[LIVROS] Em “Minha vida na estrada”, Gloria Steinem reúne 83 anos de viagens e encontros

[LIVROS] Em “Minha vida na estrada”, Gloria Steinem reúne 83 anos de viagens e encontros

Dois sentimentos afloram após a conclusão da leitura de Minha vida na estrada, livro de Gloria Steinem, um dos maiores ícones do feminismo estadunidense (e, por extensão, mundial), lançado em 2017 pela Bertrand Brasil. Um deles é o assombro diante da enormidade de viagens e encontros que Glória vivenciou ao longo de 83 anos de vida – conheceu milhares de pessoas, famosas e anônimas, esteve em uma infinidade de lugares, dentro e fora dos EUA, e presenciou momentos cruciais da história da humanidade.

O outro sentimento é uma espécie de pesar, uma vez que a vida nômade vivida por Glória é inimaginável para a maioria das mulheres, seja pelo medo da violência, pelas dificuldades impostas pela falta de recursos ou simplesmente porque as mil e uma tarefas cotidianas infligidas à maioria das mulheres as impedem de ter uma vida tão livre como a da ativista.

A vida de Steinem, de fato, foi e é invejável. Nascida em 1934 em Toledo, Ohio, ela se tornou conhecida por ser uma das porta-vozes do movimento de liberação das mulheres – que alguns chamam de a segunda onda do movimento feminista –, iniciado nos anos 60. Foi uma das fundadoras da mais importante associação de mulheres daquele período, a Organização Nacional de Mulheres (NOW, em inglês, que associava o ativismo nas ruas com o lobby político e na esfera do Judiciário) e também a criadora e editora-chefe da revista Ms., a primeira revista autointitulada feminista e a primeira a abordar, sob a perspectiva feminista, temas como violência doméstica, assédio sexual no ambiente de trabalho, aborto, prostituição e tráfico para fins de exploração sexual.

Gloria Steinem
Cerca de 5.000 mulheres (Gloria Steinem, no centro) marcham na Times Square contra a pornografia em Nova York, em 20 de outubro de 1979. Imagem: Reprodução

No livro, Steinem tem como foco a sua vida na estrada, como organizadora social e palestrante. Ao longo de 361 páginas (fora os agradecimentos, as notas e o índice remissivo), ela relembra viagens que realizou e pessoas que conheceu desde a primeira infância, e revela que o gosto por cair na estrada foi herdado de seu pai, um vendedor de antiguidades que passava a maior parte do ano viajando de carro junto à esposa e às duas filhas (Steinem é a caçula), dormindo em trailers e ganhando a vida por meio do comércio itinerante e à beira de rodovias. A relação entre pai e filha é um dos aspectos mais emocionantes do livro, no capítulo Os passos de meu pai, embora falte um olhar mais apurado sobre a relação da ativista com a mãe, que não aparece tanto quanto o pai.

Em seguida, Steinem narra pequenas histórias sobre encontros – a maioria sem nome – vivenciados desde que foi morar na Índia, logo após terminar a faculdade, e que se estendem até o ano de 2010. Em meio à narração desses encontros, somos inseridos em episódios cruciais da História – e, o mais importante, sob o ponto de vista das mulheres, as “vencidas” sobre as quais muito pouco se falava até pouco tempo atrás. Tais episódios, embora curtos, são interessantes e emocionantes, muitas vezes engraçados e por vezes quase inacreditáveis pelo fator coincidência.

Gloria Steinem

A divisão feita pela escritora para catalogar os encontros e os espaços onde eles ocorreram deixa a leitura agradável e fluida: há um capítulo, denominado Ciclos de conversa, para suas andanças pela Índia, em que ela abre mão de ter um motorista – opção da maioria das mulheres privilegiadas que buscavam “conhecer aquele país – e resolve andar de ônibus ou de trem, em vagões exclusivos para mulheres. Ali ela aprenderia estratégias de organização que seriam muito valiosas dentro do movimento feminista que ela viria a liderar posteriormente, e que lhe ensinaram uma lição que muitas ativistas ainda desconhecem ou ignoram: é impossível falar de direitos das mulheres sem falar de pobreza e discriminação étnico-racial.

