MOTIM: “Visibilidade nenhuma supera o prazer de fazer o que é certo” (PARTE 1)

MOTIM: “Visibilidade nenhuma supera o prazer de fazer o que é certo” (PARTE 1)

Em um ponto escondido no Centro do Rio de Janeiro, na Rua Júlia Lopes de Almeida, uma grade enferrujada de coloração bordô dá acesso a um antigo prédio comercial de três andares — o primeiro andar comporta um estabelecimento que faz manutenção e conserto de sistemas de ar-condicionado; os outros dois acomodam duas salas cada. Ao defrontar-se com uma fachada típica de construções mercatórias, tradicional e um tanto deteriorada, quem passava por ali dificilmente imaginaria, sem aviso prévio, que uma das salas desse prédio sem nome continha um espaço cultural de resistência feminista que, entre outras atividades, já foi palco para mais de 100 bandas nacionais e internacionais.

“MOTIM” significa alteração, conflito, rebelião. É também sinônimo para “estrondo” ou “ruído” — o termo foi muito bem escolhido para nomear o espaço em questão, que utiliza música (e outras manifestações artísticas-culturais) em oposição à hegemonia masculina, sob a proposta de oferecer bem-estar e segurança às mulheres que são artistas, produtoras culturais ou que só querem comparecer a um festival, oficina ou roda de conversa sem ter que lidar com o incômodo de dividir um mesmo ambiente com o homem que as agrediu.

Antes de inaugurar a casa, as amigas Amanda Flores e Letícia Lopes se conheceram pela internet e passaram a integrar o coletivo feminista interseccional Raiotagë; elas também agitavam o cenário independente do Rio de Janeiro produzindo eventos e fazendo zoada como vocalistas em suas turbulentas bandas punk, influenciadas pelos princípios do riot grrrl (Amanda, na Ostra Brains; Letícia, na Trash No Star). Desde o princípio, o propósito nunca foi fazer “arte pela arte”, mas pela justiça, pela política, pela transformação social.

MOTIM
Imagem: Facebook MOTIM/Reprodução

Em agosto de 2016, após uma explosão de denúncias de assédio e agressão contra músicos e produtores culturais da cidade, a dupla decidiu que estava na hora de criar o seu próprio espaço e não mais depender de homens para organizar eventos. “Estávamos vivenciando uma situação em que começamos a boicotar praticamente todos os lugares do Rio de Janeiro, pois a maioria dos homens daqui têm histórias nebulosas. E então nós pensamos, ‘caralho, velho, onde a gente vai tocar agora?”, explica Letícia. “Não dava para tocar na rua, porque a gente não tinha dinheiro, não tinha um gerador… nos vimos nessa situação em que as nossas produções estavam paralisadas por conta do boicote, mas a gente não queria ficar paralisada e nem deixar de boicotar. Decidimos criar um pico para agitar as produções de outras mulheres e administrar as nossas próprias produções, e foi assim que nasceu a MOTIM”.

Amanda e Letícia, que estavam desempregadas, puderam contar com a ajuda de amigas para transformar uma das duas salas do terceiro andar do prédio em um espaço cultural colorido, luminoso e decorado com pisca-piscas e, ao mesmo tempo, simples e intimista, dispondo apenas de um palco improvisado e dois alambrados, um em cada parede lateral, para montar mostras de artes visuais. “As pessoas subiam aquelas escadas arruinadas e se deparavam com a MOTIM, que era um lugar mais bonito, organizado e expressivo”, relembra Letícia. “Era muito comum ouvir comentários sobre esse contraste — essa era uma das características mais marcantes da antiga sala”.

Pouco mais de um ano depois, em abril de 2018, Amanda já não fazia mais parte da administração do espaço e Letícia passou a contar com a ajuda de parceiras da Efusiva Records, selo feminista que também é conduzido por ela. Contudo, diante de uma série de reclamações anônimas por parte da vizinhança, a equipe foi forçada a sair do local e interromper suas atividades. A MOTIM, no entanto, deixou de ser para as garotas uma fonte de renda e tornou-se uma paixão, um sonho coletivo — não à toa, Letícia persistiu em seu anseio mesmo após conseguir um emprego formal e dispondo da responsabilidade de gerenciar seus outros projetos pessoais (tais quais os já mencionados Trash No Star e Efusiva Records) e cuidar de seus três filhos (Nicolas, Elena e Pablo). Desta maneira, três meses depois, em julho, a ideia da MOTIM ressurgiu com uma nova equipe formada por mais amigas que compartilhavam desse sonho.

