[X JANELA] Balanço do Dia: mostra competitiva de curtas nacionais e “As Boas Maneiras”

[X JANELA] Balanço do Dia: mostra competitiva de curtas nacionais e “As Boas Maneiras”

A primeira parte da Mostra Competitiva de Curtas Nacionais, do X Janela Internacional de Cinema do Recife, tem o título “Em Caso de Fim de Mundo” e nos mostra cinco curta-metragens que abordam questões bastante urgentes no cenário atual brasileiro, como o aborto, a ditadura, religião e heranças coloniais.

A Passagem do Cometa, de Juliana Rojas, assim como Filme-Catástrofe, de Gustavo Vinagre, que também está na competição, faz parte de uma série de curtas chamada “O Som e o Tempo”. A série conta com 8 filmes que tem como inspiração uma música de cada década desde os anos 20, a ser escolhida pelos diretores de cada curta.

O filme de Juliana Rojas, A Passagem do Cometa, aborda a questão da ilegalidade do aborto no Brasil, mostrando o dia em uma clínica que recebe diversas mulheres que não desejam dar continuidade à gestação. A música selecionada por Rojas é Falta Alguma Coisa, escrita por Zécarlos Ribeiro e gravada pelo Grupo Rumo em 1983. No filme ela é usada juntamente com a ocasião da passagem do cometa Halley, em 1986, como plano de fundo para uma história que continua atual.

As Boas Maneiras
Cena de “A Passagem do Cometa”. Foto de Alice Andrade Drummond.

Em Filme-CatástrofeGustavo Vinagre escolheu a música Travessia de Milton Nascimento, cantada na voz de Elis Regina. O filme mostra uma doutoranda (Angélica, vivia por Julia Katharine) que está escrevendo sobre a representação feminina no cinema, e que chamou a chaveira Lúcia (Gilda Nomacce) para trocar o segredo da fechadura de sua casa para, assim, dar fim a uma relação amorosa.

O filme se passa apenas na sala da casa e é apresentado por Angélica como um bunker. Esse bunker acaba por ser testado com a ameaça de invasão do que está fora. A atriz Julia, após a exibição dos curtas, disse durante o debate que por ser uma mulher trans é bastante significativo fazer esse papel, pois sofre ameaças exteriores o tempo todo. Ela também disse que vê o filme como um retrato da empatia e união entre mulheres, além de tê-la ajudado a “exorcizar alguns sofrimentos sofridos”.

As Boas Maneiras
Cena de “Filme-Catástrofe”

Única animação da sessão, o filme Torre, de Nádia Mangolini, nos traz um registro de memórias dos filhos de Virgílio Gomes, um desaparecido política da época da Ditadura Militar. A equipe do filme, o roteirista Gustavo Vinagre e a diretora Nádia contaram sobre o processo de produção e pós-produção do documentário, além de comentar sobre a urgência desse tema atualmente, mesmo tendo passado tanto tempo da Ditadura.

O filme vai se desenvolvendo narrativamente a partir das memórias escassas da filha mais nova do casal Gregório e Ilda, até o filho mais velho, que têm histórias mais ricas sobre o pai, pois pôde conviver com ele por mais tempo. Assim, o traço da animação vai mudando, cores vão sendo adicionadas até, enfim, os irmãos formem um caleidoscópio de lembranças do pai, assassinado pelos militares.

As Boas Maneiras
Cena de “Torre”

Curta-metragem feito a partir de uma performance, Experimentando o Vermelho em Dilúvio II, de Michelle Mattiuzzi, nos traz o retrato corporal de um Brasil de raízes coloniais. Em uma caminhada até a estátua de Zumbi dos Palmares, no centro do Rio de Janeiro, Michelle veste uma máscara que simula um dos instrumentos de tortura utilizado contra escravos.

O curta é doloroso e chocante, mas bastante necessário. Matheus A., integrante da equipe do curta, disse estar surpreso por ter sido selecionado para a competição, e que o projeto procura embaralhar memórias e escancarar problemas sociais.

As Boas Maneiras
Cena de “Experimentando o Vermelho em Dilúvio II”

Em première mundial no X Janela, o filme Terremoto Santo, de Barbara Wagner e Benjamin de Burca, procurou documentar a performance musical nas Igrejas Evangélicas. Bárbara conta que tem trabalhado com música desde filmes anteriores e sentiu a curiosidade de abordar a música como instrumento de fé. O curta foi gravado na região da Zona da Mata pernambucana, na cidade de Palmares, com artistas evangélicos e pessoas que trabalham com a fé protestante.

