Sonhos Elétricos: os fios condutores da essência humana na obra de Philip K. Dick

Sonhos Elétricos: os fios condutores da essência humana na obra de Philip K. Dick

Philip K. Dick foi um dos autores de ficção científica mais prolíficos e aclamados do século passado, tendo parte de sua obra literária adaptada para o cinema e a televisão, como em Blade Runner: O Caçador de Androides e O Homem do Castelo Alto. O questionamento do que é de fato realidade ou ilusão é um assunto recorrente em seus escritos, e em Sonhos Elétricos, lançado este ano pela Editora Aleph, as leitoras deparam-se com diversos contos que discutem estas temáticas e também o que é ser humano.

Imagine um mundo pós-apocalíptico ou dominado por máquinas: as chances de uma pessoa perder-se em si mesma, esquecendo a própria essência, é enorme. Ao passo que todos os fatores externos colaboram para o medo das populações, seja por doenças, dominações de governos ditatoriais ou pelos próprios robôs, uma ou outra pessoa consegue despertar de determinadas situações hostis e passam a apegar-se ao que é mais vital em momentos difíceis: a esperança de uma realidade melhor.

Philip K. Dick cria mundos muito distintos, mas que aproximam-se quando comparados seus protagonistas e suas respectivas vontades. Em sua maioria, homens e mulheres precisam lutar para restabelecerem-se em meio ao caos e, de alguma forma, anseiam para não esquecerem aquilo que são em seu íntimo ou ideais que carregam há muito tempo. O amor, a nostalgia, a paz interior, o sentimento de pertencimento a um grupo, a saudade de um ente querido, dentre outras, são questões abstratas que, na obra do autor, tornam-se o centro das discussões filosóficas das personagens, pontos marcantes e importantíssimos para o enriquecer da narrativa e da própria construção psicológica delas.

Philip D. Dick
Philip D. Dick (Foto: reprodução)

Sonhos Elétricos é dividido em dez contos que abordam diversos aspectos de vidas em futuros distantes, na própria terra ou em outras dimensões, mas ainda assim facilmente comparáveis com os dias atuais. É inegável a semelhança e as comparações com a série Black Mirror e, assim como a impactante obra distribuída mundialmente pela Netflix, Sonhos Elétricos foi transformada em uma série antológica lançada pelo Channel 4 e distribuída pela Amazon Prime Video; enquanto Black Mirror expõe problemáticas envolvendo a vida humana, na maior parte do tempo motivadas por fatores externos, Sonhos Elétricos faz o caminho contrário e parte do interior das personagens para o mundo exterior.

A abordagem de Black Mirror é mais sociológica, repensando o impacto dos mecanismos sociais na vida das pessoas, ao passo que Sonhos Elétricos transita pelo viés filosófico, enxergando os sentimentos humanos de dentro para fora, desassociando-os um pouco mais do mundo palpável. A série adapta os contos de Philip K. Dick expandindo a essência de cada história, reformulando-as total ou parcialmente, como em muitas adaptações de obras do autor: livro e série completam-se ou podem ser separadamente apreciados. 

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Um ponto importantíssimo na adaptação televisiva, além da excelente escolha de atores e atrizes, como Anna Paquin, Vera Farmiga, Janelle Monáe e Rachelle Lefevre, é justamente a atenção às personagens femininas que, no livro, muitas vezes passam despercebidas ou são estereotipadas como mulheres neuróticas. A série até mesmo troca o protagonismo de muitos contos pelo feminino, tornando uma história que, no original já aborda um assunto interessante, para algo ainda mais profundo e instigante.

Até mesmo quando os homens protagonizam a história, percebemos que as mulheres presentes em cena possuem importância e têm seus próprios arcos e motivações à parte. Cada uma delas é construída de forma fidedigna, fugindo aos clichês da ficção científica, fazendo com que a representatividade esteja presente em suas personalidades, ações e falas (os diálogos da série também são formidáveis). Steve Buscemi, Bryan Cranston e Richard Madden também participam dos episódios.

1) Conto: Peça de Exposição

Episódio: Real Life (Vida Real)

Sonhos Elétricos

Em algum lugar do futuro, a história mundial é guardada e exposta em museus que reproduzem com precisão o que era costumeiro há milhares de anos, em seus mais nítidos detalhes. Um dos historiadores responsáveis por organizar os estandes das exposições vê-se surpreso quando, por algum motivo, o objeto de seu estudo é grandemente reconhecido por ele, numa espécie de déjà vu. Tanto conto quanto episódio discutem o que é realidade e imaginação. Na série, o episódio é protagonizado por Anna Paquin e Rachelle Lefevre, e aborda também a visibilidade lésbica.

2) Conto e episódio: Autofac (Autofab)

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O cenário é pós-apocalíptico: o mundo deteriorou-se há muito tempo e, com isto, as grandes fábricas passaram a reproduzir-se e tornaram-se autossuficientes, desgastando ao máximo os recursos naturais do planeta no processo. Um grupo de pessoas investiga como chegar ao cerne da Autofab para, enfim, extingui-la. Além da questão sobre preservação do meio-ambiente e consumismo abordados no livro, o episódio expande os conceitos filosóficos abordados no conto, pontuando também a questão do que, para os personagens, é sentir-se humano.

