[LIVROS] Leia Mulheres: A Poesia de Wislawa Szymborska

[LIVROS] Leia Mulheres: A Poesia de Wislawa Szymborska

Na categoria de março do nosso #leiamulheres, iremos passear um pouco por um gênero literário que, às vezes, fica bem esquecido quando falamos de literatura fora do meio especializado: a poesia. No nosso caso, falaremos mais especificamente sobre poesia escrita por autoras estrangeiras. Que tal conhecer um pouco mais sobre essas poetisas e suas obras extraordinárias? Para abrir o mês, escolhemos a poetisa polonesa Wislawa Szymborska.

Wislawa Szymborska teve a sua segunda antologia, Um Amor Feliz, publicada no Brasil no ano passado pela Cia das Letras. O lançamento foi um sucesso editorial e apareceu em quase todas as listas de melhores livros publicados em 2016. A primeira antologia, intitulada simplesmente Poemas, saiu em 2011, também pela Cia das Letras. Nesses dois volumes, a tradução ficou sob responsabilidade da professora e pesquisadora Regina Przybyzcien. Antes de se assustar com o sobrenome da poetisa, cheio de consoantes, a tradutora nos dá uma lição de pronúncia: lê-se mais ou menos como Vissuáva Chembórska.

Wislawa Szymborska
Wislawa Szymborska. Foto de Tomek Sikora/Forum, tirada em 30-03-2009 na Cracóvia.

 Um pouco sobre a vida de Wislawa Szymborska …

Ela nasceu em 1923, no vilarejo de Bnin, hoje parte da cidade de Kórnik, na Polônia, e faleceu em 2012, aos 89 anos. Em 1931, a sua família se mudou para Cracóvia, onde ela frequentou os cursos de literatura e sociologia  na universidade, entre 1945 e 1948, mas sem nunca terminar os estudos. Ela passou sua juventude durante a Segunda Guerra Mundial e foi testemunha de dois governos totalitários distintos. Apesar de não ser o foco de sua produção, os temas da guerra e da violência contra as liberdades individuais aparecem em alguns de seus melhores poemas, como o Os Filhos da Época, que você poderá ler logo abaixo.

A sua obra não é muito extensa, é composta de apenas treze livros: Por isso vivemos (1952), Perguntas feitas a mim mesma (1954), Chamando por Yeti (1957), Sal (1962), Muito divertido (1967), Todo caso (1972), Um grande número (1976), Gente na ponte (1987), Fim e começo (1993), Instante (2002), Dois pontos (2005), Aqui (2009) e Chega (2012). Lembrando que, aqui no Brasil, temos, por enquanto, apenas as duas antologias já mencionadas.

Em 1996, ela foi premiada com o Nobel de Literatura pelo conjunto de sua obra. Além do Nobel, ela já tinha recebido outros prêmios importantes: em 1991, o prêmio Goethe, na Alemanha; em 1995, o prêmio Herder, na Áustria, e em 1996, o prêmio do Pen Club polonês. Além de poesia, ela também escreveu crônicas para jornais e revistas. Ainda não há previsão de lançamento, por aqui, desse material (uma pena!).

Wislawa Szymborska
A poetisa na premiação do Nobel, em 1996.

… E sobre a obra

A poesia de Szymborska costuma ser explicada, pelos pesquisadores, como uma obra que se constrói a partir de questionamentos de natureza filosófica e que têm a capacidade de desestabilizar aquilo que é aceito, que é tido como real. Uma habilidade que parece estar em falta no mundo nos últimos tempos… Além disso, a poetisa também é celebrada por dar voz àquelas figuras que, por diversas razões, foram silenciadas ao longo da história, como podemos ver, por exemplo, no poema A Mulher de Lot.

A pesquisadora Regina Przybycien, na introdução do volume Poemas, chama a atenção para outros temas na obra da poetisa:

“Também a história recente, como a guerra do Vietnã, o terrorismo, as populações deslocadas pelas guerras, as torturas constituem temas que possibilitam à poeta meditar, de forma geral, sobre a condição humana.”

Em seu discurso durante a cerimônia do Nobel, Szymborska afirma:

“[…] Valorizo tanto estas duas pequenas palavras: ‘Não sei’. Pequenas, mas de asas poderosas que expandem nossa vida por espaços contidos em nós mesmos e espaços nos quais está suspensa nossa minúscula Terra.”

Finalmente, vale a pena comentar, para aqueles que têm medo de ler poesia, que os poemas escritos por essa poetisa polonesa são marcados por uma fina ironia, por um divertido jogo com a linguagem que não dificulta a compreensão, muito pelo contrário, permite uma leitura muito fluida. É uma poesia que, embora não imponha grandes dificuldades de leitura, tem um infinito potencial para tirar o fôlego do leitor, para ficar dias em nossa cabeça, incomodando e desestabilizando aquelas nossas velhas certezas…

Alguns poemas

A qualidade da poesia de Szymborska é inegável e fazer a seleção de apenas cinco poemas foi uma tarefa praticamente impossível.

