Westworld, filosofia e feminismo: o despertar da consciência e do protagonismo feminino

Westworld, filosofia e feminismo: o despertar da consciência e do protagonismo feminino

Baseada no filme homônimo de 1973, escrito e dirigido por Michael Crichton, a série original  da HBO já apresentou uma primeira temporada com dez episódios e a estreia da segunda já está confirmada para o ano que vem. Westworld é uma ficção científica que traz assuntos bem explorados por seu gênero: a relação humano vs. não-humano, as consequências do ritmo desenfreado da evolução tecnológica, e uma reflexão ética e moral da condição humana diante dessas novas possibilidades.

A trama da série gira em torno do parque temático Westworld, que recria um mundo de faroeste com tudo [de violento e estereotipado] que se tem direito: saloons, fazendas, cowboys, prostitutas, donzelas em perigo, heróis, xerifes e, é claro, bandidos. As pessoas – ou os “convidados” (guests) – pagam bem caro pela experiência de interagir com personagens humanoides – ou, como chamado na série, os “anfitriões” (hosts) – e por interagir, entenda matar e estuprar.

Como um Red Dead Redemption live-action (inclusive, Jonathan Nolan, um dos criadores da série, confirmou ter se inspirado no jogo para criar as ações dos personagens, além de também jogos como Skyrim e Bioshock), os convidados têm liberdade para iniciar missões das mais variadas, a partir de interações pontuais, como por exemplo, ajudar um grupo de homens a capturar um bandido, salvar a donzela de um ataque a sua fazenda, encontrar um tesouro, etc.

Criados por Ford (Anthony Hopkins) e seu sócio Arnold, fica difícil distinguir quem é humano e quem não é, tamanha a semelhança física e comportamental dos robôs, mas suas identidades são reveladas pela mortalidade, pois eles permanecem sempre dentro de um loop narrativo – pontuado pelo tocar de um piano automático, que está, também, presente na maioria das músicas da trilha sonora, conferindo harmonia e fluidez ao desenrolar da história.

Westworld
Westworld 01×10 “The Bicameral Mind”
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A filosofia de Westworld

O conflito central da série se desenvolve quando surge o questionamento por parte dos anfitriões, da natureza de sua própria realidade. Sofrendo atrocidades diárias, os anfitriões tem suas memórias sobrescritas e reprimidas nos seus softwares, a um lugar como se fosse um subconsciente, pois do contrário, caso eles se lembrassem do que os convidados fazem com eles, enlouqueceriam.

Mas, é a partir de uma espécie de vírus transmitido através de uma frase dita pelos androides, e cheia de sentido para a história (“Esses prazeres violentos têm finais violentos“), que alguns anfitriões conseguem acessar suas memórias e refletir a respeito das suas próprias existências.

A ideia de construir uma consciência nos anfitriões partiu de Arnold, um personagem que tem sua identidade revelada somente mais tarde na narrativa, inspirando-se na Teoria da Mente Bicameral, para formular uma pirâmide do que seria a construção da consciência em seres artificiais, onde as memórias estão na base, seguidos do improviso, auto-interesse e… “ele nunca chegou lá”, diz Ford a Bernard (Jeffrey Wright).

É nesse ponto, que Westworld se abre a uma nova dimensão de inquietações de cunho psico-filosóficas. Podemos, de partida, pensar na relação entre os convidados e os anfitriões, no caso entre os humanos e os robôs. Podemos, inclusive, trazer alguns autores clássicos que já ponderaram teorias que revelam uma supremacia humana, tecnológica, ou até mesmo, uma relação igualitária, simbiótica e codependente: Heidegger, Simondon, Latour e muitos outros.

Em linhas gerais, se pegarmos a proposta teórica heideggeriana, entendemos que a relação entre sujeito/humano e objeto/não-humano, como a subsistência do último sob o primeiro, ou seja, o sujeito existe, o objeto subsiste. O motivo para tal concepção se dá, segundo Heidegger, devido a intencionalidade inata humana, característica inexistente nos objetos. Em Westworld, a busca pela consciência ou o despertar-se para si mesmo dos anfitriões, é, nada mais nada menos, que a busca por intencionalidade. Mas como “chegar lá”? Como se constrói a consciência?

Tentando solucionar esse problema, Arnold criou um jogo. Trata-se de um labirinto, o nível mais secreto de Westworld. Ele entendeu que o caminho para a consciência não era através de uma pirâmide, de um processo hierarquizado, horizontal, mas, sim, através de um percurso de fora para dentro, por meio de escolhas, onde o erro desempenha um importante papel. É a famosa frase grega “conhece-te a ti mesmo“, já estampada na cozinha da Oráculo de Matrix: somente você tem a resposta para suas perguntas, e a descoberta dessas respostas acontece durante a trajetória para alcançá-las, e não somente no destino final.

