém precisa aprender mais sobre o branco significar uma neutralidade corruptível por outras cores. Ninguém precisa, em 2017, de se enxergar como pessoa “de cor” a menos que branco também o seja. Racismo não é sobre cor, mas sobre definição política. Pode parecer que não, mas todo mundo sabe quem é negro e quem é branco. Na prática, a porcentagem faz diferença no preterimento de quem se autodeclara branco, principalmente mulheres (Diego Nogueira é considerado austríaco, mas se fosse mulher não deixariam passar, né).
Além disso, diferente do que “Histórias Cruzadas” tenta convencer, os anos 1960 foram marcados por lutas. Sim, a população negra (inclusive apoiada pela amarela) lutou em diversas frentes (artística, religiosa, armada, educacional e nas atitudes diárias, como Rosa Parks). Apesar das protagonistas de “Estrelas além do tempo” não serem engajadas no movimento pelos direitos civis, há cenas de protesto. As lutas individuais de Dorothy Vaughan, Katherine Johnson e Mary Jackson são atos políticos. Elas não se deixam abater, apesar de todas as agruras.
Logo no início, as três cientistas estão paradas na estrada rumo ao trabalho, quando são abordadas por um policial típico. Ele não apenas encarna a cidadania estadunidense, como age com desconfiança em relação às mulheres. Quando ele diz: “Eu não sabia que a NASA contratava….”, elas sabiam que, de forma alguma, deveriam tornar o “racismo” real, mas não se resignam: “sim, há poucas mulheres”.
Antes disso acontecer, Dorothy tenta consertar o carro, e Mary se irrita com a “sucata”. Dorothy logo explica, com bom humor, que ela pode ir no banco de trás (onde se encontravam os bancos para negros). É de se pensar o esforço da cientista para adquirir o carro como forma de resistência àquilo. Quando ele se aproxima, o temor (tão atual) vem da inconstitucional criminalização da negritude, do poder que pende para um só lado. Não apenas a revanche de Mary ao perseguir o policial, como a ironia, conferem as três o lugar de sujeito que tanto precisávamos ver como real no cinema.
E por que “Histórias Cruzadas” reitera a aceitação? Por que ignora os abusos domésticos? Por que mostra que negros devem amar os brancos mais que a si mesmos? Por que investe tanto em dizer que “nem todo branco”? É simples: porque “Histórias Cruzadas” é um filme de mulher pra mulher (branca). Muitas mulheres devem ter se sentido mais fortes, quando Aibileen repete: “você é inteligente”. Não é difícil encontrar mulheres bem intencionadas que queiram pesquisar, entender, escrever sobre mulheres negras. Difícil é reconhecerem os privilégios e abrirem mão deles. “Histórias Cruzadas” define bem esse gosto pelo exótico, menor, naif, que reduz o racismo à imoralidade, muitas vezes abstrata. Noutras palavras: “O racismo, ele existe. Somos racistas? Não”.
“Estrelas além do tempo” não deixa passar nenhum dos modos de racismo. Sim, todos os brancos do filme são racistas porque o sistema os constrói assim, porque é mais confortável viver a ficção de superioridade. Da sutileza dum olhar, ao desprezo expressado em alto e bom som, tudo passa por um claro comentário retórico. Não há salvadores, não há uma consciência benevolente. Existem negociações que abrem caminho para afetos, compreensão e reconhecimento. Como não é um filme para aliviar subjetividades brancas, as cenas de violências são abordadas sem gatilhos, e sim, como denúncia.
Um aspecto que particularmente me doeu em “Histórias Cruzadas” foi a crueldade na forma do papel dado a Octavia Spencer. Uma caricatura multicultural, que nós chamamos de Tia Benta. Spencer ganhou um Oscar amargo, que reforça o abismo de oportunidades que separam mulheres de homens, negros de brancos, e mulheres velhas de homens “charmosos”. Spencer, apesar do talento, em “Histórias Cruzadas” é reduzida à interseccionalidade que representa sob o olhar da matriz autoproclamada ideal. Finalmente, em “Estrelas além do tempo” a sua habilidade de atuar foge à simbólica violência de representar a cidadania de segunda classe, como se fosse assim. A perversidade maior é pensar que, não fosse o destaque de “Histórias Cruzadas”, talvez Octavia Spencer não tivesse sido cotada para revelar uma verdade sobre a NASA: nós estivemos lá!
