Outlander – 3ª temporada: a constante barreira de ser mulher em um mundo dos homens

Outlander – 3ª temporada: a constante barreira de ser mulher em um mundo dos homens

Das terras altas da Escócia até a França, dos Estados Unidos até o Caribe; Outlander, a série conhecida pelas viagens no tempo de sua protagonista através de círculos de pedras, é bem mais do que isso; é repleta também de viagens através da geografia. Com uma trama cheia de nuances, acontecimentos inesperados e fortes personagens, a série teve, após mais de um ano de espera, a estreia de sua terceira temporada em setembro deste ano. Se antes Claire se dividia entre os séculos XVIII e XX, nos últimos 13 episódios lançados a temporalidade é outra, novos personagens surgem e antigos retornam.

Na primeira temporada de Outlander foi possível conhecer a protagonista da história que, ao tocar no círculo de pedras de Craigh na Dun, nas Highlands escocesas, acaba sendo levada em uma viagem no tempo. Lá, ela encontrou a Escócia de 1743, o movimento nacionalista jacobita que ansiava pelo retorno do seu rei católico ao trono britânico e inúmeros obstáculos e impasses. Aquilo que pareceu de início se tratar apenas de uma história de amor, provou ser muito mais; Outlander, desde já, era a história de uma mulher que estava à frente do tempo não apenas na cronologia, mas em si mesma.

SPOILERS DA 3ª TEMPORADA A PARTIR DAQUI

Em termos de produção, esta última temporada se notabilizou em termos de fidelidade histórica aos períodos retratados. Conforme os próprios produtores Toni Graphia e Matthew Roberts, houve uma extensa preocupação em replicar diversos detalhes da época, como a gráfica de Jamie e sua tipográfica (que foi reconstituída especialmente para a série), o navio no qual eles cruzam os mares, as próprias superstições sobre navegação, o ajuste de câmeras para a posição do sol durante o dia e a reutilização das roupas de Claire e Jaime (e o fato de que naquela época as pessoas não poderiam comprar roupas novas tão facilmente).

Foi também um cuidado da produção mostrar que os vinte anos não passaram em branco e que sim, os personagens envelheceram. Pequenos detalhes, como Jamie agora usando óculos e os cabelos prateados de Claire, trazem um tom mais honesto e interessante para a história.

Outlander

Nesta terceira fase, vemos o nascimento de Brianna, filha de Claire e Jamie, que havia sido apresentada já adulta no final da última temporada. Claire protagoniza cenas chocantes naquilo que concerne ao nascimento de sua filha. Primeiro, ao chegar ao hospital e sentir dores, o médico entra no quarto e questiona Frank sobre o estado dela e as contrações, mesmo quando ela mesma responde (o que é ignorado). Após, Claire é levada a uma sala onde o direito de ter o bebê com um parto normal sequer lhe é oferecido.

A sedação total – ou twilight sleep, como é conhecido em inglês – durante o parto começou a ser praticada em 1903 na Alemanha e não tardaria para que a técnica passasse a ser utilizada em diversos lugares do mundo. O método tratava-se da administração de morfina combinada à escopolamina, fazendo com que a parturiente não apenas não sentisse nada, mas também acordasse do parto sem nenhuma memória do ocorrido. Os efeitos colaterais da técnica, tanto para a mãe quanto para o bebê, como problemas respiratórios na criança, só seriam conhecidos mais tarde.

No caso de Claire, a experiência de um parto com sedação total traz para a série algo que sempre lhe foi muito caro – falar de uma mulher não apenas no ponto de vista idealizado, mas falar também das experiências traumáticas que perpassam a vida de tantas mulheres e que permanecem apagadas. Em meio ao imaginário construído na série, ela traz também algo de uma realidade esgotante.

Embora muitas mulheres tivessem tentado driblar as regras de um mundo regido por homens em busca de uma formação acadêmica desde o século XIX, foi apenas em 1980 que o número de homens e mulheres foi igual pela primeira vez em universidades americanas. Tal número não surpreende quando se leva em consideração que a Harvard Medical School, onde Claire completa sua formação em Medicina na série, passaria a aceitar mulheres em seu corpo discente apenas a partir de 1945.