A diretora, acompanhada pelo elenco do filme, – entre eles, alguns nunca haviam entrado em um cinema – contou durante o debate que foi feita uma parceria com a gravadora Mata Sul, selo gospel pernambucano. A música carrega a narrativa do documentário e, segundo Barbara, não se pretende fazer propaganda para as Igrejas, por isso em nenhum momento o filme se passa dentro de uma igreja (a não ser por uma que ainda estava em construção). O curta coloca os personagens em contato com a natureza e procura documentar o fato de que para essas pessoas Deus é uma força natural.

As Boas Maneiras
Cena de “Terremoto Santo”

Da primeira parte da mostra competitiva, talvez esse tenha sido o momento mais controverso até agora. O curta, sem dúvida, é bonito, porém causa reações bastante adversas. Parte da plateia riu desde o início do filme e em um dado momento o cinema todo caiu na gargalhada. A riqueza do documentário é deixar espaço para diversas interpretações possíveis – é uma crítica? É uma homenagem? Acredita-se que desde a escolha do tema para o filme há uma posição tomada por parte da equipe. Cabe ao espectador tomar a sua. O trailer do curta pode ser visto no Vimeo.

Para encerrar a terceira noite de festival, a sala estava lotada para assistir As Boas Maneiras, produção franco-brasileira, de Juliana Rojas e Marco Dutra. O filme conta a história de Ana (Marjorie Estiano) que contrata Clara (Isabél Zuaa) para ser babá de seu filho ainda não nascido. Com o passar do tempo, Clara começa a notar os hábitos noturnos incomuns de Ana. A partir do nascimento de Joel (Miguel Lobo, sem trocadilhos), filho de Ana, a história cresce para os dois lados. O formato de fábula aparece sutilmente na história, como na maneira em que a cidade é retratada, no jeito como a história é contada, nas construção das relações entre personagens.

No início da conversa sobre o filme, após sua exibição, Kleber Mendonça Filho pergunta aos diretores qual a opinião deles sobre o filme ter ficado com a classificação indicativa para maiores de 18 anos. Isso surpreende Juliana e Marco, que não sabiam da novidade. Essa pergunta abre um debate bastante interessante e Rojas classifica como hipocrisia, citando o fato de que as crianças são expostas livremente a conteúdos degradantes e que mostram violência explícita. Ela se diz impressionada, pois a seu ver, As Boas Maneiras trata de um relacionamento entre duas mulheres e a construção de uma família incomum, afirmando: “é censura.

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Passada a surpresa, Juliana conta que o título As Boas Maneiras foi pensado antes de todo o restante do filme e que a equipe estudou muito a narrativa de contos de fadas, tendo explorado isso muito bem durante o filme. O longa percorre entre diversos gêneros – drama, comédia, terror – e se mostra um “filme de lobisomem” bastante humanizado e muito sensível.

Marco Dutra fala sobre a separação entre gêneros em uma locadora que acaba apartando o cinema brasileiro e colocando-o somente em uma caixinha. Ele é categórico: “não existe somente um gênero, o gênero cinema brasileiro”. Os diretores defendem que a nova geração de cineastas no Brasil se sente mais confortável para transitar entre temáticas e gêneros de maneira mais suave.

As Boas Maneiras
Cena de “As Boas Maneiras”

O debate ainda passa por perguntas sobre como os atores mirins lidaram com a temática do filme e sobre os efeitos utilizados para dar uma identidade mais firme ao personagem meio lobo e meio criança, de sete anos. Juliana e Marco conseguem suscitar reflexões diversas com As Boas Maneiras, desde a relação de poder entre babá e mãe da criança, até sobre maternidade e amor.

O filme foi premiado no Festival Internacional de Cinema de Locarno e laureado com o Prêmio Petrobras de Cinema (vai contar com o investimento de R$200 mil em divulgação em salas comerciais). Recebeu também prêmios como o Félix (melhor obra com temática LGBT) e três troféus Redentor no Festival do Rio.

>> Confira aqui nossa cobertura completa do X Janela!

Imagem destacada: cena do filme As Boas Maneiras.

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Gaúcha moradora do Recife. Estudante de jornalismo com um pé (ou quase o corpo todo) nas artes. Acha que falar sobre si mesma na terceira pessoa é muito estranho.
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