Judith Butler, as mulheres do cinema e porque não podemos ficar caladas

Judith Butler, as mulheres do cinema e porque não podemos ficar caladas

A filósofa americana Judith Butler defende que não haja violência e sim igualdade e respeito. Mas para conseguir tal façanha social é preciso que as pessoas odeiem menos e respeitem mais, especialmente quem não pensa da mesma forma.

Quanto mais desigualdade, pior a convivência. No entanto, a igualdade que ela prega não é “vamos destruir quem é diferente para permanecermos iguais” e sim “vamos respeitar e acolher as pessoas diferentes para que possamos viver em paz”. Para a filósofa, a diversidade não é ruim e deve estar representada na sociedade e… no cinema.

A grandeza e o alcance do pensamento de Judith Butler parece ser o que mais incomoda. O pensamento dela ecoa na política, nas ciências sociais, na antropologia e na produção cultural. Também na tela queremos diversidade e vamos lutar para que ela exista. As ideias de Judith Butler, que não está sozinha, não saíram simplesmente da cabeça dela. Estão fundamentadas em pensamentos anteriores e vão influenciar pensamentos futuros. A catedrática de comunicação da Universidad de Valencia/Espanha Giulia Colaizzi resume essas vozes que resgataram e resgatam a história, a influência e a importância das mulheres na sociedade e na sétima arte.

Podemos dizer que tudo começou nos anos 60, com o movimento feminista que queria e ainda quer a mesma coisa: igualdade entre mulheres e homens, entre pessoas. É quando surge a Teoria Fílmica Feminista. Foi quando as mulheres olharam para como estavam sendo representadas na tela e pensaram: “não, não…. somos mais que isso”. Um dos primeiros passos foi reconhecer o trabalho das pioneiras.

Antes do cinema falado, a sétima arte era “coisa de mulher”. Depois que tornou-se uma peça importante na indústria cultural (leia-se “tornou-se lucrativo”), passou a ser “coisa de homem” e as senhoras e senhoritas que produziam e dirigiam filmes foram esquecidas. Apenas uma delas, chamada Dorothy Arzner continuou na luta até 1943. Outras como Alice Guy-Blaché (França), Elizaveta Svilova (antiga União Soviética), Anna Hofman-Uddgren (Suécia), Dinah Shurey (Grã-Bretanha), Elvira Notari (Itália), Rosario Pi (Espanha), Adela Sequeyro (México) e Wanda Jakubowska (Polônia) praticamente sumiram do mapa da história.

Judith Butler
Na ordem: Alice Guy-Blaché, Mary Pickford, Adela Sequeyro, Elvira Notari e Wanda Jabukowska.

É no final dos 60 e começo dos 70, que outras bravas acadêmicas denunciam: no cinema, as mulheres são representadas como objetos de desejo, adoração ou violência, são passivas e castigadas se se atrevem a querer desempenhar uma atitude ativa ou questionar o modelo do “anjo do lar” ou das figuras contraditórias de mãe/mulher fatal, virgem/puta. O modelo ideal de mulher deve renunciar a seus desejos. Aparecem as “Butlers” daquela época: Betty Friedan (1963), Shulamith Firestone (1970), Kate Millett (1970), Mary Daly (1973), Adrienne Rich (1976) e seus influentes livros.

Judith Butler
Na ordem: Kate Millett, Mary Daly, Shulamith Firestone, Adrienne Rich e Betty Friedan.

Na crítica cinematográfica, surgem Marjorie Rosen (1973), Molly Haskell (1974), Joan Mellen (1974) e Sharon Smith (1975), que inclusive pesquisa sobre mulheres e cinema fora da Europa, em países como Egito, Camarões e Índia. É nessa época que surgem os festivais de cinema de mulheres, até hoje uma arma importante para a visibilidade dos trabalhos femininos.

É também em 1975 que Claire Jonhston planteia a noção de cine de mulheres como “contracinema” e sugere que deveríamos confrontar os modelos de feminilidade mostrados como naturais ou como uma essência do ser humano. Ou seja, “ser mulher” é mais do que responder a um chamado biológico. É um construção social, como já dizia antes, em 1949, a admirada filósofa Simone de Beauvoir. Aqui é quando entra outra grande pensadora do cinema e seus efeitos: Laura Mulvey (1975).

Agora, a preocupação centra-se também em como as pessoas, especialmente as mulheres, veem a si mesmas representadas no cinema. Como exemplo de suas teorias, Mulvey utiliza o voyerismo sádico de Alfred Hitchcock e o fetichismo de Josef von Sternberg para explicar como o espectador masculino é o receptor ideal do cinema porque se vê representado como um todo. Assim, o cinema clássico, por exemplo, relaciona feminilidade com reprodução e passividade e a masculinidade com produção e atividade, onde o herói deseja, é sujeito, deve superar obstáculos e provas enquanto as mulheres são condenadas à imobilidade, à impotência e à espera. O corpo feminino é um objeto erótico, exposto ao olhar, isolado, embelecido, à espera de um final, de um desenlace.