Ainda que para a personagem aquilo que fugia às regras nunca lhe tivesse parecido impedimento, é possível ver que Claire é excluída quando adentra a faculdade por ser mulher. Quando sua carreira já estava consolidada, o deslocamento da personagem persistiu, pois ainda que presentes no campo de estudo, continuava a ser incomum encontrar uma cirurgiã mulher naquele período.

O deslocamento da personagem permanece presente quando, ao voltar para o século XVIII, ela ainda se vê “fora do lugar” por ser uma mulher médica a bordo de um navio. Claire assume, desde o princípio, uma posição irredutível de liderança no controle da situação, delegando tarefas, tomando decisões e se mantendo firme às resistências masculinas da embarcação. Nenhuma dessas atitudes é novidade quando se trata de Claire, mas é apenas um reforço à noção de que Outlander é muito mais do que o reencontro da protagonista e de Jaime, mas uma mostra da resiliência de uma personagem tão forte.

Ao construir narrativas literárias ou fílmicas que incluam um par romântico, é muito comum encontrar certas linearidades de acontecimentos em que o casal se conhece, se apaixona, se casa e tem filhos. Mais comum ainda é que, dentro dessa narrativa, a personagem feminina seja quem demonstra o apreço pelo desejo de ter filhos logo após o casamento. No entanto, mais uma vez, o que se vê em Outlander é um discurso que vai contra a corrente.

Na conversa entre Claire e Marsali antes do casamento desta com Fergus, a jovem verbaliza seu desejo de não ter filhos logo, de querer aproveitar o tempo com o marido, de serem um casal simplesmente, sem as responsabilidades inevitáveis de uma vida com crianças. Para isso, chega a recorrer a Claire em busca de métodos para prevenir a gravidez.

Ainda que Outlander traga em si uma representatividade feminina muito forte, apresentando temas complexos e de realidade brutal para muitas mulheres, é importante questionar algumas decisões tomadas pela personagem durante esses treze episódios. Desde o fim da segunda temporada, pode-se ver o esforço feito por Claire em reconstruir sua vida com Frank pelo bem de sua filha, seus ajustes à vida em Boston e ainda o próprio conflito de seus sentimentos. Com o passar do tempo, ela constrói uma vida e uma identidade para si, buscando uma formação profissional mais aprofundada daquilo que a interessava e lutando por algum lugar naquele mundo onde ainda era difícil ser mulher.

No entanto, no decorrer da narrativa e do tempo, conforme sua filha cresce, Frank morre e ela descobre que Jamie havia sobrevivido à batalha de Culloden, Claire não hesita em deixar tudo para trás, incluindo a filha e sua carreira como cirurgiã, e viajar no tempo para reencontrá-lo. De forma avessa ao que se havia construído enquanto trajetória de uma personagem até então na série, Claire assume a posição da figura feminina que coloca o personagem masculino em primeiro lugar.

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Mesmo que essas decisões possam ser analisadas do ponto de vista do deslocamento e relação de não-pertencimento da personagem – o que se pode ver logo nos primeiros episódios quando Claire claramente não se sente confortável com o seu tempo presente e suas praticidades – ainda é importante perceber que há uma nuance na narrativa e na construção da personagem. Esta última temporada é finalizada com ela, já de volta à época em que se sente em casa, também de regresso ao país em que – dois séculos depois – havia construído sua vida.

Aguardemos a quarta temporada de Outlander, agora na América pré-revolucionária.

Autora convidada: Maíra Santos é professora, formada em Letras e faz mestrado em História na UFRGS. Pesquisa (e adora) história, cultura, folclore irlandês e literatura. Sua vida é dividida entre filmes, séries, livros e ser pesquisadora. Também adora desenhar e às vezes se arrisca a escrever.

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