[OPINIÃO] 90 anos de Oscar, 90 anos de nada de novo sob o sol

[OPINIÃO] 90 anos de Oscar, 90 anos de nada de novo sob o sol

Há 90 anos Louis B.Mayer, magnata do estúdio MGM, criava a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Nessa época, o cinema começava a dar seus primeiros passos e foi na mão desses grandes magnatas que a Hollywood que conhecemos hoje se formou. Aparentemente, o gesto de Mayer tinha como função “melhorar a qualidade artística do cinema”, mas essa era só a ponta do iceberg.

Na realidade, a função da Academia era manter o controle sobre os artistas, já que, em 1926, eles ameaçavam se sindicalizar. A Central Casting Corporation, criada um pouco antes da Academia para melhorar as condições de trabalho, ameaçava os grandes magnatas de estúdio. Portanto, para frear possíveis reivindicações, Louis B.Mayer criou a Academia, um “sindicato” de papel, de mentirinha. Além disso, a disputa de egos, segundo Louis, cegaria os diretores:

“Eu percebi que a melhor maneira de controlar [os diretores] era enchê-los de medalhas. Se eu lhes der prêmios e honrarias, eles vão se matar para produzir o que eu quero. É por isso que a premiação da Academia foi criada.”

Isso já nos diz muito sobre as engrenagens invisíveis que fazem a máquina Oscar rodar. Embora o sistema de estúdio tenha caído, a meleca permanece. Noventa anos após a ideia de Louis B.Mayer, a Academia parece tão retrógrada e contraditória quanto a que se reunia no salão do Hollywood Roosevelt Hotel para premiar seus membros.

O ano de 2018 foi sacudido pelas denúncias de assédio em Hollywood, com destaque para Harvey Weinstein, magnata da Weinstein Company. Foi um ano forte de militância dentro do cinema, não apenas nos Estados Unidos. Na França, mulheres se reuniram em frente à Cinemateca Francesa para protestar contra a mostra em homenagem a Roman Polanski, acusado quatro vezes de estupro. O Time’s Up também foi criado. Foi o ano em que ouvimos de diversos homens, como Woody Allen, que essas denúncias eram uma caça às bruxas. Parecia que finalmente estávamos intimidando o cinema. Mas nem tanto assim.

Quando os indicados ao Oscar foram divulgados, ficou claro o quanto a Academia ainda precisa melhorar muito. Teve mulher indicada? Teve, mas, se você olhar a foto abaixo, verá que os homens ainda predominam. E se fizermos o recorte de raça, veremos que o buraco é ainda mais embaixo. Dee Rees foi a primeira mulher negra a ser indicada a Melhor Roteiro Adaptado, mas por que ela não podia estar com Greta Gerwig na categoria de direção, já que também dirige? Isso nos dá a impressão de que indicar mulheres e outras minorias funciona pelo método da “cota”: já preencheu a cota, então não espere mais.

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Trocar seis por meia dúzia: a premiação de Gary Oldman e Kobe Bryant

Oscar

Geralmente, os vencedores do ano passado são aqueles que entregam as estatuetas aos novos vencedores. Não foi o caso desse ano, já que Casey Affleck decidiu não participar do Oscar, possivelmente pelo medo de represália, já que é acusado de assédio. Em seu lugar, entraram Jennifer Lawrence e Jodie Foster, ambas já agraciadas com estatuetas pela Academia.

Se de um lado a Academia coloca duas mulheres maravilhosas para apresentar um prêmio no lugar de um assediador; do outro ela premia um agressor. A vitória de Gary Oldman já era esperada, visto que ele passou como um rolo compressor, faturando todos os prêmios da temporada, como o Globo de Ouro e o BAFTA. Ele recebeu os prêmios das mãos de uma Jane Fonda bastante constrangida, claramente incomodada com o fato de que a Academia permitisse um absurdo desses.

Dessa forma, a Academia está trocando seis por meia dúzia, além de perpetuar sua contradição. Gary Oldman é acusado pela terceira esposa, Donya Fiorentino, de violência doméstica. Ele bateu com um telefone na cabeça dela na frente dos filhos. Em um momento de tantas mudanças quanto o #MeToo e o Time’s Up, a premiação da Academia nos faz retroceder 60 casas. Inclusive nos faz questionar se os movimentos contra o assédio estão de fato fazendo barulho em Hollywood, já que eles não conseguem conscientizar os votantes da Academia a ponto de não premiar um agressor. Acredito que tudo isso aconteceu por causa do patriarcado e a broderagem que impera em Hollywood.

