[CINEMA] As Duas Irenes: sobre o espelhamento de si (Crítica)

[CINEMA] As Duas Irenes: sobre o espelhamento de si (Crítica)

Em As Duas Irenes (2017), escrito e dirigido por Fabio Meira, somos apresentadas a Irene (Priscila Bittencourt), uma adolescente de 13 anos, filha do meio de um casal abastado de uma cidade interiorana. Logo na primeira cena, vemos a vidraça de uma janela sendo quebrada por uma pedra arremessada pela menina. É deste estilhaçar de vidas, cotidianos e corpos que se trata o filme. Nos primeiros minutos de projeção, Irene descobre que seu pai, interpretado por Marco Ricca – papel que lhe rendeu o prêmio de atuação no 45º Festival de Cinema de Gramado – tem outra família e outra filha de mesma idade e nome.

A partir deste momento, uma transmutação entra em curso. Todo o desenrolar da trama se apoia nessa aproximação das Irenes, com um olhar de curiosidade ao mesmo tempo que de afrontamento. O tom da narrativa é dado pela direção de fotografia marcante de Daniela Cajías, que a todo o momento justapõe as imagens das meninas emulando o duplo que permeia o título. No caso do filme de Meira, o duplo não é apenas metafórico, mas também tangível, na medida em que a vida das duas adolescentes começa a se amalgamar de tal forma que uma estranha dependência lhes fascina.

As Duas Irenes
Priscila Bittencourt em cena de “As Duas Irenes”

Este jogo de linguagem que se traveste na imagem cênica, remete a obras da filmografia de Gabriela Amaral Almeida e Juliana Rojas, que costumam trabalhar com temas densos do cotidiano de forma leve, mas sempre flertando com o gênero do horror psicológico. Apesar de As Duas Irenes não ser um filme que caminhe para este estranhamento tão marcado como nos filmes destas diretoras, é inegável que a atmosfera aqui proposta remeta ao reencontro sugerido em O Duplo (2012) ou em Um ramo (2007) – curtas-metragens dirigidos por Juliana Rojas – ou ainda em Uma primavera (2011), de Gabriela Amaral Almeida.

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A adolescência é aquela fase em que filhos confrontam os pais acerca de seu lugar no mundo. Em As Duas Irenes este embate se acirra ainda mais, na medida em que o segredo que o pai carrega, ao experimentar o duplo matrimônio, está sempre na iminência de ser revelado sem, contudo, este ser o ponto alto que o filme propõe. Para esmiuçar as semelhanças e diferenças que compõem as famílias das duas Irenes, percebe-se um apuro estético na direção de arte assinada por Fernanda Carlucci. Cada elemento que compõe o cenário está encaixado para servir à narrativa, deixando claro que a mise-en-scene é cuidadosamente estruturada. O roteiro emula uma força do universo feminino que pode ser apreendida pela colaboração de Gabriella Mancini e Iana Paro com Fabio Meira, uma vez que nada soa como estereotipado ou fora do tom. 

As Duas Irenes
Cena de “As Duas Irenes”

Um eterno tic-tac do relógio, o ronco do pai à noite, as repetidas cenas de refeição ritualizadas, os tons pastel dos móveis e roupas, marcam a vida entediante e enfadonha da família de Mirinha (Susana Ribeiro), com quem a primeira Irene mora. Não à toa, a personagem encontra-se em num eterno devir, cuja a busca é mais importante que a meta almejada. Neste ponto, ser a filha do meio também é uma das chaves para compreensão dos anseios da personagem, pois revela o deslocamento e a não pertença de Irene em relação a esta família. Já na casa de Neuza (Inês Peixoto), segunda esposa de Tonico, as relações são mais frouxas, as cores são vibrantes e isso pode ser percebido inclusive no vestuário das personagens. 

Mirinha não trabalha e é servida por uma empregada que faz às vezes de babá. Personagem, que apesar das poucas falas é interessantíssima, ganhando uma potente carga dramática na interpretação de Teuda Bara, do Grupo Galpão. É do nome desta babá (Madalena) que a primeira Irene se apropria ao se apresentar para sua meia-irmã. Em contrapartida, Neuza é costureira, leva uma vida mais simples e tem apenas uma filha, a Irene, interpretada por Isabela Torres, que diferente de sua xará, é espevitada e atirada. Não por acaso, o ofício de coser roupas afeta sensivelmente a primeira Irene e acaba sugerindo novas possibilidades para quem está em busca de outros rumos, caminhos, expectativas.

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Com estas singularidades de cada uma das famílias das Irenes, que vão sendo subvertidas ao longo do filme, Meira de forma sutil tangencia uma questão de classe social mapeando aquele velho jargão, ainda arraigado culturalmente, das mulheres que são para casar e das que são apenas para se divertir. Destaque-se a ótima direção de atores bem alinhavada com a preparação de elenco feita por Verônica Veloso, que transborda a confluência que o roteiro pede de cada personagem, conferindo ritmo à narrativa.

O espelhamento das duas Irenes alcança o clímax com a descoberta da sexualidade das adolescentes, em cenas que emanam uma ode ao Cinema, como o momento em que as meninas frequentam salas de projeção para encontrar seus pares amorosos. Neste sentido, a obra de Fabio Meira se aproxima bastante ao filme Mulher do Pai (2016), de Cristiane Oliveira, no qual o fio condutor também era o coming of age de uma adolescente que tinha questões com a figura paterna.

As Duas Irenes teve boa recepção no Festival de Berlim. Saiu do Festival de Gramado com os prêmios de roteiro e direção de arte, além de levar, do Festival Internacional de Guadalajara, os prêmios de fotografia e melhor filme de estreia.

As Duas Irenes estreia dia 14 de setembro nos cinemas.

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Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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