Agora, ela desafia a si mesma para reinaugurar e preservar a MOTIM em um novo local. Letícia garante que “a nova casa será maior, melhor e mais organizada, mas vai continuar seguindo os princípios do faça-você-mesmo”. Para que isso de aconteça, ela e sua equipe precisarão de assistência financeira e contam com a ajuda de colaboradores virtuais, que poderão ajudá-las na meta doando valores a partir de R$25,00 para um financiamento coletivo que visa cobrir, entre outras demandas, o depósito do contrato e os equipamentos de segurança e som. As doações serão retribuídas com entradas gratuitas para todos os eventos do primeiro mês da programação da nova casa e um passaporte válido por dois meses para qualquer oficina ministrada pelas administradoras, além de um pôster com a arte do evento de reinauguração. Você pode conferir um pouco da história da MOTIM e colaborar com a vakinha em:

>> Vakinha da MOTIM <<

Abaixo, a primeira parte da entrevista com a Letícia, também apelidada de Lety, sobre os valores, motivações e histórias que estão por trás da MOTIM.

Tenho percebido uma onda de fechamentos de casas de show e de espaços culturais aqui no Brasil. Gostaria que você falasse sobre isso. Você também percebe essa onda? E se sim, por que você acha que ela acontece?

Percebo essa onda, sim. Isso tem acontecido muito. Não sei quais são os motivos que levam isso a acontecer nos outros estados brasileiros, mas aqui no Rio de Janeiro tem muita ligação com a dificuldade que nós temos em manter espaços culturais abertos; isso por questões de imobiliária, aqui no Rio os aluguéis são absurdos. E acho que isso também parte da falta de incentivo do governo… os editais são muito concorridos e complicados — não é todo mundo que consegue ser contemplado por um. Além disso, tem a questão da violência, que é um fator muito forte aqui no Rio e que acaba pesando bastante. O público fica com medo de chegar. Se você não tiver conchavo com a galera da área, fica refém de tudo. A MOTIM ficava em um endereço muito escondido, no centro da cidade, e o que eu mais ouvia das pessoas era que elas tinham medo de ir nos shows.

MOTIM
Imagem: Facebook MOTIM/Reprodução
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Me fale sobre como funciona produzir no Rio de Janeiro. Existem muitas casas de show na cidade? O público comparece em peso aos shows independentes?

Aqui tem muitos lugares, tem lugar para todo tipo de gosto. Mas para a galera comparecer em peso em um evento, ele tem que ter uma banda que seja mais conhecida ou que todo mundo curta, que tenha uma rede de afeto muito grande. Aqui, nem todo mundo sai de casa para ouvir coisas novas, gente que está começando, bandas desconhecidas. Você tem que produzir um festival ou um rolêzão com três bandas, intervenção artística, flash de tatuagem… e também tem que bombar na divulgação e no boca-a-boca, porque senão fica bem complicado. Se você quiser fazer um show cheio no Rio, a galera tem que te conhecer ou a sua banda tem que ter um público formado.

A violência no Rio de Janeiro é de fato muito salientada em um contexto midiático, e esse retrato é bastante difundido por outras cidades brasileiras — inclusive por Salvador, a cidade onde vivo, que digamos que não tenha tanta moral para falar da violência de outras cidades. Mas uma imagem de violência muito forte que tenho do Rio de Janeiro está relacionada à repressão policial, algo que também é bastante acentuado em Salvador e obviamente influencia na produção cultural da cidade. Vocês já sofreram repressão policial na MOTIM?

Isso nunca aconteceu, acho que mais por conta da localização. Uma vez a polícia apareceu para saber o que era aquilo, mas nunca mais aconteceu. A MOTIM era no Centro do Rio de Janeiro, em um local onde tinha muito vendedor ambulante e distribuidora de bebidas, tinha uma comunidade ali que se comunicava e interagia. A gente também se fiscalizava muito, tomava muito cuidado para não ultrapassar o horário permitido para eventos como os nossos, tomava muito cuidado para não deixar vazar o som. Os shows da casa quase sempre acabavam antes das 22h, e nas poucas vezes que acabavam mais tarde, recebíamos reclamações de vizinhos que a gente desconhecia — quando alugamos a sala, a gente não sabia que eles existiam e só descobrimos depois, quando tentamos fazer alguns eventos durante a madrugada. Acho que se não houvesse essa autofiscalização, teríamos sim problemas com a polícia, porque o que fechou as portas da casa foi uma série de ameaças de uma vizinhança que disse que a chamaria se os eventos continuassem.

