Queerbaiting: ainda estamos caindo na isca LGBT?

Queerbaiting: ainda estamos caindo na isca LGBT?

Queerbaiting (queer + baiting “isca”) é o termo em inglês para designar a estratégia midiática usada em diversos produtos de entretenimento – como novelas, séries e filmes – para conquistar a atenção do público LGBT sem comprometer a audiência de seu público heterossexual, trazendo assim mais lucro para a emissora.

E como isso funciona na prática? É até bastante simples: sabe aquele personagem ambíguo, que sempre protagoniza aqueles momentos abertos a interpretação, que você não sabe se é hétero ou não (e talvez ele até seja lido estritamente como hétero), mas definitivamente rolou uma tensão sexual entre ele e outro personagem do mesmo sexo? E esse relacionamento nunca é seriamente explorado ou parece ter qualquer intenção de se tornar canônico, mas vez por outra está ali, acenando para o público LGBT e deixando um “sem viadagem” para o público hétero? Então. Isso é queerbaiting.

Os criadores dizem que “ele pode ser o que você quiser, somos receptivos a interpretações”, ou que “não estou dizendo nem que sim, nem que não”, e o mais bizarro, pois deliberadamente trata o público LGBT como se fossem crianças ou idiotas, que é o: “é claro que esse personagem não é queer, não sei de onde vocês tiraram isso”. E então o show faz isso:

Queerbaiting SherlockQueerbaiting Sherlock
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E, não satisfeito, também isso:

Queerbaiting Sherlock

A isca LGBT é uma estratégia de promessa de representatividade para um público que está sedento por ela. Os produtores e roteiristas brincam com a ânsia dessas pessoas por serem vistas e terem suas relações retratadas de forma não-caricata em uma mídia de ampla difusão. Eles mostram o doce, mas o arrancam de nossas mãos quando estamos prestes a dar aquela mordida. E não estou falando aqui de ships (torcer por um casal) que não são indicados pela trama, mas na repetição consciente e maliciosa de uma nuance, uma piada, uma troca de olhares ou diálogos que, se ocorressem entre personagens de sexos diferentes, claramente seriam lidas pelo amplo público como o início de um relacionamento amoroso. Mas nunca chega a isso – e nem irá.

Aqui falaremos um pouco sobre uma série não muito popular, mas que por alguns momentos pareceu estar fazendo algo muito importante ali pelas beiradas da baixa audiência: Gotham, da emissora CW. Na segunda temporada da série foi identificada a possibilidade de um futuro casal LGBT se formar entre os personagens Oswald Cobbepot (Pinguim) e Edward Nygma (Charada). Gotham já havia usado isca lésbica antes com as personagens Barbara e Tabitha, que tiveram um breve relacionamento repleto de fetichização. Enquanto Barbara era canonicamente bi, Tabitha – uma personagem original da série – tinha tudo para ser canonicamente lésbica; até entrar em um relacionamento heterossexual.

Gotham

Na terceira temporada de Gotham tivemos o desenvolvimento do relacionamento entre Pinguim e Charada nas telas. Os espectadores estão tão habituados com o queerbaiting que muitos apostaram que a série estava seguindo com a interação dos dois para tentar subir a audiência através de marketing, mas pularam na cadeira ao ver que… bem, não exatamente.

Gotham, Penguin, Pinguim, Coblepott,

Gotham deixou aquela curiosidade para saber sobre de onde veio a permissão dos roteiristas para seguirem com esse casal, ainda mais em uma fanbase que é composta basicamente por saudosistas machos-alfa dos quadrinhos de super-heróis, que não admitem mudanças na trama e já odiavam a série por se distanciar muito dos quadrinhos.

Por que esse show, em especial, está fazendo algo diferente dos outros? O que nós perdemos aqui? Deixando à parte o fato de que o interprete do Pinguim (Robin Lord Taylor) é um ativista LGBT na vida real, e defendeu com unhas e dentes o seu personagem ser queer, a emissora acharia mais fácil arriscar em um show de baixa audiência? Poderia ser esse um teste para saber como o grande público reagiria à uma resposta canônica aos pedidos dos fãs LGBT? Ou isso ainda é uma isca, só que uma mais elaborada?

Vamos por partes.

1 – É possível fazer um show popular e lucrativo com personagens LGBT, e isso já foi comprovado.

Não é exatamente sobre audiência quando temos exemplos de shows que são um sucesso de público e/ou crítica e trazem personagens LGBT em sua trama. “Orange is the New Black, “Sense 8“, “T̶h̶e̶ ̶1̶0̶0̶” (veja comentários abaixo), “Orphan Black”, “Shadowhunters” e “Shameless” são apenas alguns exemplos de séries que têm trazido para as telas relações LGBT complexas, sem perder audiência – e muito pelo contrário, estão conquistando cada vez mais espaço!