A acusação de violência contra as mulheres também pesa sobre os ombros de Kobe Bryant, vencedor do Oscar de Melhor Curta-Metragem por Dear Basketball. Em 2003, ele foi preso, acusado de estuprar a funcionária de um hotel. A vítima e o Kobe conseguiram fazer um acordo e ficou por isso mesmo. Ele não sofreu nenhuma outra punição. Mais uma vez, vimos um estuprador segurar uma estatueta do Oscar. Que mundo é este em que Agnès Varda sai de mãos abanando e um estuprador vence o Oscar? É rir para não chorar.

O patriarcado passa a mão na cabeça de agressores/estupradores, ao passo que condena vítimas e as bane dos círculos sociais.

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Agnès Varda: a esnobada do ano

Oscar

Depois de Gary Oldman, um dos maiores tombos da cerimônia foi deixar Agnès Varda, indicada a Melhor Documentário por Visages Villages, de mãos abanando. O vencedor nessa categoria foi Icarus, de Bryan Fogel.

Icarus versa sobre o escândalo generalizado de dopping na Rússia, destrinchando o sistema que fazia com que atletas drogados passassem nos exames antidopping. Para além da qualidade, vejo essa escolha da Academia como política. Em um momento em que os russos foram pegos no dopping novamente nas Olimpíadas de Inverno de PyeongChang e que os Estados Unidos travam uma batalha contra a Rússia por causa dos escândalos de manipulação das eleições presidenciais, premiar Icarus diz muito sobre o que a Academia deseja que as pessoas conheçam. Todos sabemos a injeção de bilheteria, neste caso de visualizações na Netflix, causada por uma produção vencedora do Oscar.

Agnès Varda pode não ter levado o Oscar, mas certamente não será esquecida. Com um currículo invejável, a primeira indicação de Varda ao Oscar, aos 89 anos, foi um sopro em sua carreira. Muitas pessoas descobriram o trabalho da diretora belga, um dos grandes e únicos nomes femininos da Nouvelle Vague. É isso que fica no fim das contas.

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Uma mulher fantástica e seus fantásticos caminhos

Oscar

Não é só de momentos hipócritas e tediosos que vive o Oscar, não é mesmo? Uma das surpresas mais bonitas da noite foi a vitória de Uma Mulher Fantástica na categoria Melhor Filme Estrangeiro. Estrelado pela atriz trans chilena Daniela Vega, essa foi a primeira vez em que um filme estrelado por uma pessoa transgênero venceu o Oscar. Até o momento, apenas filmes com atores cis na pele de pessoas trans, como Clube de Compras Dallas e Meninos Não Choram, haviam levado a estatueta.

O mais bacana de Uma Mulher Fantástica é que a transexualidade da personagem principal, Marina, não é o único cerne do filme. O filme acerta em mostrar afetividade, tristezas e desilusões da personagem principal, retirando a impressão de que filmes sobre pessoas trans só retratam a questão trans em si, da descoberta da transexualidade e às consequências disso, por exemplo.

Se o diretor do filme mostrou imenso respeito por sua personagem-título, e também por sua intérprete, não foi o caso do comentarista Rubens Ewald Filho na transmissão do Oscar pelo canal TNT. Quando Uma Mulher Fantástica foi anunciado como vencedor e elenco e diretor foram subir ao palco, ele declarou:

“É uma mulher [Daniela Vega] que na verdade é um homem.”

Um comentário tão transfóbico assim em plena transmissão do Oscar é digno de uma morte lenta e dolorosa, mas ele também nos mostra como ainda precisamos evoluir muito nesta questão. Vencer o Oscar é apenas uma parte do caminho do respeito às pessoas trans. 

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A vitória de Jordan Peele

Oscar

Corra!, filme de Jordan Peele, entrou na corrida do Oscar envolvido em uma cortina de fumaça chamada racismo velado. Houve quem dissesse que era um absurdo, como assim um blockbuster foi indicado? E ainda por cima um terror? Depois assistimos perplexos a divulgação de uma notícia expondo alguns votantes da Academia que estavam boicotando o filme sem sequer tê-lo assistido. Racismo velado, a gente vê por aqui.

Por essas e outras razões que a vitória de Jordan Peele na categoria Melhor Roteiro Original foi tão importante. Ainda que o Oscar tenha seguido a cartilha de silenciamento de sempre, a vitória de Corra! fez com que a Academia tivesse que engolir, durante alguns segundos, seu racismo institucional.

