MOTIM: “Toda a conjuntura conspira para que as mães fiquem limitadas ao ambiente caseiro”

MOTIM: “Toda a conjuntura conspira para que as mães fiquem limitadas ao ambiente caseiro”

Essa é a segunda parte da entrevista com Letícia Lopes sobre a MOTIM, espaço de cultural de resistência feminista do Rio de Janeiro. Você pode ler a primeira parte da entrevista AQUI!

Contribua para a reabertura da MOTIM colaborando para o financiamento coletivo em:

>> Vakinha da MOTIM <<

Um recorte que percebo ser pouco discutido é a maternidade dentro do cenário independente. Você é mãe de três filhos. Que desafios você enfrenta como produtora e consumidora de produções independentes por ser mãe? Esse cenário é inclusivo para mulheres grávidas ou que têm crianças?

Eu adorei essa pergunta. Ninguém me pergunta sobre isso… muito obrigada por ter me perguntado. Tenho pensado muito sobre essas questões. Estava conversando sobre ontem com o Felipe, meu companheiro. Isso é geral — o mundo não gosta das maternas. Ponto. É foda. É foda porque a gente se vê obrigada a várias coisas; toda a conjuntura conspira para que a gente fique limitada ao ambiente de casa. O ônibus não nos acolhe, o trem não nos acolhe, os shows não nos acolhem, as estruturas dos espaços não nos acolhem. Nada é projetado para nós. No mundo todo… se o casal precisa trocar a fralda do bebê em um shopping, a mãe é quem vai trocar essa fralda, pois só tem trocador no banheiro feminino. Só você que tem que cuidar do seu filho, você é quem tem que fazer tudo. É tudo muito limitado.

Eu toquei com a Trash No Star em vários lugares, e só me lembro de ter tocado em um que era confortável para mulheres que tinham filhos. Eu fiquei louca! Eu sinto muita falta disso nos espaços culturais… estou brisando muito para fazer algo do tipo na nova MOTIM. É muito difícil. Eu sou muito privilegiada, pois o pai dos meus filhos é um companheiro que me ajuda. Na verdade, ele não é um companheiro que “me ajuda”, ele é um companheiro que está aqui, que é. E eu sei que boa parte das maternas não tem esse apoio, e é por isso que eu consigo dar atenção aos meus projetos pessoais.

Uma vez fui a uma exposição no CCBB e fui dar água para o Nicolas, meu primeiro filho, isso há 12 anos, e um segurança me expulsou da exposição porque eu “não podia dar água para o meu filho”. Foi super constrangedor. É muita resistência ser mãe e querer consumir arte ou música. Outra vez, no show do Yo La Tengo, no Circo Voador, eu, toda boba, comprei ingressos para mim, para o Felipe e para nossos filhos. Daí a gente chegou lá e o cara do Circo falou “olha, seus filhos não podem entrar aqui, mesmo com a presença dos pais”, e deu umas desculpas sobre não ter permissão, sobre Conselho Tutelar… Eu fiquei puta, frustrada! Era um show muito de boa, eu me senti invadida, injustiçada. Um cara que eu nem conheço me disse que meus filhos não poderiam assistir a um show que eu e o Felipe achávamos que poderiam. Ele queria nos dizer como nós deveríamos criar nossos filhos.

Recentemente uma amiga advogada me disse que isso não existe, não há nenhuma lei que diga esse tipo de coisa, eu poderia ter entrado com meus filhos no show do Yo La Tengo. É muito difícil. Enfim, acho que respondi: não, o cenário não é inclusivo para nós. Mas procuro muito me inspirar em outros projetos, como o Girls Rock Camp. Mandei uma inscrição para participar da edição retrasada e falei com a Flávia, “poxa, Flávia, mas como eu vou fazer para passar uma semana fora tendo três crianças em casa?”, e ela me respondeu, “amiga, vem, aqui tem um espaço para bebês, tem campistas que se inscreveram para cuidar de crianças! Podem vir, temos 30 mulheres para cuidar dos seus filhos”. E isso me inspirou muito. Me inspirou para pensar na MOTIM. Para pensar em um espaço inclusivo, e para um espaço que seja inclusivo para mim mesma também.

