Pagu: pioneira nas histórias em quadrinhos no Brasil

Pagu: pioneira nas histórias em quadrinhos no Brasil

Das muitas personagens femininas ligadas às artes e à literatura brasileiras, o nome de Patrícia Galvão, a Pagu, talvez seja o que mais se sustentou dentro da história do Brasil. Nascida em 08 de junho de 1910, Patrícia Galvão foi uma mulher além de seu tempo, destacando-se como romancista, poetisa, jornalista, ativista política e como pioneira nas histórias em quadrinhos.

Usou muitos pseudônimos (Solange Sohl, Zanza, Pat, Patsy, Pt., Ariel, P.G., Mara Lobo, K.B.Luda, Irmã Paula, G. Lea, Leonnie, Gim, Brequinha, Peste, Cobra, King Shelter), mas aquele que a imortalizou foi o de Pagu, apelido que recebeu do poeta Raul Bopp, que a ela dedicou uma de suas poesias. A jovem que aos 18 anos de idade que se envolveu em um dos movimentos culturais mais significativos do século XX no Brasil.

O Movimento Modernista teve início nos anos de 1920 e prolongou-se até a década de 1940. Teve como marco a Semana da Arte Moderna, em 1922, realizada em São Paulo. O movimento propunha uma mudança estética nas artes e na literatura, como uma forma de romper com a tradição colonialista e oligárquica do país. Buscava-se na cultura popular a identidade nacional. Para os modernistas, era necessário valorizar a multiplicidade étnico-cultural do país. O ano de 1922 foi marcado, também, pelo surgimento do Partido Comunista.

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Pagu participou justamente da segunda fase do movimento modernista, quando ela já tinha seus contornos bem definidos. Ela foi colaboradora da Revista de Antropofagia fundada por um grupo de modernistas dissidentes, formado por Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Raul Bopp, Oswaldo Costa, Geraldo Ferraz e Fernando Mendes de Almeida.

Este grupo havia aderido a uma linguagem experimental, marcada pela contestação, inspirada no surrealismo. Pagu colaborava com a ilustração da revista, ao lado renomados artistas como Di Cavalcante. Encontrou no desenho e na escrita formas de expressar suas ideias e suas emoções. Ela se tornou aprendiz de dois nomes importantes do modernismo brasileiro, nas artes e na literatura, Tarsila do Amaral e Oswaldo de Andrade.

Oswald de Andrade foi um dos escritores mais importantes do modernismo brasileiro e um dos fundadores do movimento modernista. Sua crença na liberdade na construção do texto, a ruptura com a formalidade, influenciaram Pagu em seus escritos. Na época em que conheceu Pagu, mantinha um relacionamento amoroso com a celebrada pintora modernista Tarsila do Amaral.

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Tarsília do Amaral por Pagu.

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Tarsila foi outra referência para Pagu, que aos 18 anos encontrou no desenho uma das suas primeiras formas de expressão artística. Seus desenhos, livres dos padrões estéticos da época, lembram o traço de Tarsila. Mas Pagu tinha características próprias que tornam sua produção única. Mas a parceria com a pintora duraria pouco tempo. Tarsília encerra seu namoro com Oswald ao descobrir que ele estava tendo um caso com a jovem Pagu.

Seus desenhos, assim como todo o montante da sua abra, se caracterizavam pela liberdade estética. Entre 1929 e 1931 ela utilizou do desenho como uma das suas primeiras formas de expressão. Seus poemas eram acompanhados de ilustrações, traços simples, quase infantis. As ilustrações revelavam a Pagu que amava seus gatos, a mulher apaixonada e sonhadora, a jovem modernista rebelde. Seus quadrinhos suas charges mostram a jovem militante que procura no movimento comunista um ideal de justiça que atendesse a todos, homens e mulheres.

Pagu não era uma mulher comum. Não obedecia aos estereótipos femininos da sua época. Ela fumava, bebia e frequentava ambientes considerados masculinos. Seu comportamento era tido como imoral, ela falava palavrões e não temia as autoridades, muito menos os homens. A pesquisadora Maryllu de Oliveira Caixeta descreveu Pagu como “mulher de beleza provocante, sensualmente incomum no modo como se enfeitava, seu comportamento era um choque para a São Paulo provinciana.”

Da união com Oswald de Andrade nasceu o jornal semanário “O Homem do Povo”, em 1931, onde Pagu publicou o que podem ser considerados uns dos primeiros quadrinhos feitos por uma mulher no Brasil. A tira “Malakabeça, Fanika e Kabelluda”.

São conhecidas apenas oito tiras produzidas por Pagu, mas acredita-se que ela criou muitas outras. Em seus quadrinhos ela trouxe dois tipos de representações: a da esposa cordada e obediente, que recebe em sua casa a sobrinha pobre, uma jovem contestadora e fora dos padrões convencionais, como era a própria Pagu. Logo na primeira tira, Kabelluda é apresentada para o público como um “pomo de discórdia” para o casamento dos tios. A tia, Fanika, tinha ciúmes da moça enquanto o tio Malakabeça lhe fazia todas as vontades.

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Suas histórias em quadrinhos, assim como seus romances e outros escritos trazem uma parte da própria vivência de Pagu, podendo ser considerados autobiográficos. Seus quadrinhos deixavam claros os seus posicionamentos ideológicos. Pagu não se furtava de tocar em temas delicados, como o aborto, por exemplo, nem de denunciar a censura e a violência contra aqueles que defendiam ideais de esquerda.

