X-Men Primeira Classe: o filme mais misógino da franquia

X-Men Primeira Classe: o filme mais misógino da franquia

Criados nos anos 60 e inspirados no movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, os quadrinhos dos X-Men tiveram uma adaptação mais que irônica para o cinema. Originalmente trazendo uma ampla gama de mutantes de todas as nacionalidades, raças e gêneros, eles tiveram, nos filmes, apenas protagonistas homens e brancos.

Os diretores Bryan Singer e Brett Ratner colocaram Wolverine no papel principal da primeira trilogia. E, iniciando a segunda, X-Men Primeira Classe conta a história de como Charles Xavier e Magneto se conheceram e formaram uma amizade, nos anos 60, justamente a época em que os quadrinhos foram criados. Nada mais controverso, então, que colocar o explicitamente misógino Matthew Vaughn (que depois faria os terríveis Kingsman) para dirigir esta prequel, onde ele simplesmente omite o movimento dos direitos civis, mas usa convenientemente o “machismo dos anos 60” como desculpa para tratar suas personagens femininas como lixo.

Não que os outros filmes tratassem as mulheres muito melhor. Elas também eram subaproveitadas e representadas de formas impotentes e submissas, mas nada chega perto do que Vaughn fez em X-Men Primeira Classe. Atenção: há alguns pequenos spoilers ao longo do texto, revelando detalhes da trama.

O filme começa com a mãe de Magneto sendo “colocada na geladeira“. Essa expressão descreve o fato comum de a morte de mulheres ser usada para motivar personagens masculinos, recurso infelizmente muito comum nos quadrinhos e em filmes. (Lembremos que em X-Men Apocalipse, a esposa e a filha de Magneto TAMBÉM são mortas para motivá-lo, mais uma vez. Eles nunca cansam de colocar mulheres na geladeira.)

Logo em seguida somos apresentadas à pequena Mística, que invade a mansão do também criança Charles Xavier. Ele simpatiza com ela, e diz que ela pode morar com ele. Corta para alguns anos na frente, e um agora adulto Xavier mantém Mística disfarçada em forma humana, e a repreende se ela tentar brincar com seus poderes que a permitem mudar de forma.

Em X-Men Primeira Classe, o jovem Xavier é caracterizado de forma bem diferente daquele sábio professor que conhecemos na primeira trilogia. Aqui ele é um mulherengo extrovertido e festeiro, que entorna litros de álcool e dá em cima de todas as mulheres que encontra no bar. Ao mesmo tempo, ele mantém uma relação paternalista com Mística, a tratando como criança mesmo eles não tendo tanta diferença de idade. Quando vão ao bar, ele pede bebidas para si e refrigerante para ela. E um outro fato não explicado pelo filme é o motivo pelo qual ele se gradua e vira professor, enquanto ela permanece sendo uma garçonete. Ele por acaso não a incentivou a estudar e entrar para uma universidade também? Que tipo de “irmão” ele foi para Mística?

Por toda essa tutela aprisionante, Mística cresce com uma péssima auto-estima. Em uma cena, ela pergunta a Xavier se ele a namoraria, mesmo ela sendo azul em sua forma natural, e ele tem dificuldades em responder. Ao longo do filme, Mística se interessa romanticamente por Hank, o Fera, mas se frustra por ele também não a aceitar como ela é.

Mística
Mística odiando a própria aparência.

Magneto é a primeira pessoa que aceita Mística em sua forma natural. X-Men Primeira Classe, porém, mostra isso por meio de cenas meio atrapalhadas e sem sentido. Após alguns comentários do tipo “seja você mesma” vindos de Magneto, Mística de repente aparece nua na cama dele, sem contexto indicando algum desenvolvimento na relação entre eles.

Primeiro ele diz que ela é muito jovem e a dispensa, mas quando ela pede o roupão para ir embora, ele diz que ela nem precisa usar roupas. “Você já olhou para um tigre e pensou que deveria cobri-lo?”. Esta frase é tão surreal que é até difícil compreender como as pessoas não se revoltaram imediatamente com essa cena. Mística não é um animal. Quer dizer que só por ela ser azul, ela pode andar sem roupas por aí? 