No vídeo do financiamento coletivo, você afirma que vocês foram expulsas do espaço anterior. Você pode me falar mais sobre isso? Quem expulsou vocês e por que essa expulsão aconteceu?

Ficamos naquele local por um ano e alguns meses, e sempre rolavam umas reclamações anônimas. A imobiliária entrava em contato comigo e sempre falava que a vizinhança estava reclamando do barulho, de um “cheiro estranho” ou de “gente estranha” entrando e saindo do prédio. Aí eu falava “tá bom, vamos melhorar, vamos ficar de olho nisso aí” — pedia pra galera não fumar no espaço, ficava de olho se deixavam garrafa de cerveja na área comum do prédio. Enfim, a gente sempre se comprometia a limpar tudo e a deixar tudo organizado. Mas as reclamações sempre se repetiam, e a imobiliária não parava de nos ligar, sempre num tom de “olha, falaram isso e aquilo, reclamaram disso e daquilo”. Eles nunca nos disseram quem estava de fato fazendo essas reclamações. E a gente até chegou a perguntar quem era, porque a gente queria trocar uma ideia com essa pessoa, ou com essas pessoas. Porque não tinha nada demais acontecendo na MOTIM, sabe, era só um espaço cultural… e nós tentamos fazer isso com os outros trabalhadores do prédio, porque a gente imaginava que poderia ser algum deles. Mas em abril deste ano, a coisa tomou uma proporção bizarra.

Uma outra coisa que complica produzir no Rio é a questão do horário — se você marca um evento para as 20h, por exemplo, as pessoas só chegam às 22h. E isso é todo mundo: o público, as bandas… e ter que fechar a casa às 22h já estava prejudicando muito a gente. O Rio de Janeiro só começa a ferver depois da meia-noite, na madrugada. A galera gosta de curtir a manhã, passar numa padaria e tomar café com os amigos. Então assim, para fazer um evento que começava às 16h funcionar, a gente tirava leite de pedra. Era muito difícil fechar as contas no final do mês nesse formato. E aí em abril desse ano a imobiliária me ligou e disse que não estava dando mais, que estávamos ultrapassando muito o horário. E isso era mentira, é claro. Os vizinhos disseram que iam chamar a polícia — e foi aí em que eu disse “chega”. Já era o terceiro mês que a gente tirava do próprio bolso para pagar o aluguel e as contas da casa. Então eu disse que nós entregaríamos as chaves em um mês, e a advogada da imobiliária me disse que a gente poderia sair quando quisesse — daí nós entendemos isso como um pedido muito educado para a gente meter o pé o mais rápido possível de lá, e foi o que a gente fez. E até hoje nós não sabemos quem foi de fato que fez essas reclamações, mas já estava uma coisa muito chata, sabe? Todo final de semana a gente recebia uma ligação da imobiliária, e eu sempre perguntava quem era essa pessoa, ou quem eram essas pessoas. Porque a gente fazia de tudo para manter o espaço sem complicações, limpava tudo, seguia as regras. Mas fica insustentável quando você começa a receber ameaças envolvendo a truculência da polícia.

Que merda. Eu sinto muito por tudo isso. Também é mencionado nesse vídeo que o espaço novo será melhor do que esse espaço antigo. Qual a diferença entre a antiga MOTIM e o que vocês planejam para a nova MOTIM?

Acho que a principal diferença é que a MOTIM começou comigo e com a Amanda, e no início tanto eu quanto ela estávamos desempregadas e aquilo ali era o nosso ganha-pão. Mas nós nos esbarramos em muitas dificuldades… a MOTIM só se pagava, e se pagava muito mal. Foi aí que a Amanda decidiu seguir outros caminhos. Eu tentei administrar a MOTIM com meu companheiro por uns dois meses, mas nós temos três filhos, então era bem complicado, bem pesado. Mas eu não queria deixar a MOTIM morrer, sabe, a parte mais difícil era começar, e a gente já tinha começado.

Eu voltei a ter um emprego formal e a MOTIM deixou de ser o meu ganha-pão, mas se tornou um projeto colaborativo no qual eu acredito. Então chamei umas parceiras da Efusiva, a ideia era ter uma integrante de cada banda do selo administrando o espaço. Conseguimos funcionar assim por alguns meses — eu, Hanna (Tuíra), Marcelle (Catilinárias), Nathanne (Chico de Barro) e Yuri (Drugged Doll).