Já nos anos 80, Teresa de Lauretis (1984) acrescenta que o fato das mulheres continuarem indo ao cinema significa que elas sentem prazer na experiência cinematográfica mais além de identificar-se com a passividade e a impotência. De Lauretis explica que há várias possibilidades de identificação que não se reduzem, por exemplo, a identificação com personagens do mesmo sexo ou exclusivamente com um personagem. Tudo depende da subjetividade feminina.

Já para Mary Ann Doane (1987), as mulheres, dentro e fora da sala de cinema, seriam induzidas a identificar-se com certos rasgos como vítimas, objetos sexuais, sedutoras ou incapazes de realizar determinadas tarefas, porque é isso que a sociedade espera delas. Por sua parte, Kaja Silverman (1988) propõe separar o corpo feminino de sua relação essencial, biológica e anatômica. Para ela, a construção da feminilidade serve para que a subjetividade completa do ser humano seja identificada com os homens. As mulheres continuam perdendo.

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Na ordem: Teresa de Lauretis, Kaja Silverman e Mary Ann Doane.

É nos anos 90, depois de passar por todas essas teorias que surgem diferentes estudos sobre a relação entre mulheres e cinema, dentro e fora das telas, e há um aprofundamento e uma ampliação dos estudos de gênero, especialmente através da produção científica de Judith Butler, Eve Kosofsky Sedgwick e Gayle Rubin.

O gênero passa a ser considerado uma performance, ou seja, quando nascemos mulher devemos “atuar” como mulher e quando nascemos homem devemos “atuar” como homem. Qualquer pessoa que negue essa “performance” será excluída socialmente.

O discurso do feminismo passa a ser um discurso geral sobre a sociedade, a produção cultural e a incomodar muita gente que não sente na pele os problemas causados por essa exclusão. Surge o pós-feminismo. Agora, os/a teóricos/as denunciam também que a discriminação não é só contra a mulher.

Judith Butler
Na ordem: Eve Kosofsky Sedgwick e Gayle Rubin.

Outros fatores como raça, etnia, classe social, preferência sexual e religião influenciam dentro e fora das telas. É nesse momento que surgem os Estudos de Gênero (Gender Studies) e os Estudos Gays e Lésbicos (Gay and Lesbian Studies) de onde se deriva a incipiente Teoria Queer, que considera o desejo como algo muito mais como complexo do que se imagina, denuncia a repressão contra as pessoas LGBTQI e explica o caráter intrínseco do travestismo.

Surgem teorias gerais e intervenções no campo da produção cinematográfica, por exemplo, nos trabalhos de Elizabeth Weed, Naomi Schor, Esther Newton, Vito Russo, Roger Baker, Steven Cohan, Ramona Curry, Judith Halberstam, Ellis Hanson e Thomas Waugh. Assim, etnia, raça, classe social e religião são identificados como fatores discriminatórios.

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A Teoria Fílmica Feminista também traz à tona esses factores como análise das produções culturais. Alguns exemplos são os trabalhos de Audre Lord (1984), Michelle Wallace (1990), Bell Hooks (1992), Valerie Smith (1997), Trinh T. Minh-ha (1989), Rey Chow (1995), Paula Rabinowitz (1995), e E. Ann Kaplan (1998). Aliás, estes trabalhos são desenvolvidos, em parte, através dos Estudos Culturais e Poscoloniais, que utilizam várias disciplinas, juntam consciência política com compromisso com o feminismo e a crítica social para compreender a vida contemporânea cada vez mais desarticulada, fragmentada e desigual, especialmente por causa da globalização.

Judith Butler
Na ordem: Trinh T. Minh-ha, Bell Hooks, Audre Lord e Michele Wallace.

O que queremos dizer aqui é que a resistência a novas ideias sempre existiu e vai continuar a existir. Mas, hoje, mais que nunca, temos vozes e podemos, devemos e vamos continuar lutando, pedindo e exigindo as mudanças necessárias para que possamos viver em uma sociedade mais igual, mais justa e mais amorosa. O ódio nunca foi e jamais será o caminho.  

Fonte: 1. Colaizzi, Giulia (2002). Cine e imaginário sociosexual. In Selva, Marta e Solà, Anna (compliladoras). Diez Años de la Muestra Internacional de Filmes de Mujeres. Paidós. Barcelona, pp. 41-46.

Imagem destacada: Dorothy Arzner

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Apaixonada por tudo relacionado ao cinema e ao audiovisual. Gosta principalmente de ver mulheres fortes e felizes nas telonas e nas telinhas. Por isso, depois de trabalhar muitos anos em televisão, decidiu estudar mais sobre o assunto e fez um doutorado no tema pra ajudar na reflexão do papel da mulher no cinema, e poder dividir opiniões e pensamentos com mais apaixonadas/os como ela.
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