Os produtores de X-Men Primeira Classe acham que sim. Tanto que, na próxima cena, a câmera mostra todo o corpo nu de Mística de cima à baixo em detalhe. Se tirar a roupa é “liberdade”, porque o próprio Magneto não sai andando nu por aí? Ou, se isso só vale para mutantes “azuis”, porque o Fera e o Norturno nos outros filmes também não andam sem roupas? Sabemos qual é a resposta, né, e tem a ver com gênero.

Mística e Magneto

Ainda por cima, apesar de Magneto ter dito que Mística era muito nova, ele termina a beijando na mesma cena. Além disso não fazer muito sentido no desenvolvimento dos personagens, é como se o diretor não conseguisse conceber que uma mulher possa ter alguma relação com um homem que não seja romântica/sexual. Para se sentir aceita, Mística tem que saber que os caras se sentem atraídos por ela, afinal, deve ser esse o único valor que Vaugh acredita que as mulheres têm.

Além de buscar aprovação dos homens, flertar com todos eles, e ser levada a escolher entre as filosofias de Xavier ou de Magneto, sem poder seguir um caminho próprio e autônomo, Mística também é relegada ao segundo plano no final do filme. Quando os mutantes liderados por Xavier começam a treinar para enfrentar o vilão Sebastian Shaw, ela é a única que não recebe treinamento. Apenas aparece malhando e recebendo umas lições de moral de Magneto.

Por que Xavier treina os outros (que coincidentemente ou não, são todos homens), mas não treina Mística para controlar melhor seus poderes? Ela só tem uma minúscula participação na batalha final, enquanto todos os outros tem a chance de usar seus poderes para conter Shaw.

Outra personagem sub-utilizada foi Angel Salvadore. Xavier e Magneto a recrutam no clube de strip em que ela trabalha, onde fingem contratar uma dança privada dela. A cena é toda feita com piadinhas de duplo sentido. “Se você nos mostrar o seu, mostramos o nosso”, diz Magneto, deitado numa cama ao lado de Xavier, enquanto observam Angel.

Angel Salvadore
Angel Salvadore

Ela anda sempre com roupas curtas, tem poucas falas, e se junta aos vilões na primeira oportunidade, mesmo sem o roteiro nos dar motivos plausíveis para entender essa mudança de lado. Com a saída dela e a morte de Darwin, o único mutante negro do grupo, a turma “do bem” de Xavier fica composta apenas por gente branca.

A mutante Emma Frost aparece como o braço direito do vilão Sebastian Shaw. Apesar de muito poderosa, ela se limita a servir de secretária para Shaw, mais notoriamente na cena em que ele a humilha ordenando que coloque mais gelo na bebida dele. Ela aparece sempre usando lingerie, o que sabemos que é terrivelmente comum nas adaptações de super-heróis de quadrinhos, mas que não se torna menos ridículo; e também tem que usar sua sexualidade para extrair informações de agentes governamentais poderosos.

mutantes
Só tem gente branca no time de Xavier.

Em outra cena, Emma mal usa seus poderes, tenta fugir de Xavier e Magneto, e acaba aprisionada por eles. Magneto a amarra nos metais de uma cama, a enforca e consegue quebrar sua forma de diamante, e logo em seguida fala para Xavier: “ela não vai se transformar em diamante de novo. E se o fizer, é só dar um tapinha nela.” Várias falas nojentas e depreciativas como essa estão presentes no filme, na boca de vários personagens, por mais distintas que sejam suas personalidades.

Vaugh usou a desculpa de que pretendia ilustrar o machismo dos anos 60, mas o filme não questiona realmente essas ocorrências e os personagens que as cometem. Reprodução sem reflexão se torna discurso. E pela quantidade de incidência neste filme, e em outros filmes que Vaughn dirigiu, sabemos que ele é bastante adepto da misoginia.

Emma Frost
Emma Frost em seu “uniforme”.

Após a mencionada cena, Emma Frost vai para uma prisão da qual poderia facilmente escapar, tanto que brinca com seus captores, quebra o vidro da cela, mas acaba ficando placidamente por lá, como que esperando um novo mestre. Até que Magneto surge e a chama para compor seu novo time, na última cena do filme. Não faz sentido uma mutante poderosa como ela desperdiçar a chance de escapar. Além de um furo de roteiro, isso configura uma subutilização da personagem. Decidiram retirá-la de boa parte do filme, mas sem encontrar uma justificativa plausível para que o público comprasse a ideia.