No capítulo Por que eu não dirijo, Steinem narra conversas divertidas, surpreendentes, emocionantes e estranhas tidas com taxistas, aeromoças, passageiros e passageiras, além de pessoas com quem cruzou em obras, restaurantes e hotéis à beira da estrada. Em suas viagens de avião, testemunhou a luta das comissárias de bordo contra o assédio sexual e contra o fato de que perdiam o “prazo de validade” quando passavam dos trinta anos ou quando se casavam. Também presenciou o vigor de um serviço de táxi, o Black Pearl (Pérola Negra), nascido a partir da discriminação racial dos taxistas nova-iorquinos que se recusavam a aceitar passageiros negros e a dirigir até bairros de maioria negra e latina.

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Outro espaço de grandes histórias são os campi universitários, no capítulo Um grande campus – Steinem visitou inúmeros, muitas vezes vários em uma mesma semana, encontrando-se com os mais diferentes tipos de pessoas, desde universitárias em Harvard que sofriam discriminação em sala de aula até as que frequentavam uma universidade para mulheres no Texas, cujos cursos eram voltados à economia doméstica e à enfermagem. Ali, aprendeu que poderia ser um trunfo nas mãos das mulheres: ela as entrevistava, ouvia suas demandas e queixas e então, durante a palestra, denunciava o que estava ocorrendo sem dar nomes, chamando a atenção da imprensa para a questão e forçando mudanças.

No capítulo Quando a política é pessoal, ela narra sua experiência de trabalhar em campanhas para candidatos a cargos políticos, em especial, à presidência dos EUA, onde notou que os homens de esquerda, tão idealistas, contrários à guerra do Vietnã e a favor da integração racial, tratavam as mulheres como empregadas, assistentes e bibelôs, o que a levou a buscar um movimento onde as demandas das mulheres também tivessem valor. Esta parte do livro também conta do período em que Gloria se viu tendo de escolher entre apoiar Barack Obama ou Hillary Clinton, época em que sofreu grandes críticas tanto do movimento feminista quando do movimento negro.

Gloria Steinem
Maya Angelou e Gloria Steinem no caminho de uma Marcha, no dia 27 de agosto de 1983, em Washington, DC. Foto: James M. Thresher/The Washington Post (Reprodução)

Além das partidárias, participou também de campanhas pelos direitos de trabalhadores rurais e a favor de greves por conta das condições desumanas em que vivam, principalmente os de ascendência latina, o que a fez viajar para lugares sem qualquer glamour ou conforto, diferentemente da Nova York em que viveu grande parte de sua vida. O capítulo também foca em suas andanças pelo país com o objetivo de recrutar mulheres dispostas a concorrer a cargos eletivos e assim aumentar a participação da mulher na política estadunidense.

Em Minha vida na estrada também há espaço para situações surreais vividas na estrada, no capítulo O surrealismo no dia a dia – ali estão histórias como a da vez em que Gloria foi a responsável pela homília e o sermão em uma igreja em Minneapolis, ou de mulheres que acampam em frente a clínicas de aborto para protestar contra o procedimento, e que de repente aparecem na clínica para realizarem elas mesmas um aborto, e logo em seguida voltarem para o outro lado. Ou de quando Gloria foi colocada próxima aos assentos de judeus hassídicos, que fizeram de tudo para que as mulheres de sua família não mantivessem contato com ela durante o voo, enquanto falavam dela em ídiche (ela só conseguiu compreender a palavra feminist dita em meio às frases). Ao ir ao banheiro do aeroporto, encontrou com as esposas e filhas dos religiosos, e uma delas demonstrou conhece-la, chamando-a pelo nome e se apresentando a ela com um sorriso.

