Primavera em Casablanca: quando o estado e a religião estão de mãos dadas

Primavera em Casablanca: quando o estado e a religião estão de mãos dadas

Primavera em Casablanca (no original: Razzia) é um drama marroquino de 2017, dirigido e escrito por Nabil Ayouch. Selecionado como representante de seu país para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2018, estreou nesta quarta-feira, 6 de junho, no Festival Varilux de Cinema Francês, e estará em exibição durante os próximos dias do Festival.

O filme acompanha um recorte na vida de quatro personagens que vivem em Casablanca, Marrocos, em meados de 2010. A mola percursora dessa história e o elo que liga os quatro personagens é a rápida participação do dedicado professor Abdallah (Amine Ennaji), de um povoado situado na Cordiheira do Atlas – uma cadeia de montanhas no noroeste da África que se estende por 2.400 km através de Marrocos, Argélia e Tunísia.

Nos anos 80, Abdallah acaba sendo levado a desistir de lecionar por pressão do governo, que usa conceitos religiosos (com os quais Abdallah não corrobora) como base educacional para estabelecer controle social e dessa forma impedir a população de reagir contra a miséria, desenvolver capacidade crítica e sobretudo manter seu povo aprisionado a conceitos, tradições e doutrinas que os impedem de serem livres.

Primavera em Casablanca
Abdallah (Amine Ennaji)

Hakim (Abdelilah Rachid), um aspirante a estrela do rock, tem de lidar com a censura de seu pai; Salima (Maryam Touzani), uma mulher em busca de si mesma, luta pelo direito de escolher seus próprios caminhos; Joe (Arieh Worthalter), um judeu e dono de restaurante, se equilibra diariamente entre seu negócio e os cuidados com seu pai doente e acamado; e Inés (Dounia Binebine), uma garota de 14 anos que vive entre a tradição e cultura de seu povo e a modernidade dos dias atuais.

Os quatro compartilham com a espectadora suas histórias tão diferentes, mas totalmente ligadas umas às outras, e possuem como pano de fundo o complexo contexto político e social em que estão imergidos, que foi o início da Primavera Árabe em Casablanca.

A Primavera Árabe foi uma revolução que aconteceu através das ondas de manifestações e protestos, ocorridos no Oriente Médio e no Norte da África a partir de 18 de dezembro de 2010 até meados de 2012. As revoluções aconteceram na Tunísia e no Egito, o que precipitou uma guerra civil na Líbia e na Síria; também ocorreram grandes protestos na Argélia, Bahrein, Djibuti, Iraque, Jordânia, Omã e no Iêmen; e protestos menores no Kuwait, Líbano, Mauritânia, Marrocos, Arábia Saudita, Sudão e no Saara Ocidental.

Primavera em Casablanca

Os protestos buscavam combater a repressão e mostrar à comunidade internacional os problemas que os povos dessas regiões vinham sofrendo, com o alto nível de desemprego e a censura. Para isso, utilizavam as mídias sociais para se organizarem, comunicarem-se e denunciar ao mundo sua real situação, e dessa forma sensibilizar outros governos.

O filme, que vai e volta no tempo e tece uma teia que liga esses cinco indivíduos, conta uma história belíssima e atual sobre esses povos. Apesar de nós, indivíduos ocidentais, vivermos num estado laico, tendo de “superar e deixar para trás” uma ditadura militar, por vezes acabamos nos identificando com essa história que remonta muitos dramas e muitas questões sociais, além, claro, da presença constante de um estado que oprime suas mulheres e determina as escolhas de seu povo.

Difícil pensar, nos dias de hoje, que um professor seja obrigado a abandonar sua escola por não concordar que o estado use da religião para controlar seu povo e dessa forma silenciá-lo. Porém, não podemos deixar de pensar ou refletir um pouco sobre o que significam propostas como as da Escola Sem Partido, e tampouco deixar de notar que, com a homologação da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da Educação Infantil e do Ensino Fundamental em dez./2017, algumas matérias, antes consideradas vitais para o desenvolvimento do livre pensar, foram abandonadas ou descartadas, enquanto a religião chega para tomar assento novamente nas cadeiras das escolas.

Primavera em Casablanca

[SPOILER] Abdallah, um professor apaixonado pela ideia de educação que se destina a libertar os indivíduos, fica consternado quando um alto funcionário do governo aparece no povoado onde Abdallah vive e o obriga a falar em árabe com seus alunos (que só falavam o dialeto local), proíbe leituras que o governo considera subversivas ou imorais e mistura conceitos religiosos na explicação das ciências. A presença constante desse funcionário e a contratação de um outro professor “mais adequado” ao que o governo pretende, leva Abdallah a sair em busca de um lugar onde haja espaço para seus ideais e coloque um propósito em sua vida. [FIM DO SPOILER]

E é dessa forma que o diretor escolhe começar o filme, desnudando a verdade sobre as ditaduras que se apresentam tirando o acesso ao conhecimento das mãos de seus cidadãos, empurrando tradições religiosas que mais aprisionam do que libertam. Esse é outro aspecto muito próximo a nossa realidade atual: o estado e a religião se unindo, tanto na educação quanto na política, de forma a controlar e conduzir a grande massa da população com falsas promessas, rituais que mais segregam do que unem, tradições que impõem e incentivam a desigualdade de gêneros, as diferenças sociais, o conformismo e a impotência dos povos.