Por fim, uma das personagens mais maltratadas é Moira MacTaggert. Mudando bastante a personagem dos quadrinhos, que era uma geneticista especialista em mutantes, aqui ela é uma agente da CIA que está investigando o Hellfire Club, um clube de striptease onde várias figuras poderosas do governo estão se encontrando.

Há uma cena em que o colega de trabalho de Moira observa o corpo das stripers pelo binóculo e baba por elas. Logo em seguida ele é surpreendido por Moira arrancando as próprias roupas dentro do carro, para se misturar às stripers de lingerie e entrar no estabelecimento. “Estou usando um equipamento que a CIA não me deu“, ela diz a seu colega. Nós reviramos os olhos, claro, porque nada nessa cena precisaria ser dessa forma. É uma cena explicitamente feita para servir ao olhar masculino, e nada mais.

X-Men Primeira Classe
Mulheres de lingerie para o público masculino. Esta geralmente é a única função de cenas em clubes de strip.

Moira é repetidamente ridicularizada durante o filme. Os outros agentes da CIA duvidam dela e não confiam no que ela diz. Após pedir a ajuda de Xavier, ela passa ao segundo plano, apenas observando as ações dele. E perto do final, ela pergunta a Xavier se ele está bem apenas para ouvir um “Moira, fique quieta. Preciso me concentrar”.

X-Men Primeira Classe
“Você está bem?” “Moira, fique quieta.”

Finalizada a batalha, Xavier não confia que ela irá manter segredo sobre os mutantes, e então apaga sua memória sem nem sequer pedir consentimento. Quando é interrogada pela CIA (numa conferência onde todos fora ela são homens), ela balbucia frases sem nexo, e um dos homens proclama “cavalheiros, é por isso que a CIA não é lugar para mulher.” Que ótimo, não?

Uma das roteiristas creditadas em X-Men Primeira Classe, Jane Goldman, comentou que originalmente a trama foi pensada para fazer um paralelo entre a discriminação que Moira sofre por ser mulher e a opressão dos mutantes, e seria essa uma das razões pelas quais Moira se sente impelida a ficar do lado deles. A edição, entretanto, acabou deixando de fora várias cenas que desenvolveriam mais essa subtrama, e ficamos apenas com Moira sendo desmoralizada o filme inteiro, mas sem críticas explícitas ao comportamento dos personagens que a oprimem. Ao contrário, somos compelidas a empatizar com Magneto e Xavier, que protagonizam o filme e portanto tem muito mais tempo em tela, mesmo demonstrando ser bem babacas diversas vezes.

Resumindo, todas as 4 mulheres importantes para a trama de X-Men Primeira Classe aparecem de lingerie (Moira, Emma e Angel) ou nuas (Mística). Elas são também desmoralizadas, silenciadas, infantilizadas, tratadas com condescendência, e cantadas por homens. As outras mulheres que aparecem são stripers figurantes, uma mulher que é cantada por Xavier no bar, e as mães de Xavier e Magneto, que ocupam apenas uma cena cada, e tem uma ou duas falas. O filme não passa no teste de Bechdel, ou seja, nenhuma mulher conversa com a outra.

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X-Men Primeira Classe não é necessariamente um filme ruim. Apesar de contar com um roteiro cheio de furos e que muda diversos eventos de lugar em relação aos filmes anteriores, ele traz um bom elenco e uma boa montagem, mantendo os espectadores interessados até o final. É uma pena que, com um diretor como Vaughn e produtores que certamente não se importam, o filme acabe minando o tema de valorização à diversidade que propõe desenvolver.

É muita hipocrisia usar os mutantes como uma metáfora para minorias discriminadas, mas fazê-los serem interpretados por atores brancos, eliminando os não-brancos logo no meio do filme. É um atrevimento tocar no tema de discriminação mas tratar as mulheres da forma como elas são tratadas durante a projeção. Como numa cena bastante representativa deste espírito do filme, Xavier instrui Havok a controlar seus poderes tentando atingir manequins femininos. Como bruxas na fogueira, os responsáveis por este filme certamente querem ver mulheres queimarem.

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Cineasta, musicista e apaixonada por astronomia. Formada em Audiovisual, faz de tudo um pouco no cinema, mas sua paixão é direção de atores.
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