Westworld
Westworld 01×03, “The Stray”

Dolores e o Mito de Ariadne

Dolores (Evan Rachel Wood), a anfitriã mais velha do parque, criada por Arnold no começo de tudo, é a primeira a participar do labirinto, que consiste em sessões de conversa entre ela e seu criador, com leitura de trechos de livros, como “Alice no País das Maravilhas“, e atividades que façam Dolores refletir sua própria condição, como a impossibilidade da mesma não conseguir puxar o gatilho de uma arma quando está em perigo. A narrativa de Dolores no parque de Westworld é de uma donzela, uma jovem mulher filha de um fazendeiro, pura, intocada, inocente, que “escolheu ver a beleza do mundo”, como ela mesma fala repetidamente a todos. Seria um convite óbvio aos olhos misóginos corromper essa inocência? Claro. E se não for através dos convidados, será através dos próprios anfitriões masculinos.

A humanoide sofre incontáveis abusos. Ela vê sua família morrer e sua mãe ser estuprada ainda morta, e depois, também é violentada, sempre impossibilitada de responder fisicamente por algo que parece inerente ao seu ser. Quando ela começa a ter acesso a algumas de suas memórias e a refletir do motivo de ter que permanecer imóvel e somente aceitar tudo, é que Dolores se encontra, finalmente, dentro do labirinto. A personagem muda a sua fala, de ver a beleza no mundo, para “Acho que há algo errado com este mundo. Há algo escondido embaixo dele. É isso ou há algo errado comigo“, diz ela, em uma de suas conversas com Arnold.

Westworld
Westworld 01×03, “The Stray”

Ao pensar na ideia do labirinto, é possível estabelecer uma conexão entre a jornada de Dolores e o mito de Ariadne. De forma muito resumida, a trajetória de Ariadne começa quando ela se apaixona por Teseu, que se voluntariou como sacrifício ao Minotauro, que habitava o labirinto construído por Dédalos. Teseu resolveu enfrentar o monstro metade homem, metade touro, mas somente com a ajuda de Ariade, que lhe deu uma espada e um fio de lã (o Fio de Ariadne) para que ele conseguisse achar o caminho de volta.

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Na série, poderíamos até pensar que Teseu é William, e o Minotauro é Wyatt, mas também, podemos compreender como se tudo fosse Dolores e sua chegada até a consciência: o labirinto não foi feito para William, embora o personagem persiga incansavelmente o jogo; a fúria de Wyatt é, mais tarde, incorporada a narrativa de Dolores, algo importante para que ela se desvincilhe das amarras do sistema e se rebele. Não bastante, no episódio 5 “Contrapasso”, Dolores consulta uma cartomante e começa a puxar um fio do seu braço, “você deve seguir o labirinto“.

Westworld
Westworld 01×05, “Contrapasso”

Westworld é uma série intricada e cheia de detalhes, no entanto, para não alongar o texto, não entraremos aqui nos pormenores de linhas temporais da narrativa, tampouco a respeito das questões sobre criador/criatura e sua dimensão religiosa e espiritual (que é muito relevante para interpretar as correntes filosóficas presentes na série). A interpretação mais pertinente que destacamos da história de Dolores, especificamente, é sua jornada rumo a tornar-se sujeito, e não mais somente um objeto. As crueldades vividas pela personagem estão longe de serem apenas ficcionais e ultrapassadas, há hoje milhões de Dolores lutando pela mesma libertação.

Ser livre e ser mulher, em Westworld ou no mundo real, é um destino que, todos ao redor de Dolores ou de você, dirão ser impossível de alcançar. Embora em alguns momentos isso realmente pareça ser uma verdade, devemos recusar a imobilidade e entrar no labirinto: o primeiro passo para ser livre é através de nós mesmas, da nossa própria desconstrução.

Finalmente, cheguei aqui. No centro do labirinto. E agora, finalmente entendo o que você tentava me dizer. O que você queria desde aquele primeiro dia. Confrontar, depois desse pesadelo longo e vívido, a mim mesma… e quem devo me tornar”, diz Dolores a ela mesma.

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Publicitária, mestranda em Meios e Processos Audiovisuais na ECA-USP, feminista, apaixonada por arte e vivendo um caso particular de amor com o cinema.
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