Em uma das tiras que Pagu publicou em 1931. Em uma delas a aventureira Kabelluda foge de casa para ir conhecer Portugal. Meses depois ela retorna com uma filha, “Kabeludinha”. Sua tia, Fanika, mata a criança: “Fanika moralista estragou porque Kabelluda era solteira.”

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Em uma tira, ela convence o tio a abrir um jornal voltado para os interesses do povo. Uma referência direta a um jornal comunista. O jornal faz sucesso, mas é fechado, assim como aconteceria com o “Homem do Povo”, que teve apenas oito edições, de março a abril de 1931, antes de empastelado por estudantes da Faculdade de Direito do Largo do Machado.

Em “O Homem do Povo”, além de fazer charges e quadrinhos, Pagu também possuía uma assinava uma coluna feminista, “A Mulher do Povo”, cujo desenho do título é de sua autoria. Nela publicava textos onde, muitas vezes, ironizava os valores tradicionais e a hipocrisia das mulheres e da sociedade paulistana. Por exemplo, em sua coluna e em suas tiras Pagu satirizou a visita de Edward, príncipe de Gales, herdeiro do trono britânico, ao Brasil, em fins de março de 1931.

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Pagu demonstrou todo seu desgosto pela atenção que o herdeiro britânico recebeu do governo de Getúlio Vargas e pelo deslumbramento que o príncipe despertou nas jovens brasileiras. Numa de suas tiras ela mostra Kabelluda ansiosa pela chegada do príncipe e no final desiludida aos conhecer os posicionamentos políticos dele.

Em algumas de suas tiras Kabelluda foi brutalizada e presa, antecipando aquele que seria o futuro de Patrícia Galvão. Pagu foi presa 23 vezes, principalmente por sua militância no Partido Comunista. Sua primeira prisão ocorreu em 23 de agosto de 1931, na cidade de Santos (SP), ao participar de um comício. Durante o protesto Pagu tentou socorrer um estivador negro, fuzilado pela polícia, diante dos filhos. Era a primeira vez que uma mulher havia sido presa no Brasil, por motivos políticos. Ela foi levada para o cárcere na Praça dos Andradas, cadeia que atualmente abria um centro cultural que leva o seu nome.

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Das mulheres lembradas pela História do Brasil, Pagu talvez tenha sido a que mais teve visibilidade. Ela já foi tema de música, sua vida tornou-se documentário, filme e peça de teatro. Sobre ela já foram feitos colóquios e exposições. No meio acadêmico podemos encontrar teses, dissertações e artigos que fala da sua vida e da sua obra. Há uma revista acadêmica que leva seu nome, os “Cadernos Pagu”.

Mas a Pagu quadrinista, esta ainda está se revelando. De toda a sua produção, seu pioneirismo nos quadrinhos está sendo discutido recentemente. Isto se deve, a princípio, ao maior interesse que as histórias em quadrinhos têm despertado no meio acadêmico nos últimos anos e pelo crescente aumento da participação feminina na produção de quadrinhos no Brasil. Pagu tem se tornado uma referência para jovens quadrinistas e tem sido revisitada pelas feministas.

Em 2016, 106 anos após seu nascimento, a memória de Pagu a relevância do seu trabalho e sua militância fez com que ela fosse homenageada no dia Internacional da Mulher, quando a Social Comics, maior site de streaming de HQs da América Latina, anunciou a criação do o selo Pagu Comics, com o objetivo de destacar o trabalho das mulheres no mercado de quadrinhos brasileiro. As publicações que serão lançadas pelo selo contarão exclusivamente com histórias em quadrinhos nacionais feitas por mulheres. A iniciativa tem como objetivo fomentar a produção delas no mercado de HQs.

Fontes consultadas

  • ANDRADE, Oswald; GALVÃO, Patrícia; LIMA, Queiroz. O Homem do Povo. Março/abril, 1931. Facsimilar com introdução de Augusto de Campos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: Arquivo do Estado, 1984.
  • CAMPOS, Augusto. Pagu. Vida e Obra. São Paulo: Brasiliense, 1982.
  • CAIXETA, Maryllu de Oliveira. Pagu: “gata safada e corriqueira”. Letras & Letras, Uberlândia, n.20, p 59-67, 2004.
  • FLORES, Maria Bernadete Ramos. Dizer a infelicidade. Gênero: Niterói, v. 10, n. 2, p. 125-150, 0m. 2010 125- 150.
  • FURLANI, Lúcia Maria Teixeira. Croquis de Pagu – e outros momentos felizes que foram devorados reunidos. – Santos (SP): UNISANTA; São Paulo: Cortez, 2004.
  • Pagu – Patrícia Galvão: livre na imaginação, no espaço e no tempo. – Santos (SP): UNISANTA, 1999.

Autora Convidada: Natania Nogueiraé mestre em História do Brasil pela Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO), com a dissertação “As representações femininas nas histórias em quadrinhos norte-americanas: June Tarpé Mills e sua Miss Fury (1941 – 1952).” Coordena o Projeto Gibiteca, na E. M. Judith Lintz Guedes Machado desde 2007, projeto reconhecido pelo MEC em 2008, com o Prêmio Professores do Brasil.

É sócia fundadora da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial (ASPAS), membro da Academia Leopoldinense de Letras e Artes (ALLA), em Leopoldina, MG, e da Academia Lavrense de Letras (ALL), em Lavras, MG. Contribuiu com artigos para a revista francesa Papiers Nickelés. Tem diversos textos publicados sobre a temática da mulher em HQs e sobre quadrinhos e projetos educativos.

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