Ao subir no palco, Jordan fez um discurso sobre diretores que vieram antes dele, como Spike Lee, e que o inspiraram. Também falou sobre o medo de sua história não funcionar:

“Eu parei de escrever este filme umas 20 vezes porque pensei que era impossível. Pensei que não iria funcionar. Que ninguém jamais faria este filme. Mas eu continuei porque eu sabia que, se alguém deixasse-me fazê-lo, as pessoas iriam ouvi-lo e assisti-lo”.

Esperamos que a vitória de Jordan seja o começo de mais diversidade na Academia, que levou 90 edições para indicar uma pessoa negra na categoria em que Jordan venceu.

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Discursos destoantes da realidade

Oscar

Os discursos durante o Oscar foram difíceis de engolir, como um biscoito seco descendo pela garganta. Isso porque eles contrastavam com o que acontecia em tempo real na premiação: falamos sobre inclusão, mas premiamos menos mulheres que no ano passado. Um a um os prêmios foram indo parar nas mãos de homens, deixando as mulheres com um gosto de hipocrisia na boca. Neste ano, o Oscar premiou somente seis mulheres, um número menor que o do ano passado.

Um momento para lá de agridoce foi quando o Time’s Up, em parceria com a Academia, exibiu um vídeo em que pessoas negras, mulheres e imigrantes falavam sobre diversidade. Porém, ao olharmos as indicações, onde está a diversidade? A diversidade de prêmios certamente não existiu, pois algumas mulheres que subiu aos palcos para buscar prêmios dividiu-os com os homens.

A cerimônia do Oscar parecia engessada, e talvez até falsa demais, para falar sobre casos de assédio. O vídeo do Time’s up parece ter estado lá para preencher cota, ou seja, com o intuito de lacrar. Aliás, essa foi a tendência de vários discursos, algo tentando colocar panos quentes e ao mesmo tempo lacrar.

O discurso mais emocionante da noite ficou por conta de Frances McDormand, vencedora do Oscar de Melhor Atriz por Três Anúncios para um Crime. Em um determinado momento, ela pediu que todas as mulheres indicadas ao Oscar, independentemente da categoria, se levantassem. Basta olhar para aquele enorme teatro onde a cerimônia do Oscar acontece para ver o quão Hollywood se gaba por coisas que não faz direito. São pouquíssimas mulheres, e fizermos um recorte de raça, o número é ainda menor. Ela arremata convidando os produtores a não apenas falarem com elas, mas visitarem essas mulheres e financiarem suas histórias. Foi um dos momentos mais bonitos e abertamente políticos do Oscar.

Leia aqui o discurso na íntegra, traduzido pelo site Mulher no Cinema.

A pior audiência do Oscar dos últimos tempos

Segundo Nielsen, a 90ª edição do Oscar foi a menos assistida da história. É uma audiência 16% menor que no ano passado, marcando apenas 18,9 pontos. Alguns afirmam que isso se deu ao cansaço em relação aos movimentos #MeToo e Time’s up, mas eu vejo de outra forma. Foi justamente o fato de a cerimônia destoar tanto desses movimentos, e daquilo que outras premiações estavam fazendo, que fez com que a audiência caísse. As pessoas estão cansadas de discursos vazios.

Alguns dias antes da premiação, circulou pela Internet uma proposta, o “Oscar sem lacre”, tentativa de despolitizar a entrega de estatuetas. Com lacre ou sem lacre, a verdade é que tudo nessa vida é político. Tudo o que fazemos é político, até ver filmes. Por isso, essa cerimônia do Oscar foi tão decepcionante. É duro ver que tivemos filmes com diversas narrativas, vários estrelados por mulheres, mas na prática, ou seja, na hora da premiação isso não se concretizou. Isso quer dizer que o Oscar foi muito político sim, porque até a prática de exclusão é política.

Por fim, o que vimos foi a manutenção do status quo, com alguma permissão para se falar sobre assédio e minorias. De resto, Hollywood continua quase a mesma daquela que se reunia no Hollywood Roosevelt Hotel.

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Tradutora e noveleira. Criou, em 2014, o canal sobre cinema clássico no YouTube, o Cine Espresso, para espalhar na Internet o amor pelos filmes esquecidos. Gosta de chá preto acompanhado de um bom livro.
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