Depois que a MOTIM fechou, a Larissa Conforto e a Bel Baroni vieram me procurar, dizendo que elas estavam pensando em abrir um espaço para elas. Aí a Larissa deu a ideia de, ao invés de montar um novo espaço, se juntar a nós. Depois, entraram na equipe também Fefê, Helena e Vitória. Então agora somos 10. Acho que a nova MOTIM, por ter essa equipe, vai ter uma força e uma pluralidade maior, né, temos visões totalmente diferentes. Acho que até pela pluralidade de gêneros musicais com os quais cada uma está envolvida. E ainda assim, todas essas visões são muito focadas na produção feminina. Eu estou ansiosa e empolgada, espero que role.

As reuniões de pré-produção têm sido muito boas, muito produtivas, são várias mulheres com vivências diferentes e com um sonho em comum, estou muito confiante. A gente está nessa piração total de que a nova casa vai ser melhor, porque vai [risos]. Comigo e com a Amanda foi bem menos planejado… sabe casalzinho que junta os trapos do nada? Foi meio o que a gente fez. A Amanda decorou o espaço, porque ela sacava muito de decoração, eu peguei meus instrumentos e levei. Umas três ou quatro amigas me ajudaram a comprar um P.A. e a montar um palco.

Agora, estamos pensando em uma estrutura maior e melhor, queremos oferecer o melhor para essas mulheres, queremos dar um espaço para manas maternas. A MOTIM antiga não era aconchegante nem mesmo para mim, por conta dessa questão… eu tenho filhos, e às vezes eu levava as minhas crias para um evento e não tinha um lugar para trocar uma fralda, dar uma comidinha, botar o bebê para dormir. Também pensamos em algo mais autossustentável, melhor para o meio-ambiente… e queremos colocar uma lojinha. Enfim, acho que vai ser diferente tanto no conceito quanto no espaço físico.

MOTIM
Imagem: Facebook MOTIM/Reprodução

E qual a diferença entre a MOTIM e outras casas de show cariocas e brasileiras? Para além da promessa de garantir conforto às mulheres do Rio de Janeiro, quais são as estratégias que a equipe utiliza para garantir esse conforto?

Acho que o fator principal é que na MOTIM a gente nunca relativiza uma denúncia. A gente sabe que nenhum lugar é 100% seguro, porque não sabemos do passado de todo mundo. Mas se uma menina chega na MOTIM e fala que está incomodada com a presença de um homem qualquer, ou que um artista que vai tocar no evento tem histórico de abuso, eu não vou relativizar. Nem eu, nem ninguém da administração. “Meu deus… como assim… me conta essa história… quero saber”. Não! A prioridade é o bem-estar dessas mulheres, independentemente de qualquer coisa. Já tiveram algumas situações assim na MOTIM. E quando a denúncia chega, geralmente é pela página do espaço, ou a menina me procura. E quando recebemos denúncias, a decisão é feita na hora — “não, o cara não vai tocar”.

A gente não fica pesquisando, dando uma de policial do rolê. “Me conta, me prova”. Porque em geral, é o que acontece. As pessoas relativizam, se transformam em delegadas, exigem provas, exigem testemunhas. É muito desconfortável. Já é desconfortável para a mulher tomar essa iniciativa de denunciar o cara. É um grande diferencial da casa, e é algo que eu priorizo de verdade, não é da boca pra fora. Nos preocupamos de verdade.

No nosso banheiro tinha uma plaquinha que avisava às mulheres que, se alguém as estivesse incomodando, elas poderiam procurar alguém do bar e falar sobre isso — a expulsão era automática. Antes da MOTIM, eu e a Amanda já produzíamos eventos. E a hora de procurar lugares era que começava o grande inferno, sabe? Acho que 100% dos lugares aqui do Rio são administrados por homens… quando a gente procurava um lugar para produzir um evento, era sempre o mesmo desgaste. E então nós pensamos, “cara, é urgente, a gente tem que ter um lugar nosso, onde as nossas demandas serão prioridade, onde a gente vai ter voz”. Já estava na hora.