2 – Se o personagem age de uma forma e a equipe justifica de outra fora da tela, ainda é isca.

Em “Gotham”, [SPOILER] o Pinguim é feito canonicamente gay por alguns episódios, mas Nygma não, o que é ok, não é isca se será desenvolvido e faz sentido. E fazia sentido. Enquanto nas primeiras entrevistas sobre o assunto Robin Lord Taylor defendeu o sentimento de seu personagem por Nygma, hoje, ele diz que “Oswald está confuso e não sabe o que é amor”. Agora, isso sim é uma isca e tanto. Que tremendo balde de água fria. [/SPOILER]. Essa técnica da isca LGBT de fazer comentários fora da tela é mais comum do que imaginamos e a grande campeã dessa categoria é J.K. Rowling.

Rowling não fez grandes ousadias em termos de representatividade em seus livros ou filmes, porém continua soltando pequenas iscas por aí. Mas o fato é que nós não queremos comentários ambíguos fora da tela, não queremos justificativas, queremos criadores que se comprometam com a representatividade e não brinquem com um assunto tão sério. Não adianta mostrar uma coisa e se justificar com outra. Queremos que os criadores defendam o seu posicionamento de usarem personagens LGBT na trama e deem a eles desenvolvimentos tão complexos e importantes para o enredo quanto o de seus personagens heterossexuais.

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Se existe uma grande gama de séries e filmes com personagens LGBT canônicos fazendo sucesso de público, não existe nenhuma razão além do conservadorismo das emissoras para os showhunners continuarem a usar essa tática baixa para conquistar audiência. As pessoas estão fartas de subtexto covarde. Natasia Langfelder escreveu há um ano um texto que pedia pelo fim do queerbaiting em 2016 – o que não aconteceu. Nas suas palavras:

Se o relacionamento funciona na história e os personagens tem química, por que não? Se o personagem está te dizendo que é LGBT, então faça ele LGBT. Se ele é hétero, deixe ele hétero e corte o subtexto. De qualquer forma, pare de fazer joguinhos com nosso coração; isso é condescende.

Por que ainda estamos caindo na isca LGBT? Ela já foi usada tantas vezes que é ofensivo. Os espectadores estão tão desesperados assim por qualquer tipo de representatividade torta? Não é novidade que as grandes indústrias de entretenimento são movidas pelo lucro e se apropriam daquilo que está em vista, tornando-o algo rentável. Hoje é rentável falar de representatividade. Mas apenas se utilizar da necessidade desses grupos por representatividade é imoral e absurdo.

Relações LGBT precisam ser naturalizadas. Elas são tão complexas quanto relacionamentos heterossexuais, e a visibilidade desses sujeitos na mídia precisa parar de ser feito de forma caricata ou como queerbaiting. Será que estamos mesmo tão desesperados assim? É necessário filtrar melhor que tipo de obra receberá atenção da comunidade LGBT e ficar atento a esses truques da indústria de entretenimento. Queremos comprometimento político e não devemos aceitar migalhas.

Se você assiste ao programa somente por causa desse relacionamento, pare de assistir! Eu sei que é difícil ouvir isso, mas eles NÃO VÃO TE DAR O QUE VOCÊ QUER. É por isso que o queerbaiting é tão ruim, porque manipula os sentimentos da audiência e nos faz apaixonados pela POSSIBILIDADE de um romance não-heterossexual entre personagens que amamos”.

A isca LGBT é um assunto que precisa ser encarado com seriedade. Estamos falando de manipulação psicológica de um grupo de pessoas e de seus sentimentos. Às vezes, esse sentimento pode partir de dentro da fanbase ou de fetichização projetada por fãs heterossexuais (assunto de outro artigo, mais tarde), mas estamos falando aqui de emissoras deliberadamente se aproveitarem de uma necessidade política por representatividade para atrair o lucro, sem nenhum real comprometimento com os personagens ou seus espectadores. Personagens LGBT não são alívios cômicos. Não são cota. Não são “o amigo engraçado do protagonista”. Eles estão ali para representar pessoas reais, complexas, feitas de carne, osso e história. Não vamos permitir que essa luta seja transformada em um circo; isso é doloroso e errado.

Não acabamos com a isca em 2016, mas, por favor, vamos enterrá-la em 2017.

Hugh Dancy

Escrito por:

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Renata Nolasco é ilustradora e quadrinista - assina seus trabalhos como Atóxico. Formada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, gosta de Neil Gaiman, ficção científica, pizza, quadrinhos independentes e The Authority. Queria ser a Jenny Sparks.
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