Longe de estar pronto pra reparação
A imagem mental construída desde a nossa infância é a de que ciência é produção de Verdade. Junto a ela, cientistas são representados segundo o modelo eurocêntrico de um Einstein, Emmett Brown (De volta ao futuro), ou dos joviais devires-einstein, Dr. Henry Pyn (Vingadores), Cooper (Interestelar), Billy (Power Rangers), Bruce Banner (Hulk), Sr. Fantástico (Quarteto Fantástico), Sheldon (The Big Bang Theory) e Dexter (O laboratório de Dexter).
Essas imagens, repetidas mil vezes, constroem e reforçam o imaginário de forma tão naturalizada que, na cabine de imprensa da sessão de “Estrelas além do tempo”, ouvi um homem branco dizer ao semelhante “ainda bem que você veio, porque um filme como esse… precisa de comentários”, com o tom de quem está acima das coisas. Se fosse um filme sobre mulheres negras humilhadas, estupradas e aniquiladas careceria de comentários? Esse é o ponto. Se “Histórias Cruzadas”, um filme dirigido por uma mulher foi tão aclamado quanto “Django: Livre”, isso indica um problema a ser investigado.
A realidade em que vivemos possibilita a pessoas como eles – que são o que/como são – a certeza de serem sujeitos, opinarem sobre tudo, determinarem e exigirem antes de ouvir. Para a maioria das pessoas privilegiadas, a empatia é antes uma palavra rasa como um pires, e que combina com simpatia (as vezes na classe média, soa quase como sinônimo de apatia). Os dois homens me fizeram pensar na metalinguagem posta ali: uma pessoa Preta numa plateia com pessoas brancas, quase dispostas a assistirem uma história. “Quase” porque o determinante é se pessoas subalternizadas podem contar suas histórias E SEREM OUVIDAS. Vamos lá: dois pesos e duas medidas. A convenção narrativa pode ser “algo a comentar”, uma vez que não tem selo Lars Von Trier de abstração. Apesar disso, convenções narrativas são aclamadas a todo tempo: “Stranger Things“, “Interestelar” e “Star Wars“. O problema pode não ser a previsibilidade, mas, sem transparência alguma, o problema será a abordagem que não está direcionada à experiência branca masculina do processo. Quando você se sente vencedor antes da batalha, deve ser difícil assistir a duas horas de vitória alheia. Fanboys estão acostumados a serem o sol num sistema heliocêntrico (note a ficção aí) e são autorizados a todo momento, portanto, se constrangem com a segregação explícita, mas sentem um prazer secreto no sofrimento dos corpos e subjetividades diferentes da sua. Uma frase da Lady Sybylla sintetiza:
“Quando a balança pende apenas para um lado, você impede que pessoas do outro lado possam viver suas vidas. Impedidas de ter voz, você não pode conhecê-las.” via Momentum Saga
A diferença básica entre nós, que não temos peso, e eles, é a que somos fluentes nas experiências hegemônicas, mas eles não sabem o beabá sobre nós; afinal, sua sobrevivência não depende disso. Não é exagero: pergunte algo sobre Frantz Fanon, Abena Busia ou Ubuntu para eles.
Ao longo da sessão (na qual eu era a única Preta) ficou evidente o desconforto das pessoas nas cenas em que a segregação era escancarada. Entre uma forte inspiração e resmungos, a culpa e a vergonha vinham a tona, como se o que assistiam fosse um absurdo muito distante do presente. Não me leve a mal, não estou condenando o constrangimento das pessoas, apenas enfatizando que quando eu ri, eu ri sozinha. Quando eles e elas riram, sentiram um alívio coletivo. Eu ri da ignorância que pessoas racistas tendem a performar, porque o privilégio é exatamente o direito absoluto à licença poética. Direito de existir, ser, errar, não entender e não criar. E, apesar disso, sentir uma superioridade inalienável… a menos que você pense e ouça. Eles e elas riram das trivialidades da vida: lei de Murphy, tropeçar, cair e se molhar.
Se, por um lado é importante que pessoas negras sejam convidadas a assistirem a qualquer filme, não apenas a categoria “ebony”, por outro o desconforto de uma sala branca assistindo “Estrelas além do tempo” é inegável – o que deu a chance a várias pessoas de pensarem suas atitudes diárias. Para nós, “Estrelas além do tempo” é absolutamente sobre a potência de Mulheres Negras Brilhantes ocultadas até o presente. Foi o princípio de reparação que Hollywood nos devia depois do desserviço fílmico que chamaram no Brasil de “Histórias Cruzadas”, mas no fundo, foi a consequência das desgraças de caravelas terem cruzado as nossas vidas.