A MOTIM antiga era uma sala minúscula… nossa, muito obrigada por ter me perguntado sobre isso. Esse assunto está borbulhando na minha cabeça. Quero muito planejar um espaço acolhedor. Eu tô muito pilhada para fazer um cantinho em que as crianças possam desenhar, assistir um filme, nossa, vai rolar, tem que rolar! Por um lado, essa restrição de horário que a gente tinha no espaço antigo acabava beneficiando as maternas. Era um lugar que tinha muita criança, sempre tinha criança por lá. E eu quero que o novo espaço continue assim.

Que merda essa história do Yo La Tengo. Para além das questões de maternidade, que diferenças você percebe entre produzir para um público-alvo misto e produzir para um público-alvo feminino?

Bem, produzir para um público-alvo feminino é mil vezes melhor. Acho que rola mais afeto, mais carinho, é um ambiente com um convívio melhor e bem menos problemático. Em eventos mistos, nós já enfrentamos muito machismo, muito integrante de banda e técnico de som idiota.

Motim

Percebi que nenhuma garota não-branca faz parte da equipe da MOTIM. Gostaria que você se posicionasse sobre isso. Enxergue essa questão não como uma crítica ou julgamento, mas como uma reflexão que acredito ser necessária — fica difícil falar de empoderamento sem fazer esse tipo de recorte, ainda mais em uma cidade como o Rio, em que a desigualdade social e a segregação racial são tão escancaradas.

Nossa, total! Essa pergunta é importantíssima, e esse recorte é importantíssimo também. Eu administro a Efusiva Records com minhas amigas, eu, Hanna e Sofia. A Sofia é uma mulher negra e lésbica, e nós três somos periféricas. E na Efusiva, a gente está sempre de olho nesse tipo de diálogo, sempre evitando furo, evitando reforçar estruturas de opressão. A Efusiva só promove eventos na MOTIM.

Uma vez a Bertha Lutz veio tocar na MOTIM, em um festival da Efusiva, e nós aproveitamos para chamar a Bah e promover um debate chamado “Cadê as minas pretas do rolê?”. Mas então, eu penso muito nisso. Chamei a Sofia para participar da MOTIM, mas ela está muito ocupada com a faculdade. Mas ela tem bastante voz e protagoniza uma série de projetos da casa. Também chamei a Thaís, guitarrista da Tuíra, e ela não pode participar pelo mesmo motivo.

Quando comecei a planejar a MOTIM, pensei em abrir o espaço na Baixada Fluminense, porque eu e a Hanna somos da Baixada. Essa questão da mobilidade também é importante. Queremos agregar minas periféricas e, acima de tudo, minas pretas periféricas. Na reabertura da MOTIM, a gente ficou bem em dúvida se continuaria no centro da cidade ou migrava para a Baixada. Mas achamos que no centro funcionaria melhor, justamente por conta dessa questão de mobilidade urbana. Porque se a gente faz na Baixada, a gente acaba se fechando só na Baixada. Acho que é uma questão de tempo até uma mulher negra entrar na equipe, porque muitas mulheres negras estão envolvidas com os projetos do espaço. Estou bem tranquila quanto a isso, mas ao mesmo tempo tenho essa preocupação de não reproduzir sistemas hegemônicos. Isso foi uma das primeiras coisas que a gente pensou nas reuniões de reabertura da MOTIM.

