Queerbaiting: “Eles deviam ter ficado juntos!” ou fetichização de relações homoafetivas?

Queerbaiting: “Eles deviam ter ficado juntos!” ou fetichização de relações homoafetivas?

Não a primeira vez que falamos sobre queerbaiting, ou isca LGBT, aqui na Delirium Nerd. Anteriormente, discutimos a existência dessa tática entre as produtoras de entretenimento e o que isso significa para as pessoas LGBT.

Para quem não leu: Queerbaiting (queer + baiting “isca”) é o termo em inglês para designar a estratégia midiática usada em diversos produtos de entretenimento – como novelas, séries e filmes – para conquistar a atenção do público LGBT sem comprometer a audiência de seu público heterossexual, trazendo assim mais lucro para a emissora. E como isso funciona na prática?

É até bastante simples: sabe aquele personagem ambíguo, que sempre protagoniza aqueles momentos abertos a interpretação, que você não sabe se é hétero ou não (e talvez ele até seja lido estritamente como hétero), mas definitivamente rolou uma tensão sexual entre ele e outro personagem do mesmo sexo? E esse relacionamento nunca é seriamente explorado ou parece ter qualquer intenção de se tornar canônico, mas vez por outra está ali, acenando para o público LGBT e deixando um “sem viadagem” para o público hétero? Então. Isso é uma isca.

Essa isca plantada deliberadamente pelas emissoras tem diversos aspectos negativos na vida de pessoas reais que buscam por representatividade e precisam brigar diariamente por ela com a indústria de entretenimento. Contudo, existe outra tendência negativa que vem sendo confundida com isca LGBT: o uso de casais não-héteros, ou o emprego de situações que possam ser lidas como não-hétero, para fetiche de um público majoritariamente heterossexual.

Isso não é nenhuma novidade para as mulheres lésbicas e bissexuais, que por anos vêm levantando a bandeira anti-fetichização e ainda hoje têm que peitar uma sociedade que trata seus relacionamentos como ferramenta de deleite e fantasia para homens heterossexuais. Não simplificando a hiper-sexualização e objetificação do corpo feminino, é claro, que acomoda diversas nuances e camadas complexas inseridas na secundarização do feminino, mas falaremos especificamente sobre essa tendência de fetichização de relacionamentos LGBT por pessoas hétero.

Tem se tornado comum que aliados (pessoas hétero que se importam e apoiam pautas LGBT) se voltem contra criadores de séries, filmes ou livros que utilizam táticas de isca em suas histórias. O que é ótimo, certo? Mais pessoas para ajudar a parar com o queerbaiting, do qual todos nós já estávamos cansadas. Um dos casos mais populares e recentes é da série britânica Sherlock, que ao não oficializar que Sherlock Holmes e John Watson tinham sido construídos naquela interpretação para engajarem em um relacionamento homoafetivo, gerou uma onda de revolta entre os fãs para com os criadores. E sim, Sherlock foi provavelmente um dos maiores casos de isca das últimas décadas, mas é fácil se sentir incomodado ao buscar informações sobre isso, afinal: por que só mulheres hétero aqui?

Queerbaiting

A tendência de relações homossexuais fetichizadas para mulheres heterossexuais tem crescido no ocidente nos últimos anos principalmente entre os fandoms, porém já é conhecida por outros nomes, e vem com influência de histórias japonesas. Em 1980 nascia no Japão o “yaoi”, um gênero voltado exclusivamente para retratar relacionamentos homossexuais escritos por mulheres hétero e para mulheres hétero, e que significa “yama nashi, ochi nashi, imi nashi” (“sem clímax, sem objetivo, sem sentido”).

“Inicialmente, os yaoi eram desenhados, escritos e publicados pelas fãs de mangás em fanzines (dojinshi), ironizando a hegemonia masculina. Com o passar do tempo, este tipo de mangá amador começou a ganhar uma legião de fãs entre as adolescentes japonesas. Neste momento, o yaoi se consolida como um subgênero “escrito por mulheres para mulheres”. As histórias começam a abandonar o caráter de paródia, ganhando contornos próprios, sempre girando em torno do romance entre homens bonitos e jovens. O uso do tema homoerótico masculino desponta como modo de expressão feminina. Inseridas em uma sociedade machista, as mulheres japonesas passam a utilizar a relação homoerótica como espaço expressivo para suas vozes abafadas. Apoiando-se na eqüidade entre os parceiros, o discurso feminino se refugia na voz de um dos personagens que compõem o casal protagonista. Este recurso subverte as hierarquias estabelecidas, viabilizando a argumentação destas mulheres em relação a temas impertinentes à mulher na sociedade japonesa.” FONTE

Não podemos ignorar o papel inicial do yaoi em uma sociedade conservadora e masculinista japonesa, mas a chegada e popularização no ocidente fez com que o slash (como ficou conhecido ao se referir a mídias ocidentais) passasse por diversas transformações e perdesse suas raízes políticas.