3) Conto e episódio: Human is (Humano é)

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Uma das histórias mais bonitas e reflexivas, Humano acompanha uma mulher que se encontra em um relacionamento abusivo. O marido dela, um cientista, pouco importa-se com os sentimentos da esposa, é extremamente egocêntrico e ríspido em gestos e palavras, o que faz com que a esposa torne-se cada dia mais fechada e submissa aos caprichos dele. Um dia ele parte para uma expedição em outro planeta e, ao voltar, não parece ser o mesmo homem de antes. Aqui, questiona-se o que de fato faz com que as pessoas sejam humanas, no mais puro sentido da palavra.

4) Conto: O Argumento de Venda

Episódio: Crazy Diamond (Diamante Absurdo)

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O universo tornou-se uma rota de propagandas insistentes, visando o consumismo exacerbado de seus habitantes em todos os momentos do dia: do momento em que levanta, ao que volta a dormir, os personagens são obrigados a conviver com o extinto de comprar coisas supérfluas, apenas pelo prazer inconsciente de gastar. Um homem, farto desta situação, começa a questionar seu próprio lugar em meio ao espaço em que vive, ao passo que precisa se livrar de uma inteligência artificial que possui mil e uma utilidades e que insiste em ser comprada pelo protagonista e a esposa. Mais uma vez a essência do conto é mantida no episódio, mas, neste último, a vida da inteligência artificial é aprofundada e culmina em um desfecho completamente diferente do que o livro apresenta. 

5) Conto e episódio: The Hood Maker (O Fabricante de Gorros)

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Em uma sociedade governada por um regime ditatorial, quem decide rebelar-se contra o governo é caçado. As equipes de investigação utilizam telepatas para lerem as mentes da população e descobrirem quem oferece algum risco de rebelião. Porém, uma pessoa misteriosa começa a fabricar capuzes que impedem o acesso aos pensamentos, o que gera uma grande preocupação por parte do governo. Exploração, perda de identidade e invasão de privacidade são alguns dos focos expandidos no episódio. 

6) Conto: Foster, você já morreu!

Episódio: Safe & Sound (São e Salvo)

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O questionamento principal do conto está muito presente no dia a dia de muitas pessoas: até onde uma pessoa iria para ser aceita por algum grupo em específico? E, indo além, como as grandes empresas conseguem fazer com que jovens sintam-se deslocados e passem a buscar meios de sentirem-se aceitos por colegas? A tecnologia e a constante conexão com a internet, em detrimento à própria perda de identidade, manipula e massacra os personagens deste conto. A série aborda também as questões de assédio sexual e diminuição feminina em cargos públicos.

7) Conto e episódio: The Father-Thing (A Coisa-Pai)

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Assim como em Human is, a verdadeira essência do que se é humano é questionada quando um garoto começa a notar atitudes estranhas em seu próprio pai. O episódio possui um clima de mistério e investigação como em It – A Coisa (Stephen King) e Stranger Things.

8) Conto e episódio: The Impossible Planet (O Planeta Impossível)

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Uma senhora de 350 anos decide visitar a Terra e, com o auxílio de um acompanhante robô, busca uma agência de turismos espacial. Ao descobrirem o desejo dela, os funcionários da agência decidem a muito custo levá-la para o destino incerto, uma vez que o planeta há muito se extinguira e seria impossível encontrar algum resquício dele. O conto e o episódio abordam as questões de pertencimento, nostalgia, falta de ética e moral, e é muito surpreendente em seu desfecho.

9) Conto e episódio: The Commuter (O Passageiro Habitual)

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Um bilheteiro de trem surpreende-se quando um passageiro solicita uma passagem para uma estação inexistente. Ao questioná-lo sobre a estranha estação que não está no mapa, o bilheteiro recebe como resposta do passageiro que ele desembarca nela todos os dias. Em busca de saber um pouco mais sobre o homem e a estação misteriosa, o funcionário parte em uma jornada psicológica em busca de si mesmo, sem ao menos saber que ele próprio estava perdido.

10) Conto: O Enforcado Desconhecido

Episódio: Kill All Others (Mate todos os Outros)

Sonhos Elétricos

Um homem é enforcado em uma praça e todos os moradores dos arredores parecem não notá-lo, com exceção de um homem. O conto discute a questão da falta de sensibilidade e irracionalidade humana, enquanto o episódio transporta esta atmosfera para o cenário de disputas políticas e alienação.

***

O “sonho” que aparece no título da obra é a metamorfose da esperança; sonhando, homens e mulheres conseguem vislumbrar uma realidade à qual deveriam pertencer, mas que por um motivo ou outro não se concretizará com facilidade. Sonhar, nas obras de Philip K. Dick, é a afirmação de se estar vivo em toda a sua complexidade.


Sonhos Elétricos

Philip K. Dick

Editora Aleph

236 páginas

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Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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