Mitologia Nórdica: a importância da memória viva dos mitos

Mitologia Nórdica: a importância da memória viva dos mitos

O historiador norte-americano Joseph Campbell uma vez definiu a mitologia como “a canção do universo – a música que nós dançamos mesmo quando não somos capazes de reconhecer a melodia.” Os mitos, sejam eles de quaisquer culturas, estão presentes e seguem ecoando de gerações em gerações por meio da oralidade, pura e simples, e também camuflados em meio aos ritos de passagem e arquétipos presentes nas sociedades atuais.

Neil Gaiman, grande apreciador das diversas mitologias mundiais, em seu livro de ensaios The View from the Cheap Seats, discorre acerca da importância que as lendas possuem, não apenas no cotidiano de cada indivíduo, como também em sua própria vida: desde muito pequeno fora um leitor assíduo de contos, dentre eles os das mitologias nórdica e grega, o que fez com mais tarde, ao atingir o ápice de sua carreira como roteirista, tivesse embasamento e criatividade suficientes para dar início à série de quadrinhos Sandmanuma tentativa de criar sua própria mitologia, repleta de deidades, magia e aventuras. Seu mais novo livro, Mitologia Nórdica, é mais do que uma obra que remonta as aventuras de Odin, Thor, Loki e das diversas criaturas de Asgard: Gaiman clama pela importância de se manter a memória das mitologias viva e pulsando no coração de quem ama ouvir uma boa história.

Na apresentação de Mitologia Nórdica, Gaiman conta a dificuldade que tem em elencar uma única mitologia como sua favorita, mas que dentre as que possui mais apego, a nórdica se destaca por ter sido descoberta por ele na infância, na série de quadrinhos Poderoso Thor, de Jack Kirby e Stan Lee (ne: a obra completa saiu no Brasil pela Salvat, com o nome de Contos de Asgard). Pouco tempo depois, ao ler uma cópia de Os Mitos Nórdicos, escrita por Roger Lancelyn Green, percebeu que a versão de Kirby e Lee diferiam muito do que era contado como lendas pelos povos escandinavos: enquanto a HQ mostrava uma Asgard, lar de Thor e dos demais deuses, futurística, na versão de Green os cenários e paisagens eram muito mais vikings e reais. Conforme o tempo foi passando e Gaiman foi apropriando-se das diversas histórias presentes nesta mitologia, viu no projeto de Mitologia Nórdica uma maneira de reviver a tradição oral de contar histórias, acrescentando uma pitada de sua prosa que permeia o realismo fantástico, tão característica.

Mitologia Nórdica

“Essa é a graça dos mitos. A diversão vem de contá-los você mesmo, algo que o encorajo veementemente a fazer, leitor. Leia as histórias deste livro, depois se aproprie delas e, em uma noite gelada de inverno – ou em uma noite de verão em que parece que o sol não vai se pôr nunca -, conte a seus amigos o que aconteceu quando o martelo de Thor foi roubado, ou como Odin obteve o hidromel da poesia para os deuses…”
(GAIMAN, Neil. Mitologia Nórdica. Editora Intrínseca, 2017, p. 15)

Gaiman também se atenta à importância que a mitologia nórdica possui na raiz etimológica de muitas palavras da Língua Inglesa, como por exemplo os dias da semana, utilizados para cultuarem os deuses Tyr (Tuesday, terça-feira), Odin (Wednesday, quarta-feira), Thor (Thursday, quinta-feira) e Frigga (Friday, sexta-feira). O trabalho que o autor teve ao pesquisar diversas versões das lendas deu origem aos quinze contos presentes na antologia, que começam com a criação do mundo, segundo os escandinavos, e vai até o Ragnarök, o fim do mundo.

“Antes do princípio, não havia nada – nem terra, nem paraíso, nem estrelas, nem céu -, existia apenas o mundo feito de névoa, sem forma nem contorno, e o mundo feito de fogo, eternamente em chamas.
Ao norte ficava Niflheim, o mundo escuro. Nele, onze rios venenosos cortavam a névoa, originários do mesmo poço em seu núcleo, o turbilhão barulhento chamado Hvergelmir. Niflheim era mais frio que o próprio frio, com uma névoa cerrada e turva encobrindo tudo. Os céus eram ocultados pelas brumas, e o chão era encoberto pelo nevoeiro gelado.” 
(GAIMAN, Neil. Antes do princípio, e o que veio depois. Mitologia Nórdica. Editora Intrínseca, 2017, p. 27)

Os contos se passam na antiguidade, não sendo recontados na contemporaneidade, como é o caso de Deuses Americanos: em Mitologia Nórdica, a leitora faz um passeio pelos mundos ancestrais dos Aesir, a linhagem dos deuses habitantes de Asgard. É possível acompanhar Thor, Odin, Tyr e Frey e suas incursões pelas terras de gigantes e anões, as belas deusas Frigga, Iduna e Freya em posições de liderança e Loki, irmão de Odin, cuja função no reino é apenas causar confusões e tê-las de desfazer logo depois. Um ponto interessante da prosa de Gaiman é que, mesmo alterando o mínimo possível das lendas, o autor conseguiu colocar nas personagens já conhecidas um aprofundamento psicológico que, dentro da maioria das diversas versões escritas, não é encontrado. Pode se tomar como exemplo o próprio Loki, cuja perversidade gradativamente se intensifica ao longo dos contos, o que resulta em um desfecho obscuro e aterrador da personagem, uma das protagonistas do Ragnarök.

