O Festival de Cinema Feminista de Londres, que essa semana estreará sua 5ª edição, escolheu o filme The Sealed Soil ( “A Terra Lacrada”, em tradução livre), realizado pela cineasta iraniana Marva Nabili, para ser homenageado como o clássico feminista deste ano.
O filme de Nabili segue a história de uma jovem iraniana em busca de sua independência, e representa o primeiro filme independente a ser realizado por uma mulher iraniana. É uma obra de ousadia, tanto em sua trajetória de produção, quanto em sua narrativa e estilo. Aqui vai tudo que você precisa saber sobre esse clássico do cinema feminista e o que ele nos pode ensinar:
A HISTÓRIA
O filme retrata a história de uma jovem iraniana de dezoito anos em um pequeno vilarejo no Irã, que – contrariamente ás expectativas de seu povo – rejeita seus pretendentes, em busca de sua independência e identidade própria. Sua rejeição da tradição e busca introspectiva resultam em alegações de que a menina está possuída por um demônio e necessita ser exorcizada.
O antigo vilarejo, construído inteiramente de barro, é cercado por uma cidade moderna. A dualidade dos dois locais, marca metaforicamente um tema importante da obra: a tirania de estar presa (digamos até, lacrada) dentro de uma tradição , buscando uma modernidade que se aproxima mas permanece parecendo tão distante.
Não é uma história que poderíamos chamar de inédita. Uma donzela em uma sociedade que a oprime, em busca de algo além do que é esperado dela, não é uma narrativa totalmente original. Até mesmo a conclusão atingida pelo povo do vilarejo – de certa forma cômica aos olhos da telespectadora moderna – de que a resistência da jovem e sua placidez depressiva sejam possessões demoníacas, tem raízes em modos de pensar sobre saúde mental e a condição feminina que datam desde a antiguidade greco-romana .
Porém, podemos entender a temática de “The Sealed Soil” como uma parte de uma narrativa cíclica, onde a modernidade e a juventude são instrumentos catalisadores da emancipação feminina. Ou seja, o filme não tenta ser uma narrativa isolada, mas sim uma espécie de pequena anedota, dentro de uma história milenar sobre o que é ser mulher.
Em cada geração, haverá sempre histórias com essa temática, mas o interessante é acompanhar a evolução da definição de independência feminina e a forma com que cineastas de diferentes culturas e contextos sociais retratam o tema.
Neste caso em especifico, temos uma rendição do tema situada em uma realidade iraniana, porém a cineasta da espaço para a telespectadora projetar sua própria história na personagem. A linguagem visual do filme é simples e plácida, e a câmera é utilizada mais como instrumento de observação.
Desta maneira, a telespectadora acaba refletindo junto com a protagonista. A personagem vivencia sua angústia de forma discreta e internalizada, até o ponto em que sua frustração explode de maneira brusca em um confronto com sua família. Um encontro, porém que não leva a uma resolução da sua situação, o que realça a atmosfera inquieta do filme.
O TÍTULO
O título original persa, Khake Sar Beh Morh, pode ser traduzido literalmente como “A Terra Lacrada” (The Sealed Soil, como diz a versão inglesa). Porém, o que é perdido na tradução é o fato de que a frase é um tipo de ditado popular – uma maldição para desejar má sorte a alguém, dizendo algo como “Que venha sua morte, e te enterraremos”.
É interessante pensar neste duplo significado do título com relação a protagonista – sua maldição foi simplesmente nascer uma mulher em uma sociedade em qual sua identidade própria é negligenciada. Ou seja, ao nascer mulher, ela foi amaldiçoada com a morte súbita de sua independência e o sepultamento da possibilidade de uma identidade autônoma dentro daquele vilarejo de barro.
De certa forma, muitas mulheres nascidas em comunidades e sociedades tradicionalistas ainda hoje sofrem da mesma “maldição”, mesmo se, como a jovem protagonista, elas estejam rodeadas por modernidades – o que nos traz de volta a qualidade cíclica e intempestiva do filme.
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UMA PRODUÇÃO CLANDESTINA
Além da sua qualidade poética, o filme também foi ousado em sua realização. The Sealed Soil, foi gravado clandestinamente, e traficado para fora do Irã, antes da revolução, para poder ser editado. A cineasta, após ter filmado, escondeu as bobinas de filme em uma mala com fundo falso e as levou para os Estados Unidos, aonde a obra foi finalizada.
O filme recebeu sucesso internacional, incluindo o prêmio de filme mais extraordinário do ano em 1977 no Festival de Cinema de Londres. Esse ano, a obra completa 40 anos, mas até hoje nunca foi divulgada no Irã, seu país de origem.
Aqui, nos resta uma lição de determinação e garra para aspirantes a cineastas. Hoje em dia, o acesso à equipamentos para criação audiovisual está mais fácil do que nunca: Até qualquer celular, hoje em dia, consegue gravar vídeo e áudio decentes.
Além disso, com a facilidade de acesso à internet, projetos podem ser divulgados e compartilhados com facilidade. Se, mesmo com a dificuldade de ter que executar seu filme de forma clandestina, Marva Nabili conseguiu dividir conosco sua visão da condição feminina, não temos nenhuma desculpa para não compartilharmos as nossas.