Primavera em Casablanca começa, rapidamente, mostrando a falência da educação nesses estados, para depois seguir para Casablanca – Marrocos, no início da revolução conhecida como Primavera Árabe, onde tanto os personagens do filme, quanto seu povo, clamam por liberdade, justiça social e um estado laico que reconheça homens e mulheres com os mesmos direitos. Evidentemente, um filme que reúne tantos personagens ricos, nos abre a possibilidade e permite leituras das mais variadas formas.

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Joe é um marroquino judeu que assiste ao sofrimento do pai, ao constatar com amargura que quase não há mais judeus em Casablanca. Marrocos recebeu muitos judeus que vieram expulsos da Espanha, no século XV, pelos reis católicos. Em 1948, a comunidade de judeus marroquina era a maior do Norte da África, contando com cerca de 265 mil pessoas, ou seja, 10% da população local. E foi nesse mesmo ano que, com a Constituição do Estado de Israel, ocorreram várias manifestações com mortes entre judeus em Oujda e Djerada. Estima-se que perto de 1 milhão de judeus sejam provenientes de Marrocos e estejam em Israel, mas também vivendo nos Estados Unidos, no Canadá e na França.

Portanto, é como se Joe e seu pai vivessem como estranhos em seu próprio lar, uma vez que quase toda a comunidade judia já não está em Casablanca, deixando a prática do judaísmo relegada a poucos grupos e com pouca representatividade. É visível que Joe e seu pai não compreendem o que acontece em Casablanca, vivendo quase isolados no pouco que sobra de sua comunidade.

Primavera em Casablanca

Na mesma medida, vemos o sofrimento de Salima, uma jovem mulher que não pratica o islamismo e busca com todas as forças o direito de fazer suas próprias escolhas. Apesar de não manter tradições religiosas, como sair de lenço na cabeça (uma vez que é casada e a tradição manda que mulheres cubram suas cabeças) ou usar roupas que cubram suas pernas, Salima sofre com o machismo e a intolerância de seu marido, que não compreende seu desejo de trabalhar, machismo esse proveniente de um povo que é governado por um estado que mistura religião e aprova práticas abusivas contra mulheres que não se submetem a seus maridos e às leis do estado e da religião.

[SPOILER] Inés e Hakim, apesar de viverem em mundos completamente diferentes, uma vez que Hakim é um homem pobre que luta para sobreviver e pelo direito de realizar seu sonho como cantor; e Inés é uma adolescente abastada que vive uma vida solitária e perdida, entre as tradições religiosas e a vida moderna no século 21, os dois acabam tendo suas vidas ligadas por um sério incidente que os marcará para sempre. [FIM DO SPOILER]

O que vemos em Primavera em Casablanca é o retrato de um povo sufocado por um governo opressor, que encontra na violência uma arma poderosa para chamar atenção do mundo sobre sua situação e para resolver as diferenças de todos os tipos. Em declaração dada a jornalistas na ocasião do lançamento do filme, o diretor disse: “Grandes revoluções começam com modestas e pequenas revoluções individuais.” 

Primavera em Casablanca

O que aconteceu na Primavera Árabe de 2011 é, na realidade, uma soma de vários fatores: uma série de frustrações, humilhações, um desrespeito total dos direitos civis básicos e a retirada dos mesmos. Esses movimentos de pessoas espalhados que derrubaram regimes foram feitos de homens e mulheres que, no começo, tiveram sua própria e íntima revolução antes de expressarem sua raiva nas ruas. Queria aprender mais sobre essas pessoas, para aprender o que empurrou algumas a resistir e outras a renunciar.

Em Marrocos, onde vivi, testemunhei a sociedade evoluir de um tipo de vida em comunidade, para uma exclusão sectária de todos aqueles que não se encaixavam nos moldes. O processo de arabização do sistema educacional, que começou nos anos 80, têm efeitos devastadores hoje, porque seu princípio é estabelecer um approach doutrinário em relação à sociedade, eliminando todas as formas de pensamento crítico“.

Portanto, tudo o que podemos ver e levar conosco depois de assistir a esse maravilhoso filme, é que não se pode conduzir um povo sem educá-lo. Não se pode negar o direito à liberdade de aprender. Somente a educação pode conduzir um povo à liberdade, pois é somente quando se tem “saber” que um povo pode escolher, e sem escolha e crítica, não se é livre!

Veja aqui a programação completa do Festival Varilux de Cinema Francês 2018!

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Mulher, mãe, profissional e devoradora de filmes. Graduada em Psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo, trabalhando com Gestão de Patrocínios e Parceiras. Geniosa por natureza e determinada por opção.
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