[6º OLHAR DE CINEMA] Corpo Estrangeiro: como o machismo estrutural afeta as mulheres refugiadas tunisianas

[6º OLHAR DE CINEMA] Corpo Estrangeiro: como o machismo estrutural afeta as mulheres refugiadas tunisianas

Corpo Estrangeiro (Jassad Gharib, 2016) teve sua estreia mundial no Festival de Toronto e está na Mostra Competitiva do 6º Olhar de Cinema. Este quarto longa-metragem da diretora tunisiana Raja Amari inicia com uma cena no fundo do mar, onde se vê várias pessoas submergindo junto de suas fotografias, documentos e demais pertences. São refugiados tunisianos chegando ilegalmente a França. Tal qual em “Assim Que Abro Meus Olhos” (longa-metragem de estreia da tunisiana Leyla Bouzid em 2015), esses expatriados estão evadindo de sua terra natal em decorrência da política ditatorial instaurada pela Revolução de Jasmim (sucessão de manifestações insurgidas na Tunísia, entre dezembro de 2010 e janeiro de 2011, que levou à saída do presidente da República, Zine el-Abidine Ben Ali, que ocupava o cargo desde 1987).

A personagem principal é Samia (Sarra Hannachi) que ao aportar naquele país procura Imed (Salim Kechiouche), um amigo de seu irmão, que lhe dá abrigo naquela noite. Ao chegar ao pequeno apartamento que Imed divide com mais dois rapazes refugiados, o filme já mostra a que veio. O que parecia se tratar de uma jornada em busca de permanência e asilo político para refugiados ou ainda sobre viver ilegalmente em países que recebem evadidos de guerras, o filme vai abordar um tema que aterroriza mais ainda as mulheres, que é o machismo estrutural.

O pouco que Samia fica na casa de Imed se desenha como um grande pesadelo: mulheres são vistas apenas para servir aos afazeres domésticos ou aos prazeres sexuais masculinos. Apesar de Imed parecer um homem de postura mais elástica no que tange aos padrões de masculinidade impostos pela cultura e religião de seu país, Samia prefere não correr mais riscos e pela manhã deixa o apartamento em busca de emprego e uma nova morada.

Embora o rápido desenvolvimento inicial do roteiro que num golpe de sorte mostra Samia sendo entrevistada para ocupar a vaga de empregada na casa de Madame Bertaud (Hiam Abbass), que acaba de perder o marido, o que se vê a seguir é a cumplicidade e a segurança que ela encontra nesta mulher mais velha que guiará todo o restante da narrativa.

O jogo de espelhamento que a diretora cria para filmar a relação entre patroa e empregada é um artifício bastante eficiente e confere a densidade que os primeiros momentos do filme parecem precipitar. Leila Bertaud, também tem descendência árabe, e em determinado momento, em uma cena muito bonita em que ambas estão se lavando juntas, diz a Samia que após o casamento ela se tornou apenas a esposa de Bertaud. Ou seja, a ausência de identidade dessas mulheres, que por motivos distintos (ou nem tanto) estavam agora se conectando em momentos diferentes de suas vidas, gera uma empatia instantânea.

Corpo Estrangeiro

A figura masculina é apresentada como o elemento desestabilizador da trama. Não pelos motivos óbvios e comumente vistos no cinema (ciúme, inveja, traição). Mas o pavor que os homens imprimem aos corpos e mentes daquelas mulheres fica evidente, inclusive, quando percebemos que o olhar da câmera é o de uma mulher que também vive a realidade patriarcal a que todas somos submetidas. Nesse sentido, é interessante destacar que a diretora utiliza um jogo narrativo no qual a casa de Leila, além de ser um elemento de ligação, é uma personagem que a todos observa. A janela é um dos eixos centrais de visibilidade desse temor de perseguição que no filme é enfatizado pela condição de refugiada de Samia.

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Porém, dependendo de quem esteja na posição de observador nesta janela é que vai determinar as cartas a serem jogadas, o que reflete na composição visual das personagens, que se transformam ao longo do filme. Além disso, outro grande trunfo do roteiro é a concepção de fragilidade destas 3 personas, no qual o “quem se apropria de quem” é o tempo todo colocada em perspectiva. A inversão da tensão sexual que Leila, Samia e Imed experimentam dentro dessa relação que desenvolvem, na qual ele não consegue deixar de cumprir o papel de homem dominante, é também central para amarrar o roteiro, que culmina numa cena bastante forte do ponto de vista simbólico.

Nesse sentido, Corpo Estrangeiro pode incomodar um pouco aqueles que, ao ler a sinopse, acham que estão indo ver um filme sobre refugiados. Esse elemento também está presente no filme, mas é muito mais um pano de fundo para o tema central da narrativa que é o de mulheres que se veem obrigadas a deixar seus países de origem, devido a enorme opressão que lá passam pelo simples fato de ser mulher. Apesar do clima de tensão que permeia toda a trama, o desfecho positivo é um acalanto, já que nessas experiências cinematográficas o único lugar possível para uma mulher encontrar paz é a sublimação.

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Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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