Mitologia Nórdica
Representação de Odin.

A mitologia nórdica está repleta de magia, mas também de pontos de verossimilhança com o mundo em que os mortais vivem. Em toda criatura malvada há algo bom (apesar de ser encarado como o vilão traiçoeiro das histórias em que participa, Loki também tem seus momentos de bondade), e em toda criatura boa há algo ruim, como quando Thor, ao ficar enfurecido com a morte do deus Balder, empurra um anão na pira funerária apenas para “se acalmar”. Esta dicotomia de personalidades é muito presente nas intertextualidades de Gaiman, vide a bruxa de João e Maria que possuía uma postura maléfica por ser influenciada pelo meio hostil em que vivia. No fim das contas, os deuses acabam sendo mais mortais do que seres inalcançáveis.

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Os contos O Hidromel da Poesia e A Morte de Balder são dois exemplos de textos que apresentam aspectos explicativos para fatos que aparecem na sociedade, assim como os arquétipos de “O Herói”, “O Vilão”, “O Sábio”, postulados pelo psicanalista Carl Jung, e encontrados em todas as mídias da sociedade. No primeiro, a inspiração dos artistas em geral, principalmente dos poetas, é remetida a um hidromel criado a partir da mistura do sangue do deus da sabedoria, Kvásir, com mel, que se ingerido permite ao ser humano ter criatividade infinita. Já no segundo, a morte de Balder, por uma artimanha de Loki, é tomada por uma comoção gigantesca por todos os seres dos Nove Mundos, o que facilmente pode ser comparado às mortes de grandes ídolos da sociedade, cuja ausência deixa em luto boa parte da população.

Aspectos da natureza, como a curva que separa o rabo de salmão e a existência de terremotos também têm suas origens nos mitos: o primeiro caso ocorreu quando Thor, ao tentar capturar Loki na forma escorregadia de um salmão, viu no apertar do corpo do animal uma única saída para que o deus não fugisse, marcando para sempre as espécies do peixe; a origem dos terremotos deu-se quando, ao ser aprisionado em uma caverna subterrânea pela morte de Balder, Loki tenta a qualquer custo se soltar de suas amarras, o que causa diversos abalos sísmicos em Asgard.

Mitologia Nórdica
Yggdrasil e os Nove Mundos

Um único aspecto negativo do livro parte da ausência de histórias predominantemente femininas, ou com pelo menos uma protagonista feminina com muito destaque. As deusas possuem personalidade forte e decidida, porém acabam por ser enganadas e servindo apenas como um fio condutor ou chacota para o espetáculo dos grandes heróis/vilões. Na apresentação do livro, Gaiman lamenta justamente este fato:

“Há muitas deusas nórdicas. Sabemos seus nomes e alguns de seus atributos e poderes, mas suas histórias, seus mitos e rituais, não sobreviveram ao tempo. Queria poder recontar as histórias de Eir, a médica dos deuses; de Lofn, a consoladora, a deusa nórdica dos casamentos; ou de Sofjn, uma deusa do amor. Isso sem falar em Vor, a deusa da sabedoria. Até consigo imaginar algumas delas, mas não sou capaz de desvelar seus mitos. Essas narrativas foram perdidas, enterradas, esquecidas.”
(GAIMAN, Neil. Mitologia Nórdica. Editora Intrínseca, 2017, p. 12)

O livro começa com um tom ensolarado, descontraído, mas à medida que o fim de tudo fica mais próximo, aumentam a obscuridade e a tensão. A escrita de Gaiman é acessível e serve para inserir muito bem quem possui pouco contato com a mitologia nórdica e deseja saber um pouco mais sobre mundos e criaturas fantásticas, chegando a ser uma narrativa parcialmente didática. As características da prosa de Gaiman ficam muito presentes nos diálogos e se intensificam nos dois últimos contos, que poderiam ser facilmente encontrados separados em suas antologias já conhecidas.

A edição da Editora Intrínseca, em capa dura, apresenta Mjölnir, o martelo de Thor, numa perspectiva dourada e muito realista. A folha de guarda e as páginas que abrem os capítulos possuem desenhos de artes que remetem ao sagrado mitológico.


Mitologia NórdicaMitologia Nórdica

Editora Intrínseca

Ano: 2017

286 páginas

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Este livro foi cedido pela editora para resenha.

Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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