Assim como em Formation, Beyoncé quebrou a internet ao lançar um clipe artisticamente impecável e fortemente político. A nova música de Beyoncé e Jay-Z, que estão se apresentando agora como The Carters, causa tremores já pelo título: Apeshit, uma gíria americana que possui conotação racista e cuja denotação é no sentido de “furioso, louco e/ou selvagem”. Seja com a intenção de ressignificar a palavra ou ironizar seu sentido, eles literalmente FECHARAM O LOUVRE.
Apes**t possui 6:05 minutos, mas arriscamos dizer que a cada 5 segundos você vai se deparar com várias referências. Não importa quantas vezes você assista ao clipe, sempre vai ter algo que por algum acaso passou despercebido. O casal The Carters conseguiu fazer de Apes**t uma obra de arte em si, que conversa com o presente, afronta o passado e nos mostra o futuro por um novo ângulo.
Tudo no clipe é simbólico. No início da música temos a Beyoncé cantando “I can’t believe we made it” / Eu não acredito que conseguimos” (tradução livre) e já nestes 1:25 minutos de clipe temos três referências fortíssimas:
1) O casal em uma posição imponente em frente à estátua Vitória de Samotrácia. Trata-se de uma escultura da deusa Victória (romanos) ou Nice/Niké (gregos) que representa a vitória, força e velocidade e que é representada na forma de uma mulher alada. Precisa dizer que é uma alusão ao poder e representatividade de um casal negro frente à indústria da música?
2) A alusão ao quadro Retrato de Uma Negra (Portrait of a Negress), talvez seja uma das mais fortes simbologias do clipe. Isto porque além de ser um dos poucos quadros do Louvre em que uma pessoa negra é retratada, a obra em si (datada de 1.800) é tida como uma das primeiras pinturas que se tem conhecimento, na qual uma pessoa negra não é retratada como uma escrava.
É interessante notar que apesar da ascensão financeira ser fortemente elucidada pelos dois, seja na letra ou nas marcas de roupas e joias que usam (e neste caso vemos a Beyoncé de Versace da cabeça aos pés), há uma preocupação política com o resgate histórico da população negra – seja em Apes**t ou, como já vimos, no próprio clipe Formation.
Uma coisa muito importante também é entender que o lugar de fala da Beyoncé e do Jay-Z é o de pessoas negras norte-americanas. Ou seja, apesar das questões raciais nos serem comuns, o contexto socioeconômico-cultural da população negra norte-americana é diferente.
3) A primeira aparição deles em frente à Grande Esfinge de Tanis, que representa a mistura do poder invencível do leão à majestade do rei e aparece propositalmente quando o Jay-Z fala: “this a different angle” / “este é um diferente ponto de vista” (tradução livre)
Poderíamos parar por aqui mesmo, finalizando com essa citação que nem precisa de explicação de tão incrível que é:
“Gimme my check / Put some respect on my check / Or pay me in equity, pay me in equity” / Me dê o meu dinheiro / Respeite o meu dinheiro/ Ou me pague com igualdade, me pague com igualdade” (tradução livre)
No entanto, há outras referências que merecem destaque e, por isso, nos sentimos na obrigação de discutir com vocês mais algumas coisas interessantes que nos chamaram a atenção.
A decolonização do Louvre
Muita gente não deve estar habituada com o termo “decolonial”, mas não há palavra melhor para definir o que representou o a gravação do clipe Apes**t no Louvre, um dos museus mais prestigiados e carregados de privilégios: predominantemente frequentado por pessoas brancas e ricas e com um acervo produzido e representado predominantemente por pessoas brancas e ricas.
O pensamento decolonial (e não descolonial) parte de uma análise crítica do legado colonial. Partindo de uma perspectiva sociológica e filosófica, a intenção não é “desfazer o colonial ou revertê-lo, ou seja, superar o momento colonial pelo momento pós-colonial. A intenção é provocar um posicionamento contínuo de transgredir e insurgir. O decolonial implica, portanto, uma luta contínua“.
Por isso, ao ver pessoas negras de diversos tons de pele ocupando aquele espaço e afrontando o status quo é a mais pura decolonização. Isso ficou ainda mais evidente quando vemos a Beyoncé dançando em frente ao quadro A Coroação de Napoleão com suas bailarinas.
Ao som de “You ain’t on to this (no), don’t think they on to this / Você não é páreo para nós, não acho que eles sejam páreos para nós” (tradução livre), Beyoncé se sobrepõe ao “grande” colonizador Napoleão, que no quadro encomendado por ele mesmo antes de sua coroação de fato, posta-se como se estivesse coroando a si mesmo. No entanto, não percebe que está na verdade coroando a nossa rainha Beyoncé.
Ênfase às questões raciais
Como bem disse a filósofa e feminista, Djamila Ribeiro, “[…] quando pessoas negras estão reivindicando o direito a ter voz, elas estão reivindicando o direito à própria vida“. No caso de Apes**t, é o contraste pungente que fala, ou melhor, que nos grita. O que melhor simbolizaria a (r)existência do que uma mulher negra e um homem negro arrumando o seu black power, em frente ao quadro da famosa Mona(LISA)?
Trocadilhos à parte, o quadro da Mona Lisa – ou A Gioconda – é conhecido por representar o ideal de beleza feminino que se tinha à época na qual ele foi pintado, e no clipe ele é visto em segundo plano perdendo espaço para pessoas que foram pouco ou mal representadas na história e na arte, as quais resistiram e resistem às opressões dos padrões de beleza eurocêntricos, impostos até os dias de hoje.
Quando a Beyoncé se posiciona frente à estátua da Vênus de Milo (a Afrodite dos gregos) – o símbolo da beleza feminina – com uma roupa que, de certa forma, lhe dá um corpo quase que de mármore, personifica em si mesma um outro tipo de beleza possível: a beleza da mulher negra.
Apes**t causou um efeito imediato em todas nós. Parece que a Beyoncé atingiu um ponto da carreira no qual ela pode ter finalmente a liberdade de criar músicas que criticam a sociedade, sem ter medo de sofrer retaliações ou enterrar a sua carreira por isso. Beyoncé e Jay-Z utilizam seus privilégios para dar voz às mais diversas demandas do movimento negro americano, sentindo-se o movimento representado por eles ou não.
Talvez, como de certa forma vemos na letra, Apes**t é um presente, um agradecimento a todos e todas que resistiram para que hoje tivéssemos pessoas negras ocupando espaços de poder e decolonizando esses espaços. Afinal, “Have you ever seen the crowd goin’ apeshit?”