Motim

Eu me lembro de quando conheci a história da Gorduratrans — os meninos da banda também são da Baixada. Eles começaram a ensaiar e a gravar em casa porque as questões de mobilidade e orçamento eram bem complicadas para eles, se não me engano. Acho que questões como essas são essenciais para se pensar em como a produção cultural se configura de modos diferentes em cidades diferentes, ou para indivíduos de classes sociais e históricos familiares diferentes. Lembrei até de ter lido uma pesquisa sobre transporte público recentemente, que foi feita com 74 metrópoles de 16 países e analisava fatores como tempo de viagem e custo da passagem em relação ao salário médio da população. E ela afirmava que, entre elas, o Rio de Janeiro tem o pior transporte público do mundo.

Nossa, eu já pensei em desistir do Rio de Janeiro um milhão de vezes. É violento, é caro, tudo é caro. Eu gastava R$20,00, R$30,00 para ir e voltar da antiga MOTIM… e isso economizando, sabe? Essa questão da mobilidade é muito complicada. E é simbólico você perceber esse tipo de fator. Porque são vários fatores que dificultam a porra toda. Eu tenho a impressão de que a cidade simplesmente não se importa, as instituições de poder não se importam. É uma cidade que constrói ilhas, e onde as classes sociais estão muito distantes umas das outras, não só na estrutura social, como também no espaço físico. É uma parada muito sufocante, que me tira muito do sério.

Vou te dar um momento para que você defenda seu projeto e divulgue sua vaquinha. Por que você acredita na MOTIM e por que é importante manter espaços como esse?

Ah, cara… a MOTIM é um sonho de infância, um sonho de princesa. Um lugar em que a gente pode produzir sem nenhum tipo de julgamento, sem nenhum tipo de cobrança, onde as mulheres podem ser protagonistas de suas vidas e de seus projetos. É um lugar em que a gente troca ideia com outras mulheres que têm os mesmos ideais e sonhos. A MOTIM ficou em atividade durante um ano e alguns meses, e parece que eu vivi 10 anos ali. Foram muitas experiências fodas. Eu e várias meninas nos fortalecemos ali. Elas descobriram e mostraram o potencial que a vida toda ouviram que não tinham, ou não podiam ter. A gente precisa continuar para dominar o mundo. É só isso que eu tenho para dizer.

Queria que você finalizasse deixando uma mensagem para homens, uma mensagem para mulheres e outra para todos que estão lendo essa entrevista.

Aos homens: nunca se cansem do processo de desconstrução. É um trabalho árduo, diário. E tudo o que os homens estão fazendo ainda é muito pouco. É uma questão de privilégio. E outra, não é só porque você tem amigas feministas que o trabalho está feito, porque não está. Reconheçam sempre tudo o que vocês representam na sociedade e repensem sobre tudo isso. Usem o privilégio que vocês têm para ajudarem quem não é privilegiada pela atual estrutura. As notícias de violência contra a mulher são diárias. Se indisponha com seu brother, aponte o que seu brother tá fazendo de errado.

Às mulheres: amor puro! Nós por nós, busquem redes de afeto com outras mulheres — essas redes podem ter um milhão de mulheres ou uma só, o importante é poder contar com alguma. Estamos vivendo em tempos muito difíceis, uma onda de conservadorismo que quer nos esmagar e esmagar o pouco do que a gente conquistou. E a gente não pode se curvar, a gente tem que continuar. Não deixem que as pessoas, a sociedade, o dia ou a rotina nos cale. Força na peruca [risos], é isso, vamos derrubar o patriarcado!

E uma mensagem para todos: em briga de marido e mulher, se mete a colher sim! A ideia de que não se mete é ultrapassada, já foi, não dá para assistir mulheres morrendo e não fazer nada. A violência está na nossa cara e é urgente, não dá para fingir que a gente não está vendo ou ouvindo isso. Eu tô puta da vida! Revoltada sobre como as pessoas não reagem com pedidos de socorro. Só a gente pode mudar isso. Denunciem violência contra a mulher. É isso.

Escrito por:

11 Textos

Estudante de Comunicação Social com ênfase em Jornalismo. Apaixonada por música, documentários, artes visuais, quadrinhos e publicações independentes. Fascinada por contracultura e gente maluca.
Veja todos os textos
Follow Me :