Essa história intensa e humana, escrita e ilustrada pelo autor Art Spiegelman, emociona de tantas formas, que é difícil resumir do que ela fala. O quadrinho é uma longa entrevista feita com seu pai, para entender a perspectiva dele sobre o que foi o horror do Holocausto. Salpicada de emoções cruas e realistas, Art trata sobre sua relação turbulenta com o próprio pai, enquanto salta para os relatos da segunda guerra e os momentos do seu passado familiar. Essa graphic novel que emociona pela sua sinceridade, é digna do clamor da crítica mundial.
Art Spiegelman foi um grande integrante do movimento underground dos quadrinhos americanos, nas décadas de 60 e 70. Na sua produção independente e questionadora, Art percorre o autobiográfico, a crítica política e o jornalismo, sem, na verdade, se deixar estacionar em uma das áreas. Já foi chargista e capista da revista novaiorquina The New Yorker, mas nunca pestanejou em deixar claras suas críticas incisivas ao meio, inclusive pedindo demissão em forma de protesto a materiais censurados. Essa postura forte o acompanha por toda sua carreira e fica muito clara através de sua própria Graphic Novel.
A expectativa que permeia o título é de que estamos para ver um relato puro sobre sobreviventes do Holocausto, mas, na verdade, a história traz uma estranha biografia do próprio autor e sua relação com os pais, que viram de perto o horror nazista em toda sua intensidade. De maneira muito clara e crua, Art faz uma antropomorfização dos personagens, retratando os judeus como Ratos, Maus, em sua tradução para o alemão.
Essa era uma das terríveis comparações que a propaganda nazista trazia, afirmando que os judeus eram como ratos que transmitiam doenças contagiosas, abarrotando os continentes e devorando seus preciosos bens naturais – recurso clássico de desumanização do inimigo. Seguindo com a representação dos outros personagens, os poloneses foram figurados como porcos e a população ariana como gatos, no topo da cadeia.
A retratação se mantém em todo o quadrinho, sendo discutida algumas vezes no meio da obra, pelo autor e sua esposa. Inclusive essa é um característica fantástica da história. Ao invés do autor se distanciar na entrevista e trazer apenas o ponto de vista do seu pai em ordem cronológica, ele transcreve as próprias entrevistas como aconteceram, mostrando seu diálogo com o pai e outras pessoas que o acompanham a produção do material.
Spiegelman não tenta lapidar a imagem de seu pai nas entrevistas, ele é sincero ao mostrar qualidades e defeitos, ambas absolutamente necessárias para a sobrevivência do pai e da mãe à guerra, mas um grande peso para suas relações pessoais. O pai, distanciado de seu filho adulto, vê no relato uma oportunidade de aproveitar a companhia um do outro, mas como homem de personalidade difícil e intransigente, torna as entrevistas um misto de admiração e desconforto para seu filho. Os relatos começam antes da guerra, contando seus primeiros casos amorosos até encontrar o grande amor de sua vida e mãe de Art, Anja Spiegelman.
O relato é feito todo na perspectiva de seu pai Vladek, e a história se torna tendenciosa em muitos aspectos, que sempre são questionados por Art. Vladek fala de sua falecida esposa Anja como um exemplo de perfeição feminina, com sua inteligência e sensibilidade ímpares, sempre aproveitando a oportunidade para desmerecer sua atual esposa, com a qual vive numa eterna briga.
O quadrinho fala pouquíssimo da Anja pós-guerra, já que tragicamente ele comete suicídio nos anos 60. Inclusive, o tema é abordado em um quadrinho antigo do autor, inserido no meio dessa publicação como meio de retratar o ocorrido. A ausência de sua mãe na casa é palpável, como se essa morte que deixou tantas perguntas fosse um personagem por si só. Existe a Anja que seu filho conheceu e a outra presente na memória de Vladek, uma caricatura que o autor questiona e investiga constantemente por si só.
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A obra passa por muitos detalhes que pulam o tempo inteiro do passado para o presente, traçando paralelos entre formas que seu pai encontrava para sobreviver e manias vestigiais que ficaram com ele para sempre. O autor sente culpa pela pobre relação que tem com o pai e varia entre vontade de aproximação e afastamento por esgotamento. Com detalhes tão realistas que tocam profundamente a leitora, começamos a compartilhar de sua perspectiva, que não consegue ser apenas um observador silencioso do relato.
A história fala com muita sensibilidade sobre o holocausto, mas trata também de temas como depressão, racismo, xenofobia, empatia, e a dor de sobreviver, quando alguém querido não conseguiu fazê-lo. Aqui não se fala apenas da culpa dos que conseguiram, por sorte ou astúcia, viver até o pós-guerra, mas também da família que passou pela tristeza de ter um ente querido levado pela depressão ao suicídio.
O quadrinho não trata só das tragédias de proporção mundial, mas sobre todas aquelas maiores e menores que acontecem a cada dia, sem aviso prévio. A história o tempo inteiro nos lembra que são pessoas reais que estão ali, que acertam e erram, mas merecem a chance de viver com dignidade.
Sempre aparece recortes de jornal, fotos de amigos e familiares, muitos levados pela guerra. Art não nos deixa por um minuto esquecer que aquilo não é só parte da história que vemos no colégio e nos noticiários, mas parte da vida de alguém.
A leitura de Maus acaba com um enorme misto de emoções para a leitora, com a certeza de que precisamos ficar muito atentas, tanto às mudanças políticas e radicalismos que empurram os grupos mais fracos ao seu limite, quanto para nossas relações pessoais mais próximas. Maus vai para aquela lista de quadrinhos maravilhosos que nos deixa refletindo sobre a própria vida e as dos que nos cercam. Está lado a lado com os excelentes Persépolis, Pílulas Azuis e Retalhos, que já foram apresentados aqui no site. Uma história inesquecível e pesada, mas certamente necessária.
Maus
Autor: Art Spiegelman
296 páginas
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