[LIVRO] “O primeiro homem mau” é uma divertida história sobre uma mulher que vive a vida por meio dos outros

[LIVRO] “O primeiro homem mau” é uma divertida história sobre uma mulher que vive a vida por meio dos outros

Em O Primeiro Homem Mau, Miranda July, sem dúvida, encontra a própria voz em seu romance, mas que mensagem ela passa?

A cineasta e escritora Miranda July tem uma habilidade narrativa que mistura a curiosidade, os pensamentos extrapolantes e as situações inusitadas com o cotidiano contemporâneo. Dona de uma voz peculiar, ela é mestra em criar situações ilusórias que refletem o interior de suas personagens e mistura os desejos pessoais com as impressões curiosas sobre a realidade. Em O Primeiro Homem Mau, acompanhamos a consciência e a vida de Cheryl, uma executiva sistemática e solitária, sócia de uma empresa especializada em defesa pessoal fitness: uma forma de capitalizar e tornar aeróbicos os treinamentos de luta para mulheres.

Amiga próxima do casal de sócios que também preside a empresa, Cheryl nutre uma paixão escondida por seu colega de trabalho Phillip, fantasiando a relação dos dois e tendo dificuldade para expressar seu interesse. Phillip a procura para “revelar um segredo”, o que deixa Cheryl em uma avalanche de pensamentos, juntando peças do quebra-cabeça da relação dos dois, tentando achar alguma pista de Phillip que retribua o sentimento dela. A verdade é que Phillip quer um conselho sobre o que fazer em relação à um caso que ele pretende começar com uma menina de 16 anos. Quando descobre sobre as verdadeiras intenções do colega, que nada têm a ver com o sentimento dela, Cheryl se coloca em uma posição conselheira por pressão de Phillip e começa a fantasiar a relação dele com a garota de 16 anos.

É interessante como boa parte dos desejos e fetiches de Cheryl aparecem de forma a serem guiados por Phillip: ela se transporta para o corpo dele e assim consegue o clímax em sua imaginação. Bastante sintomático da cultura pornográfica em que vivemos, em que o prazer masculino é tanto o norte, quanto a referência única de prazer que as mulheres têm. Em nenhum momento ela mesma levanta a questão de que o que ele pretende fazer tem um nome: pedofilia, e muitas vezes hipersexualiza a menina em sua imaginação.

Ao mesmo tempo, o casal de sócios começa ter problemas com a filha única Clee, e acabam precisando de Cheryl para dar abrigo à menina enquanto ela “organiza a própria vida”. Agora com uma hóspede mau educada e com cheiro de chulé ocupando seu sofá, o sistema de organização de Cheryl fica comprometido, além de ela não saber o que fazer para lidar com a jovem bagunceira que veio morar em sua casa. Clee é agressiva, desinteressada e jovem, não parece ter muito planos para o futuro e despreza as tentativas de Cheryl de estabelecer alguma proximidade.

E é em um momento de fúria de Clee que as duas começam a praticar algo próximo a uma luta ensaiada: para desafogar o mal estar, as esquetes de defesa pessoal da empresa de Cheryl entram em cena para serem performadas entre as duas. É porrada para todo lado, enquanto Clee faz o papel dos homens maus que atacam as mulheres, Cheryl usa das táticas aprendidas para se desvencilhar e vencer os golpes de Clee. É interessante pensar em duas mulheres de idades diferentes disputando no braço uma luta física, e dessa forma, Miranda desenvolve a relação das duas, que começa a tomar profundidade depois desse primeiro passo inusitado.

Em suas fantasias, Cheryl também cria a imagem de uma criança que a pertence: Kubeko Bondy é o nome do bebê que ela vê em vários bebês que encontra pela rua. Kubeko é o nome inventado que ela deu para uma criança que conheceu quando também era criança, e desde então, Cheryl leva a memória dessa conexão com ela, vendo Kubeko em outras crianças e prometendo encontrá-lo. Como uma alma antiga que a conhecesse de outras vidas e aparecesse na forma de outras crianças para dar olá.

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Então, é por meio dessas três personagens — Clee, Phillip e a ideia de Kubeko Bondy — que Cheryl experimenta sensações de desejo, amor, cumplicidade e amizade, criando cenários, vidas e imagens em que ela participa como quase uma espectadora da própria vida. Ela tem pouca agência sobre as coisas que acontecem com ela, apesar de ser uma mulher adulta acostumada a viver só. Talvez sua solidão seja uma das causas de sua personalidade introspectiva e onírica, e a dificuldade em se posicionar sobre seus próprios interesses é tanto comum entre mulheres quanto provocada por nossa cultura e educação. Sua vida se desenrola perante seus olhos e ela participa como observadora passiva, entendendo os processos das pessoas (Clee e Phillip) com mais empatia do que vê a própria história.

Mesmo com o tom agradável e com insights bastante curiosos, O Primeiro Homem Mau nos faz pensar nas histórias de tantas mulheres que mesmo sendo protagonistas, não têm o controle de sua própria narrativa. Nesse universo de Miranda July, o amor e a intimidade partem não do próprio corpo, mas da imaginação que substitui o seu próprio ser por imagens dos outros, ou sensações provocadas que se parecem bastante com a pornografia à que somos expostos diariamente. Ainda que não ofereça uma crítica consistente à esses fenômenos, o livro explora os lugares inabitados do nosso inconsciente para dar vazão às impressões de Cheryl e, assim, cria um universo divertido de situações inusitadas, de interações cômicas e amores imaginários versus os amores reais.

O Primeiro Homem Mau também é uma história sobre maternidade não-convencional. Kubeko Bondy e sua ligação com Cheryl são um tema frequente nos devaneios dessa mulher solitária, e a relação dos dois tem a oportunidade de acontecer por conta dos imprevistos da vida. No fim das contas, O Primeiro Homem Mau é um livro leve que fala de temas importantes com toques de comédia e reflexão, mas que deixa um sentimento angustiante de que as histórias das mulheres, mesmo quando contadas por elas mesmas, ainda obedecem às regras e os caminhos traçados pelas histórias dos homens.


O Primeiro Homem MauO Primeiro Homem Mau

Miranda July

Companhia das Letras

304 páginas

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Feminista Raíz
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