Isso é bem legal, Letícia. Mesmo. Eu, particularmente, observo bem como as pessoas se comportam e vejo que alguns projetos que se vendem como feministas continuam dialogando com profissionais e espaços culturais que têm histórico de acusação, sob justificativas como “o boicote é ineficiente”, “vivemos em um mundo capitalista” ou “não queremos abrir mão da visibilidade que esses diálogos promovem”. É como se o machismo só fosse intolerável fora da sua bolha, fora da sua rede de amigos e contatos. Não necessariamente estou afirmando que pessoas como nós estão certas ou que projetos como esses estão errados, mas que existem múltiplas visões… escolhi boicotar tudo o que está minimamente ligado ao que abomino. Gostaria que você opinasse sobre isso.

Nossa, pode crer… sinceramente, não sei nem por onde começar, pois esse assunto também mexe muito comigo. Tinha muitos amigos homens quando entrei no cenário independente. Eu convivia com muitos homens. O feminismo foi bem importante para mim, pois eu pude enxergar muitas violências que eu sofria e que eram naturalizadas. A vida é desconstrução, acho que estamos nos desconstruindo a todo o momento.

Desde o nosso nascimento, temos contato com diversas influências externas — acho que temos que nos permitir e permitir os outros. Isso é uma dádiva, é o certo a se fazer. Ao longo dos anos, fui me distanciando naturalmente desses homens. Prefiro dormir tranquila. Visibilidade nenhuma supera o prazer de poder dormir tranquila — ter a certeza de que você fez o que é certo. Dormir bem, sem o rabo preso. E sempre que converso com outras mulheres próximas a mim, chegamos a essa conclusão; vamos muito de encontro a essas manas que preferem não boicotar, preferimos enfrentar e nos fortalecer. Eu também já defendi que precisamos transmitir nossas mensagens o máximo possível, ocupar aqueles lugares cheios de machistas sim, porque eram neles que as meninas precisavam me ouvir. Mas tem uma hora que você cansa de dar murro em ponta de faca.

Eu acredito no diálogo, acredito que as pessoas erram e que as pessoas mudam — mas para que isso aconteça, elas têm que reconhecer que erraram. E isso raramente acontece, muito menos quando você não boicota. Então, sim, eu sou a favor do boicote. Porque se não for nós por nós, ninguém será. Mas eu não deixo que isso paralise a minha produção, sabe? É perigoso quando a gente gasta toda a nossa energia boicotando, sem fazer nada para dar visibilidade a quem merece. Isso quase aconteceu comigo e com a Amanda pouco antes de abrirmos a MOTIM, pois ficamos muito perdidas após uma onda de acusações contra os produtores culturais da cidade.

Aqui no Rio ainda tem muita menina chancelando esses caras, acontece muito isso aí que você falou. “Meu amigo foi denunciado, vamos dialogar, vamos ver o que a gente pode fazer, vamos dar uma chance”. Isso é ok até certo ponto — eu não aceito, na verdade eu sou completamente contra quem fala “meu amigo foi denunciado, mas não foi bem assim”. São coisas bem diferentes. É ok ser feminista e tentar dialogar com os caras, só não é ok fingir que não viu, que não aconteceu, que foi um mal-entendido. Enfim, é isso, acredito que somos nós por nós, porque se não formos, ninguém será.

Como agir frente a casos de assédio ou violência contra a mulher dentro do cenário independente? Que estratégias você considera eficientes em situações como essas, além do boicote?

É muito difícil para mulheres que trampam com música, principalmente nesse cenário independente, porque tem muita brotheragem. Quem manda ainda são os caras. Nas casas, nos grandes festivais. Tem mana de todos os cantos do país se mobilizando contra isso. O problema é que parece que, com o tempo, as pessoas se esquecem… na verdade, elas usam muito a tática de “deixar a poeira baixar”. São um milhão de casos de denúncias que explodiram e, depois de um ano, as coisas voltaram a ser o que eram antes, os caras voltaram a tocar normalmente.

Acho que devemos focar em nossas próprias produções e focar em nosso fortalecimento, ao ponto de a gente nunca ter que precisar desses caras que mandam em tudo, sabe? E ampliar essa rede de mulheres. Não vou chamar um técnico de som otário sabendo que existe uma mina muito melhor. A ideia é pedir indicações, conhecer outras mulheres e criar uma rede de mulheres fodas. A gente está caminhando bem devagarinho, mas está caminhando. Assim, as minas se falam e sabem de tudo. Seguimos na luta, nós não vamos deixar que passem pano para esses casos.

Imagem destacada: Foto por Hanna Halm (reprodução)

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Estudante de Comunicação Social com ênfase em Jornalismo. Apaixonada por música, documentários, artes visuais, quadrinhos e publicações independentes. Fascinada por contracultura e gente maluca.
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