Meio Sol Amarelo: as faces humanas em meio à guerra

Meio Sol Amarelo: as faces humanas em meio à guerra

Não parece ser uma surpresa que um livro de Chimamanda Ngozi Adichie seja considerado muito bom; pelo contrário, beira até a um clichê. É exatamente isso, porém, que ocorre com Meio Sol Amarelo. Diferentemente de seus outros romances – Americannah e Hibisco Roxo – entretanto, este trata, em meio à história das personagens, de uma guerra (Nigéria-Biafra, 1967-70), apresentando, assim, um ponto distinto daquele tratado por Chimamanda em seus outros livros.

Como a própria Chimamanda comenta, o livro foi livremente baseado na guerra Nigéria-Biafra de 1967-70, com a autora tomando a liberdade de criar a sua história dentro dessa base verídica; isso não impediu, felizmente, que ele tenha sido adaptado para o cinema em 2013, tendo até John Boyega (Star Wars: O Despertar da Força) no elenco. Apesar de o livro não se iniciar já na guerra, ela se torna um elemento essencial no desenrolar da história, de forma a causar as mudanças mais essenciais dos personagens.

Meio Sol Amarelo
A guerra interrompendo a vida cotidiana

Meio Sol Amarelo começa no início de 1960, apresentando uma breve introdução de Ugwu, seguida pelas breves apresentações de Odenigbo, Olanna, Kainene e Richard, os personagens principais restantes. Cada personagem – entre os citados ou não – traz a história uma característica que, ao mesmo tempo em que é inserida na narrativa focal dos mesmos, pode ser levada até um ponto de metáfora entre Nigéria e Biafra; tal fato, porém, torna-se secundário frente a ampla humanidade que Chimamanda passa em suas palavras.

Desde os conflitos – menores – predecessores da guerra até aqueles decorrentes dela, Chimamanda não nos deixa ignorar o fato do profundo caráter humano que todos os desentendimentos possuem, incluindo-se aqui, a guerra. Os dramas humanos são apresentados em meio a uma narrativa não linear, sendo o livro dividido em três partes, mas que não interfere no entendimento do livro pelo leitor – ao contrário, atiça sua curiosidade e vontade de ler – servindo como uma forma criativa de apresentar uma história pelo ponto de vista africano. Recebemos, inclusive, uma boa surpresa ao fim do livro, ao descobrirmos quem é o narrador – feito em terceira pessoa – da história contada.

“Este aqui é o mundo, se bem que as pessoas que desenharam o mapa resolveram pôr a terra deles em cima e a nossa, embaixo. ” 

Meio Sol Amarelo

Este livro pode ser entendido como o mais político de Chimamanda, já que, diferentemente dos outros (Americannah e Hibisco Roxo), as críticas ao colonialismo britânico – e norte-ocidental branco no geral – são, embora sutis, múltiplas e diversas.

 “(…) Sou negro porque o branco fez o negro ser o mais diferente possível do branco. (…)”

Esta afirmação revela uma das mais cruéis consequências do colonialismo, em que o próprio conceito de raça – e inferioridade de uma em relação a outra – foi inventado para justificar as ações imperialistas sobre as colônias. Colonialismo este, que permanece no senso comum (mesmo que inconscientemente), até hoje, fazendo com que as minorias étnico-raciais continuem a ser marginalizadas e, pior, culpadas integralmente por sua situação social.

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Dessa forma, logo nos primeiros capítulos de Meio Sol Amarelo, vemos como os habitantes da ex-metrópole – e o próprio governo da mesma – tratam os habitantes da ex-colônia como incapazes. Insistentemente retratados como tribais e não civilizados, sendo assim incapazes de se auto governar, os habitantes da Nigéria não são vistos – pela maioria dos expatriados – como ameaças, ou no mínimo, como possíveis rivais.

Já com o desenrolar da guerra, é retratado um cenário usual em que ela é apresentada (apenas) por olhares ocidentais. Aqui, o que fica mais evidente, é o desejo – e até instrução – de escritores e jornalistas brancos de contarem a história de Nigéria-Biafra por seus olhares, por exemplo, ignorando o ponto de vista dos próprios cidadãos dos países em questão ou, no máximo, apenas dando ouvidos àqueles que condizem com sua própria abordagem do tema – abordagem branca, norte-ocidental (em maioria), rica e masculina.

Meio Sol Amarelo

O racismo, já constante nas narrativas de Chimamanda, obviamente se faz presente em Meio Sol Amarelo; os estereótipos com que os negros não-africanos lidam em seus países de domicílio e origem, se repetem – e as vezes até se intensificam – com os negros africanos. Tal questão se torna evidente na seguinte passagem: “Havia piadas para ilustrar cada traço dos africanos. A do africano presunçoso era uma das que Richard lembrava: um africano passeava com seu cachorro e um inglês perguntou: ‘O que você está fazendo com esse macaco? ’. E o africano respondeu: ‘Isto não é um macaco, é um cachorro. ’ – como se o inglês estivesse falando com ele! ”.

Além disso, é pincelado como, por mais que uma pessoa branca tenha diversos relacionamentos com pessoas negras – incluindo um amoroso – isso não a impede de ser racista, nem de reproduzir preconceitos. Dito isso, o aspecto da mulher negra frente ao racismo e ao machismo é evidente, e não deveria ser diferente em um livro de Chimamanda. Além da subjugação que elas enfrentam – muitas vezes em conjunto com as mulheres de outras etnias – as questões particulares que, obrigatoriamente, afrontam, como a constante sexualização e mercantilização de seus corpos (“necessidade de experimentar com uma negra”), é tratada a todo momento.

“Estava acostumada com isso, com ser agarrada por homens embebidos em nuvens de direitos (…)”

De uma forma mais geral, a manutenção do machismo e do consequente papel da mulher na sociedade é reforçada tanto por práticas machistas difundidas, como pela responsabilidade do relacionamento ser integralmente da mulher, sendo ela culpada por seus tropeços (“Não permitiria que ele deixasse nela a sensação de que havia algo errado com ela.”), tanto por conservadorismos socioculturais, mesmo por outras mulheres (“Muito estudo acaba com qualquer mulher, todo mundo sabe disso. Faz ela ficar com a cabeça inchada e aí começa a insultar o marido. Que tipo de mulher ela vai ser, me diga? ”), de forma que vemos como alguns aspectos da estrutura patriarcal instituída (majoritariamente) pelos imperialistas se universalizaram por todo o globo, permanecendo, infelizmente, até hoje.

Meio Sol Amarelo

Todos esses elementos se fundem e se revezam através de uma narrativa fluida e marcada por sutilezas metafóricas, sendo a história verossímil tanto pelas relações humanas apresentadas nela quanto pelo retrato constante da mentalidade colonialista ainda presente na sociedade e pela representação crível da guerra, de tal forma que a cronologia destrutiva apresentada por Chimamanda na figura desta é plenamente palpável até o seu desfecho.

“Como é que podemos resistir à exploração se não temos as ferramentas para entender o que é exploração? ”

Meio Sol Amarelo é, mais do que tudo, uma obra prima, em que conseguimos ver representada de forma fidedigna os aspectos raciais, machistas, conservadores e colonialistas vivenciados por todos aqueles que pertencem ao território, ou que tem o físico semelhante aos habitantes, das ex-colônias. Sendo possível, porém, a ampliação do entendimento desses elementos por qualquer um portador do sentimento de empatia e de pensamento crítico.


Meio Sol AmareloMeio Sol Amarelo

Chimamanda Ngozi Adichie 

504 páginas

Companhia das Letras

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