[LIVROS] O horror contemporâneo de Liudmila Petruchévskaia e Mariana Enriquez

[LIVROS] O horror contemporâneo de Liudmila Petruchévskaia e Mariana Enriquez

Lançado recentemente pela editora Companhia das Letras, finalmente temos no Brasil um livro da importante autora russa, Liudmila Petruchévskaia. A obra de Petruchévskaia foi banida da União Soviética e só foi publicada muitos anos depois, ao final do regime. É considerada uma das maiores autoras russas contemporâneas, tendo escrito uma série de peças, novelas e histórias curtas ao longo de sua carreira.

O livro, chamado Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha: Histórias e contos de fadas assustadores, reúne 21 contos, divididos em 4 blocos: Canções dos Eslavos do Norte, Alegorias, Réquiens e Contos de Fadas. Os contos falam sobre a fome, a guerra, as relações familiares, o medo e a morte. São histórias trágicas, tristes, de desespero e dor. Situações desesperadoras, medidas desesperadas, e nem sempre as soluções que esperamos encontrar.

A narrativa de Liudmila Petruchévskaia é rápida, fluida, possui um ritmo fácil de leitura e, apesar dos temas serem difíceis, são todos tratados como contos de fadas modernos, o que torna a leitura agradável. São histórias curtas, mas são capazes de fazer você se identificar, compreender, sentir compaixão por aqueles personagens, sendo difícil não se colocar no lugar de alguns deles.

Liudmila Petruchévskaia
Na imagem: Liudmila Petruchévskaia (reprodução)

Com um humor irônico e uma facilidade de ver diversos lados de uma mesma história, Liudmila Petruchévskaia constrói universos e famílias sem se equivocar nas personalidades dos personagens que cria. Em um de seus contos, chamado “Eu te amo”, ela consegue descrever as emoções de um marido, de uma esposa e de uma amante. Constrói cenários e ambientações capazes de nos deixar inquietas, podendo alterar a forma que vemos a morte e o terror.

Liudmila Petruchévskaia não precisa de monstros para nos assustar. As poucas assombrações que usa, inclusive, são alegorias para coisas bem piores, como a própria realidade. Perder alguém amado, a família, tudo que você possui. A autora tenta tirar algo da perda para se reerguer.

Um dos contos, porém, pode ser considerado problemático. Em “O segredo de Marilena”, a autora escreve sobre duas irmãs bailarinas que foram transformadas em uma única mulher, descrita como “extremamente gorda”, como uma espécie de castigo por uma delas não ter se casado com um feiticeiro.

Mesmo que a autora diga que existem pessoas gordas que são felizes – pois ela afirma isso, logo após dizer que Marilena era bastante triste – o fato de transformar alguém em uma mulher gorda como castigo, é algo que incomoda. Conseguimos compreender o que a autora quis dizer durante a leitura do conto. Acompanhamos o seu raciocínio, que mostra como as irmãs conseguem sobreviver, mas é algo que, de primeira vista, não agrada muito.

Alguns contos são mais dolorosos e tristes que outros. É uma ótima dica de livro para se ler num final de semana ou ler um conto antes de dormir.

Liudmila Petruchévskaia
Na imagem: As coisas que perdemos no fogo, de Mariana Enriquez; e Era Uma Vez Uma Mulher que Tentou Matar o Bebê da Vizinha, de Liudmila Petruchévskaia.

Outra mulher que escreve contos de horror e têm histórias incríveis para contar é Mariana Enriquez. Em seu livro As coisas que perdemos no fogo, Enriquez utiliza cenários argentinos, de onde nasceu, para contar histórias assustadoras.

Se Petruchévskaia utiliza do insólito e dos contos de fadas, Mariana Enriquez é mais objetiva no sentimento que quer passar com seus contos assustadores. As metáforas estão ali, e ela explora bastante o lado social da Argentina no período em que viveu. Seus monstros são concretos e expostos.

Enquanto nos contos de Petruchévskaia podemos encontrar irmãs transformadas em uma única pessoa por um mago, uma mulher que cuida de um bebê nascido de um repolho, filhos de Poseidon, um relógio mágico, entre tantas outras histórias com magia e medo; nos contos de Enriquez encontramos pactos, casas assombradas, rios que escondem monstros (em um ótimo conto lovecraftiano) e mulheres que, em forma de protesto, colocam fogo em si mesmas.

Mariana Enriquez
Na imagem: Mariana Enriquez (reprodução)

Algo em comum entre ambas as autoras é o forte protagonismo feminino. As mulheres demonstram sua força e superação em situações onde é difícil discernir o real e o imaginário. São mulheres que perderam suas famílias, filhos e a sanidade. Ou mesmo, vidas de mulheres bem sucedidas, que reconhecendo seus privilégios, entram em contato com pessoas que possuem menos que elas.

Nos contos de Enriquez, conhecemos vidas de mulheres entrelaçadas com homens, que passaram por situações difíceis e não sabem como continuar, ou não podem continuar. São histórias de mães e filhas que procuram, de forma mágica, encontrar uma resposta aos seus problemas. Histórias de mulheres subjugadas por um amor, amaldiçoadas, mas que se reconstroem e continuam se reconstruindo. Nem todas as histórias acabam bem, mas muitas possuem algo para se pensar e refletir.

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É incrível acompanhar autoras fazendo sucesso no gênero do horror. Mesmo que grandes livros de horror foram escritos por mulheres, o horror ainda é um campo machista e complicado para as mulheres. Elas são objetificadas e seus sofrimentos são utilizados apenas para dar continuidade numa narrativa. Porém, podemos ver atualmente uma mudança. Mulheres têm feito cada vez mais histórias de horror com altíssima qualidade. Ver que o horror contemporâneo está em boas mãos, com autoras incrivelmente talentosas, nos traz um grande avanço e a esperança da reconstrução de um gênero literário mais igualitário.


Mariana EnriquezAs Coisas que Perdemos no Fogo

Mariana Enriquez

192 páginas

Editora Intrínseca

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Liudmila PetruchévskaiaEra Uma Vez Uma Mulher que Tentou Matar o Bebê da Vizinha Histórias e Contos de Fadas Assustadores

Liudmila Petruchévskaia

268 páginas

Companhia das Letras

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Escrito por:

52 Textos

Formada em História, escreve e pesquisa sobre terror. Tem um afeto especial por filmes dos anos 1980, vampiros do século XIX e ler tomando um café quentinho.
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