FIM E COMEÇO

Depois de cada guerra
alguém tem que fazer a faxina.
Colocar uma certa ordem
que afinal não se faz sozinha.

Alguém tem que jogar o entulho
para o lado da estrada
para que possam passar
os carros carregando os corpos.

Alguém tem que se atolar
no lodo e nas cinzas
em molas de sofás
em cacos de vidro
e em trapos ensanguentados.

Alguém tem que arrastar a viga
para apoiar a parede,
pôr a porta nos caixilhos,
envidraçar a janela.

A cena não rende foto
e leva anos.
E todas as câmeras já debandaram
para outra guerra.

As pontes têm que ser refeitas,
e também as estações.
De tanto arregaçá-las,
as mangas ficarão em farrapos.

Alguém de vassoura na mão
ainda recorda como foi.
Alguém escuta
meneando a cabeça que se safou.
Mas ao seu redor
já começam a rondar
os que acham tudo muito chato.

Às vezes alguém desenterra
de sob um arbusto
velhos argumentos enferrujados
e os arrasta para o lixão.

Os que sabiam
o que aqui se passou
devem dar lugar àqueles
que pouco sabem.
Ou menos que pouco.

E por fim nada mais que nada.
Na relva que cobriu
as causas e os efeitos
alguém deve se deitar
com um capim entre os dentes
e namorar as nuvens.

MULHER DE LOT

Dizem que olhei para trás de curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam pra lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus – simplesmente tudo que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento bateu,
despenteou meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,

enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.

GATO NUM APARTAMENTO VAZIO

Morrer – isso não se faz a um gato.
Pois o que há de fazer um gato
num apartamento vazio.
Trepar pelas paredes.
Esfregar-se nos móveis.
Nada aqui parece mudado
e no entanto algo mudou.
Nada parece mexidoWislawa Szymborska
e no entanto está diferente.
E à noite a lâmpada já não se acende.

Ouvem-se passos na escada
mas não são aqueles.

A mão que põe o peixe no pratinho
também já não é a mesma.

Algo aqui não começa
na hora costumeira.
Algo não acontece
como deve.
Alguém esteve aqui e esteve,
e de repente desapareceu

e teima em não aparecer.

Cada armário foi vasculhado.
As prateleiras percorridas.
Explorações sob o tapete nada mostraram.
Até uma regra foi quebrada
e os papéis remexidos.
Que mais se pode fazer.
Dormir e esperar.

Espera só ele voltar,
espera ele aparecer.
Vai aprender
que isso não se faz a um gato.
Para junto dele
como quem não quer nada
devagarinho
sobre as patas muito ofendidas.
E nada de pular miar no princípio.

FILHOS DA ÉPOCA

Somos filhos da época
e a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas coisas
diurnas e noturnas,
são coisas políticas.

Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.

O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.

Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre um solo político.

Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Qual questão, me dirão.
Uma questão política.

Não precisa nem mesmo ser gente
para ter significado político.
Basta ser petróleo bruto,
ração concentrada ou matéria reciclável.
Ou mesa de conferência cuja forma
se discutia por meses a fio:
deve-se arbitrar sobre a vida e a morte
numa mesa redonda ou quadrada.

Enquanto isso matavam-se os homens,
morriam os animais,
ardiam as casas,
ficavam ermos os campos,
como em épocas passadas,
e menos políticas.

RETRATO DE MULHER

Deve ser para todos os gostos.
Mudar só para que nada mude.
É fácil, impossível, difícil, vale tentar.
Seus olhos são, se preciso, ora azuis, ora cinzentos,
negros, alegres, rasos d’água sem nenhuma razão.
Dorme com ele como a primeira que aparece, a única no mundo.
Dá-lhe quatro filhos, nenhum filho, um.
Ingênua, mas a que melhor aconselha.
Fraca, mas aguenta.
Não tem cabeça, pois vai tê-la.
Lê Jaspers e revistas de mulher.
Não entende de parafusos mas constrói uma ponte.
Jovem, como sempre jovem, ainda jovem.
Segura nas mãos um pardalzinho de asa partida
seu próprio dinheiro para uma viagem longa e longínqua
um cutelo para carne, uma compressa, um cálice de vodca.
Corre para onde, não está cansada.
Claro que não, só um pouco, muito, não importa.
Ou ela o ama ou é teimosa.
Para o bem, para o mal e para o que der e vier.

Se você ficou curiosa e quer ler mais poemas dessa autora extraordinária, no site da Companhia das Letras é possível baixar, aqui e aqui, um trecho das duas antologias. Além disso, você também pode consultar o modo de usar & co, um prato cheio pra quem gosta de poesia, e o escamandro, que dedicou algumas postagens à autora.

Escrito por:

11 Textos

Professora, feminista, pesquisadora em literatura, engajada na missão de ler sempre mais mulheres. É viciada em livros & séries. Tem sempre um lugar especial no coração para Star Wars, filmes da Ghibli & gatos.
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