Queerbaiting
Time Lady: “você poderia estar sem camisa. John com certeza iria amar isso” | Sherlock Holmes: “John é um heterossexual casado” | Time Lady: HAHAHA, boa piada” | Sherlock: “Não fetichize homossexualidade. Não é saudável e é inútil. Tente crescer” | Time Lady: “não se preocupe, eu apenas fantasio com vocês dois e o seu gênero não tem nada a ver com isso” | Sherlock: “emocionante”

Ao adquirir um propósito afastado da paródia e assumir uma literatura própria de  mulheres para mulheres representando relações não-hétero, esse conteúdo também está preenchido de carga negativa para a luta por representatividade LGBT. Essa leitura exclui a subjetividade desses grupos em prol da satisfação de seus consumidores e cria caricaturas de pessoas e relacionamentos. Quando um grande número de indivíduos que estão fora dessa realidade escrevem, consumem e reivindicam pela existência desse tipo de conteúdo, vemos a reprodução de uma visão hétero sobre como relacionamentos não-hétero funcionam. Essas obras são tão distantes da realidade das pessoas LGBT que simplesmente não tem nenhum apelo com elas; em se tratando do yaoi, os homens gays japoneses precisaram criar um novo gênero para verem histórias que lhe agradem e representem: o “bara”.

Queerbaiting
Nomeie uma dupla mais icônica do que a lesbofobia de mulheres hétero e a fetichização de homens gays… Eu vou esperar.

Os fãs desse tipo de ship/casal costumam se apegar ao título de aliados LGBT, porém dentro deste universo é muito comum que o gênero voltado para relações lésbicas seja deixado de lado ou completamente excluído da roda. Inclusive, a exaltação de homens gays e seus relacionamentos provoca um apagamento contínuo da participação de mulheres nas histórias, que muitas vezes são vistas como “a megera”, que entrou na trama somente para separar o casal e não deveria existir.

É preocupante que a busca por representatividade seja uma pauta de reivindicação real da luta LGBT e, muitas vezes, pessoas hétero tenham mais voz do que os próprios LGBT através da defesa de seu hobby ou entretenimento.

Representação na TV é uma das ferramentas políticas mais poderosas que a comunidade LGBT tem. No entanto, quando fangirls saem do reino ficcional e mulheres hétero começam a assediar casais LGBT reais sobre como eles são bonitinhos para sua satisfação pessoal, isso diminui pessoas reais e os torna em personagens que existem para o uso de pessoas heterossexuais. Quem quer ser tratado assim? Ninguém.FONTE

A defesa desse tipo de literatura com a apropriação da bandeira da isca LGBT distorce uma pauta pelo fim de uma prática nociva para os LGBT, enquanto faz a manutenção de uma outra prática nociva. É preciso vigiar para que muitos discursos fetichistas vestidos de anti-isca LGBT não sejam aceitos como verdadeiros.

Ainda não há muitos estudos que falem sobre como funciona o apelo da fetichização LGBT por pessoas hétero, mas quando isso é feito em ampla escala, temos o uso de um espaço que deveria ser destinado ao público LGBT sendo usado para a difusão de novos pré-conceitos, que muitas vezes reforçam a forma com a sociedade encara relações não-hétero ou as veste de papéis de gênero que são normalmente encontrados em casais hétero tradicionais. E uma representação caricata não é muito melhor do que não ter representação alguma.

Um questionamento que fica é se mulheres têm poder simbólico para oprimir homens – levando em conta que aqui estamos falando de mulheres hétero e homens gays. Ainda não há certezas quanto a esse ponto. Mas o que eu sabemos é que, tendo ou não, devemos estar cientes de nossas bandeiras e cuidar da forma como elas estão sendo usadas. O espaço está ali. Deixemos pessoas LGBT reais ocupá-los.

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Renata Nolasco é ilustradora e quadrinista - assina seus trabalhos como Atóxico. Formada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, gosta de Neil Gaiman, ficção científica, pizza, quadrinhos independentes e The Authority. Queria ser a Jenny Sparks.
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