Nos capítulos finais, Segredos e O que aconteceu uma vez pode acontecer de novo, Steinem denuncia as opressões cotidianas, algumas mais e outras menos escondidas – como a discriminação contra pessoas vivendo com HIV/Aids e contra a comunidade LGBT, o tráfico sexual e a prostituição de mulheres nos cassinos, a escravidão moderna de imigrantes latinos e asiáticos e o encarceramento em massa de mulheres mães – e celebra a herança cultural e política das nações indígenas norte-americanas. Para a ativista, o caminho para a equidade entre homens e mulheres é uma volta ao passado indígena pré-chegada do homem branco à América, quando, segundo ela, homens e mulheres possuíam o mesmo status dentro das comunidades.

Gloria Steinem
Kate Millet (na direita) Ti-Grace Atkinson, Flo Kennedy e Gloria Steinem, em 1977, na Universidade de Harvard. Imagem: Reprodução 

Do apanhado de histórias, a lição é de que nada substitui os encontros face a face – em um momento de explosão do movimento feminista na internet, em que as mulheres de fato encontram espaço para conversar, desabafar e encontrar informações sobre seus direitos, é igualmente importante entender que certas experiências só se desenvolvem e se efetivam quando as pessoas se encontram ao vivo. E, embora pareça um conselho clichê, ela insiste que a viagem é tão importante quanto chegar lá. Afinal, quando uma feminista chega a um campus para dar uma palestra, ela está mais ou menos ciente do tipo de conversas e pessoas que irá encontrar. O desafio é conseguir dialogar e também ouvir quem ela sequer imaginaria encontrar neste percurso.

Trecho:

Com o milênio prestes a terminar, estou em um carro com duas estudantes a caminho de um encontro político no Arizona. Paramos em um bloqueio na estrada por causa de uma obra, no lancinante calor do deserto, e um homem grande caminha na nossa direção carregando uma picareta. De repente, nos damos conta de que não há nenhum outro carro à vista. Inclinando-se na direção da minha janela, ele diz que reparou nas nossas camisetas da Ms. Isso parece tão improvável que tenho certeza de que é uma piada ou um golpe. Ele então menciona um artigo de cerca de um ano ante sobre los feminicídios, as centenas de jovens mulheres que foram estupradas e torturadas e cujos corpos mutilados foram encontrados no deserto do México, perto de El Paso. As especulações sobre os motivos iam desde tráfico sexual até a venda de órgão, de estupro e assassinato de jovens mulheres como parte do ritual de iniciação de gangues a uma vingança distorcida contra as mulheres por serem assalariadas. Esses assassinatos aconteciam havia décadas, mas como eram sexualizados e as vítimas eram “apenas” trabalhadoras das maquiladoras – fábricas próximas da fronteira em território mexicanos onde os produtos são montados a um baixo custo para serem vendidos nos Estados Unidos-, a cobertura da imprensa era sensacionalista e não houve ainda nenhuma prisão.

Eu percebo que o homem tem lágrimas nos olhos. Ele está dizendo que dez anos antes, sua irmã de dezesseis anos se tornara uma das vítimas dos feminicídios e que, naquele dia, é o aniversário de sua morte. Ele quer nos agradecer por termos dado atenção a esse assunto, por lembrarmos. Ele é grato a qualquer pessoa que torne essas mortes visíveis. Ele mesmo continuará de luto até que o assassino de sua irmã seja pego.

Nós apertamos suas mãos cheias de calos. Ele diz que há algo místico na nossa aparição ali naquele dia. Estamos sentindo o mesmo. Enquanto ele caminha de volta para a obra na estrada, nós ficamos sentada em silêncio por um longo tempo. Com o passar dos anos, vou esquecer o propósito dessa viagem, mas nunca vou esquecer aquele homem e sua irmã.


Gloria SteinemMinha vida na estrada

Autora: Gloria Steinem

Bertrand Brasil

390 páginas

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