[MOSTRA DE TIRADENTES] “Arábia”, “Escolas em Luta” e “Era uma vez Brasília”

[MOSTRA DE TIRADENTES] “Arábia”, “Escolas em Luta” e “Era uma vez Brasília”

Os três longas-metragens exibidos no primeiro dia da 21ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes perquirem a temática “Chamado Realista”, pois segundo a organização do evento está em curso “um chamado realista em parte significativa da produção brasileira recente, com filmes baseados em personagens e vidas anteriores aos filmes, com a ficcionalização de situações de vida, com documentários que escutam, observam e provocam gente de carne e osso em seus cotidianos menos ou mais comuns.  O contemporâneo parece apontar para novas buscas estéticas de contato com o real e, principalmente, em uma representação que traz na sua forma e estilo um desejo de uma dramaturgia, no caso da ficção, calcado no lastro da experiência de mulheres e homens.”

“Escolas em Luta”, direção: Eduardo Consonni, Rodrigo T. Marques e Tiago Tambelli

Escolas em Luta é um exemplo bem sucedido de filme feito com seus personagens e não apenas sobre eles. Utilizando diversos formatos de câmeras que vão desde as ferramentas profissionais às lentes dos celulares dos alunos, os diretores acompanham o cotidiano de algumas das mais de duzentas escolas ocupadas em São Paulo. Em outubro de 2015, o Governo daquele Estado determinou o fechamento de 94 instituições de ensino estaduais e a realocação de mais de 300 mil estudantes, a fim de fazer uma reestruturação educacional.

A narrativa do documentário vai sendo construída na montagem do filme que utiliza cerca de 70% das imagens feitas pelos próprios secundaristas. Importante ressaltar que a liderança do movimento era majoritariamente feminina, tendo seu protagonismo e liderança arquitetado pelas adolescentes. Desta forma, evidente que grande parte dos depoimentos escolhidos para o corte final foi direcionado a essas meninas que, com profundo engajamento político e carisma próprios de grandes líderes revolucionários, não se intimidaram a toda pressão exercida pelas autoridades. O ponto alto de “Escolas em Luta” é que o roteiro consegue fugir do lugar comum que esse tipo de produção costuma ter, alcançando ares cinematográficos a um conteúdo que constantemente resvala na linguagem jornalística.  

“Arábia”, direção: Affonso Uchôa e João Dumans

Arábia investiga a trajetória de André (Aristides de Sousa), um jovem morador da Vila Operária, bairro vizinho a uma velha fábrica de alumínio, em Ouro Preto, Minas Gerais. Pode-se dizer que é um filme de encontros, pois é nas relações que o protagonista vai construindo com aqueles que cruzam seu caminho que o roteiro se desenvolve. A opção pela atmosfera naturalista aproxima o interlocutor do ambiente, por vezes hostil, que uma fábrica no interior do Brasil pode desvelar. É um filme que procura humanizar trabalhadores que geralmente são vistos como meras partes de uma engrenagem maior que compõe o Capital, sem jamais produzir um olhar condescendente sobre eles.

Com uma atuação contida e uma narrativa em off, que por vezes pode soar um pouco enfadonha, o filme se apoia em longos planos contemplativos permitindo que o espectador se engaje nos pensamentos do protagonista. A linguagem escolhida para compor a cenografia de “Arábia” evoca a filmografia do cineasta turco Nuri Bilge Ceylan que também opta por tintas cotidianas para fazer críticas ácidas ao regime de governo e ao sistema capitalista que a todos aprisiona. A André não é dado nem mesmo o direito de vivenciar o amor em sua plenitude, uma vez que sua vida não lhe pertence, e todas as suas relações (fraternas ou amorosas) desestruturam-se na medida em que sua realidade encontra-se num eterno devir existencial de sobrevivência.

“Era uma vez Brasília”, direção: Adirley Queirós

Adirley Queirós é, sem dúvida, um dos diretores que mais se encaixa, na atual produção cinematográfica brasileira, dentro da temática de “chamado realista” proposta pela curadoria da Mostra de Tiradentes. O documentário Era uma vez Brasília se passa no ano 0 pós-golpe, no Distrito Federal. O roteiro emula uma fábula com estética de ficção científica para narrar a saga do agente intergaláctico WA4 (Wellington Abreu), que viaja no tempo ao ser lançado no espaço para cumprir pena pela prisão por loteamento ilegal. Já pela premissa inicial percebemos um claro posicionamento político do diretor (que também assina o roteiro) em relação aos fatos que se desencadearam no país a partir da deposição da primeira presidenta eleita no Brasil.

Não à toa a grande esperança para montar um exército que visa desmantelar o Congresso Nacional que tomou o poder após a retirada de Dilma Rousseff está na figura de uma mulher: Andreia (Andreia Vieira), que é intitulada pelo narrador Marquim da Tropa como a rainha do pós-guerra. “Era uma vez Brasília” não é certamente um filme de fácil apreensão sendo um ponto de digressão na cinematografia do diretor. A direção de arte de Denise Vieira merece ser ressaltada, uma vez que é construída uma nave espacial, cujo interior se passa grande parte da narrativa. Apesar de ser um filme que busca uma revolução, a fotografia de Joana Pimenta cria uma atmosfera de pessimismo, revelando uma Brasília com ares pós-apocalípticos nunca antes imaginada pelo Cinema Brasileiro. “Era uma vez Brasília” é um daqueles filmes que já nasce clássico. Somado a “Branco sai, preto fica”, filme anterior do diretor, evidencia-se o tom provocativo, inovador e contestador da própria forma de se fazer cinema e sobre as fronteiras acerca da ficcionalização do real.

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Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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