Teoria King Kong: Virginie Despentes e as mulheres que não querem agradar ninguém

Teoria King Kong: Virginie Despentes e as mulheres que não querem agradar ninguém

Longe de ser uma obra introdutória ao feminismo, Teoria King Kong surge como um desabafo. Em uma escrita rápida e visceral, Virginie Despentes nos transporta ao seu passado conturbado e, a partir de suas experiências de vida, provoca reflexões pertinentes (e polêmicas) ao movimento feminista atual. Apesar do nome sugestivo, o livro não é nada além da autobiografia da escritora e cineasta francesa.

À leitora, um tapa na cara – sem pedidos de desculpas. A rebeldia é a essência da autora, e quem não compreende isso, acompanha a narrativa aos trancos e barrancos. A prostituição, a pornografia e o estupro são temáticas centrais. Concorde ou não com seus posicionamentos, você terá de engoli-los – ela fala de cada um deles com muita propriedade.

Pelos temas polêmicos, muitos dos capítulos podem ser considerados gatilhos emocionais. No entanto, nada disso impede Despentes de se expressar abertamente: ela não está preocupada em agradar ninguém ,e sim em representar as que “como mulheres, são mais King Kong do que Kate Moss”.

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“Escrevo a partir da feiura e para as feias, as caminhoneiras, as frígidas, as mal comidas, as incomíveis, as histéricas, as taradas, todas as excluídas do grande mercado da boa moça. E começo assim para que tudo fique claro: não me desculpo de nada, não vim aqui para reclamar.”

É dessa maneira, sem escrúpulos (e sem massagem), que Despentes inicia sua autobiografia. Intitulado “Vícios Frenéticos”, o primeiro dos 7 capítulos é uma introdução ao que  (e para quem) serão as palavras vomitadas a seguir.

Ela não pede desculpas porque acredita que as mulheres não devem carregar o estigma da subserviência. Explora em sua escrita a impulsividade, a agressividade e tantas outras características que a tornam uma mulher “viril”.

A mescla entre a informalidade e a academia é feita de maneira sutil e inteligente. Usa citações de autoras renomadas no início de cada um dos capítulos para incitar um debate mais profundo em seu interior; dessa forma, dialoga com literaturas feministas introdutórias, indo de clássicas como Virginia Woolf e Simone de Beauvoir às contemporâneas, como Angela Davis e Gail Pheterson.

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Teoria King Kong
Foto: N-1 Edições (Reprodução)

Apesar de ser uma autobiografia (que segue uma certa linearidade de acontecimentos), os capítulos poderiam ser lidos separadamente sem maiores prejuízos à compreensão. A diferença é que, lendo o livro na íntegra, você entende a autora, Virginie Despentes, como um todo – os motivos e estímulos para que ela tenha seguido os rumos que seguiu. Lê-los arbitrariamente, em contrapartida, nos dá casos que suscitam ótimas discussões – coroadas por doses homeopáticas de risadas.

“O que se quer saber é o que diabos existe de crucial no pornô para que se confira a ele tamanho poder blasfematório. Basta mostrar uma buceta depilada comida por um pau enorme e muitos de nossos contemporâneos contraem a bunda para não se comprometerem. Alguns repetem com um jeito blasé: ‘isso não me interessa’, mas basta caminhar na rua ao lado de uma atriz pornô para se convencer do contrário.”

O capítulo ao qual Despentes reserva mais páginas é o “Dormindo com o inimigo”. Nele, discute a prostituição sob o de vista de quem já foi profissional da área. Uma espécie d’O Doce Veneno do Escorpião. Só que sem romantização.

Em “Pornofeiticeiras”, capítulo seguinte, a autora bate a perna ao dizer que a pornografia é necessária para que nos conheçamos e aprendamos mais sobre a nossa sexualidade. O problema, para ela, são os moldes em que ela é produzida.

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Se os argumentos usados pela autora são válidos ou não, a mensagem que fica é a de que precisamos exercer autonomia, pensamento crítico. Não há problema algum em ter uma opinião que seja divergente da maioria – desde que ela não seja … fascista. O importante é que tenhamos espaço para que essa riqueza de pontos de vista possa ser compartilhada. E que consigamos expor nossos pensamentos sem termos que pedir perdão.

Teoria King Kong
Despentes tem hoje 48 anos muito bem vividos. Foto: reprodução

Virginie o quê?

A liberdade empunhada pela autora em cada uma das linhas não poderia ser explicada, senão, pela sua adolescência. Conheceu o punk antes mesmo de saber o que era o feminismo, e fez das ruas e estradas palco para a maior parte de suas experiências. Por essa razão, amadureceu cedo: passou por situações típicas de uma jovem punk que sabe que não deve abaixar a cabeça, só que ainda não entende o quão perverso o mundo pode ser.

A sorte de crescer em um círculo familiar que lhe concedia liberdades – que ela não percebia como raras – funcionou como uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo em que deve muito de sua determinação e segurança à sua criação, demorou um tempo até perceber que sua personalidade era, na realidade, considerada por muitos como viril, algo longe de feminino. Não que ela visse essas características como defeitos; o problema era o tratamento que recebia por conta disso:

“Quando eu fui estuprada 30 anos atrás, se você fosse estuprada, você ia se ver completamente sozinha. Ouvindo coisas do tipo, ‘Que pena, você devia ter morrido. Você nunca mais vai ser a mesma, nunca vai se recuperar’, coisas que não ajudam em nada. Era difícil encontrar ferramentas para sair do trauma e crescer em cima disso.”

Quando se enveredou pelos caminhos do feminismo, uniu as lutas. O resultado disso foi a força de seus posicionamentos – e, consequentemente, a agressividade de sua militância. Se mantém firme em suas convicções e não se vitimiza ou credita a terceiros as suas próprias conquistas. Se tem algo que passa longe de ser, é condescendente – e isso assusta. Onde já se viu mulher se impor assim?

Teoria King Kong não é um livro fácil de engolir

Se irritar com Despentes é natural; em um parágrafo, é possível amá-la e repudiá-la, na mesma medida. Isso porque ela é controversa, mas não por pura e simples provocação, e sim porque contestar faz parte de sua natureza subversiva.

E é exatamente isso que torna o seu livro tão inconvenientemente necessário: o caráter intimista faz com que você a odeie, entretanto reconheça a coragem de se expor com tanta fidelidade. Quem sabe até não sirva para repensar questões adormecidas no inconsciente, sob um ponto de vista livre de amarras?

Independentemente da sua opinião sobre ela, ao terminar o livro, uma coisa é fato: ter a audácia de peitar questões que são consideradas “tabu” até mesmo no movimento feminista é, no mínimo, respeitável. Leitura fortemente indicada.

“Querer ser um homem? Sou melhor do que isso. Não dou a mínima para o pênis. Não dou a mínima para a barba e para a testosterona, tenho tudo que preciso em termos de agressividade e coragem. Mas é claro que quero tudo, como um homem, num mundo de homens, quero desafiar a lei. Frontalmente.”


Teoria King KongTeoria King Kong

Autora: Virginie Despentes

Tradução: Márcia Bechara

N-1 Edições

128 páginas; 2016 (1ª edição)

Onde comprar: Amazon

Escrito por:

Feminista, bruxa e vegana. Estudante de jornalismo e de bateria. Apaixonada por gatos, filmes de terror, contracultura e roller derby. Cozinheira (e meio piadista) nas horas vagas.
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