Objetos Cortantes: a escuridão das relações familiares e sociais

Objetos Cortantes: a escuridão das relações familiares e sociais

Adaptar uma obra de Gillian Flynn sem dúvida não é uma tarefa fácil. Suas obras são marcadas pelo suspense e suas protagonistas são dúbias e cheias de defeitos morais. Depois do sucesso da adaptação cinematográfica de Garota Exemplar, era só uma questão de tempo para que mais uma obra da autora ganhasse as telas, deixa vez para telinha com o título de Objetos Cortantes (no original: Sharp Objects), com a direção criativa de Jean-Marc Vallée (Big Little Lies) e produção executiva de Marti Noxon, a mesma produtora de Buffy: The Vampire Slayer, além de criadora das séries UnrealDietland. Objetos Cortantes foi exibido pela HBO e recebeu críticas favoráveis do público e da crítica especializada.

Com um total de oito episódios, cada episódio tem mais que cinquenta minutos de muita tensão e suspense. A história é relativamente simples. Lançado em 2006, Objetos Cortantes foi o livro de estreia de Gillian Flynn, e acompanha a volta para casa de Camille Preaker (Amy Adams), uma repórter fracassada e autodestrutiva, que forçada por seu editor retorna à sua cidade natal para investigar um assassinato e o desaparecimento de duas adolescentes.

Aviso: O texto contém spoilers da série

Relações familiares complexas

A série começa de forma lenta e calma, sem pressa ou reviravoltas. Todo o foco está em Camille. Através de flashbacks conhecemos um pouco da juventude da protagonista em Wind Gap. Ainda no primeiro episódio podemos entender um pouco de toda a relutância de Camille em voltar para sua cidade natal. A perda de sua irmã mais nova deixou marcas profundas nela, que são sentidas até hoje, e faz de seu retorno para casa uma tortura. Já no piloto o público acompanha os primeiros passos de sua investigação jornalística, além mostrar seus problemas com o alcoolismo e comportamento autodestrutivo.

Objetos Cortantes

De forma progressiva a espectadora é apresentada aos outros personagens, que serão constantes da narrativa da série. Quando o segundo corpo é encontrado, como uma espécie de gatilho, esse evento ajuda o público compreender a tensão que existe nas relações familiares da protagonista, e nesse ponto a série mostra seu propósito real acerca do tema; toda investigação e o suspense em relação ao crime e desaparecimento das meninas é um plano de fundo para os roteiristas contarem uma história de abandono, culpa e relação conturbada entre mãe e filha. Nesse sentido, o grande destaque de Objetos Cortantes fica com Amy Adams e Patricia Clarkson. As duas atrizes desempenham muito bem seus papéis, e em alguns momentos da trama conseguimos sentir todo o sentimento de frustração e amargura dessa relação entre mãe e filha.

Em uma cena bem marcante, as duas estão juntas na varanda do casarão. De longe parece uma conversa normal de mãe e filha, até que Adora (Patricia Clarkson) diz para Camille, de forma afetuosa, que nunca conseguiu amá-la, justificando que Camille é como seu pai, frio e distante.

Objetos Cortantes

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Um dos erros da adaptação de Objetos Cortantes, sem dúvida, é que nenhum momento ouvimos o lado de Adora. Por alto sabemos que ela teve uma infância marcada pelos abusos da mãe (que na série tal revelação é contada pelo padrasto de Camille) e que esse seria um dos motivos do desenvolvimento de sua síndrome da genitora tóxica e síndrome de munchausen. Mas faltou algo mais concreto que explicasse o seu comportamento com as filhas, além disso ficou mal explicado no final, se ela sabia ou não quem foi que assassinou as meninas.

Outro ponto que deixou a desejar foi toda a relação de Amma (Eliza Scanlen) com sua meia irmã. Talvez tenha sido o tempo curto da série, mas a irmandade construída pelas duas pareceu um pouco forçada, mesmo naquelas circunstâncias. Se na relação de mãe e filha, falta amor e compreensão, na relação de Camille e seu editor podemos enxergar uma verdadeira relação familiar. O editor é um tipo de psicólogo e figura paterna para protagonista. Em vários momentos fica nítido o contraste entre essa relação com a relação de omissão que o padrasto sempre nutriu com Camille.

Objetos Cortantes

Encarando a escuridão

Seja no livro ou na minissérie, existe uma demora na resolução do caso dos assassinato das meninas. Até os últimos segundos do último episódio não é revelado quem são os verdadeiros culpados. É natural que algumas espectadoras fiquem irritadas com o desfecho apresentado, pois a obra deixa muitas lacunas nesse sentido, porém foi inteiramente condizente com o final da obra original. Mas um ponto que devemos levantar foi a leniência da polícia que se mistura com a forma que a cidade e os moradores de Wind Gap foram retratados, existe algo de assustador no modo que as cidades sulistas do EUA são mostradas no cinema e na televisão.

O cenário aparentemente calmo e pacífico sempre dá lugar há uma sociedade velha, com uma organização hierárquica, racista e machista. O que foi toda aquela encenação da Guerra de Secessão, com direito a simulação de estupro como forma de resiliência feminina? Toda a podridão da cidade pode ser resumida muito bem na forma como as colegas de escola de Camille vivem, e na relação de trabalho da empregada da família da protagonista.

Objetos Cortantes

No sentido técnico, não existe nada que possamos criticar, o padrão HBO de qualidade se fez presente em cada segundo da série. As escolhas de esquadramentos e paletas de cores do Jean-Marc Vallée foram certeiras, sem contar que as diferentes músicas de aberturas se conectam com cada episódio de uma forma bem inteligente. Você encontra a trilha sonora no Spotify.

Alguns críticos chamam o momento atual de era de ouro da televisão americana, devido à quantidade de boas produções que vem sendo lançadas para a telinha. Nesse sentido estamos vivendo uma onda de obras protagonizadas por mulheres nunca vista na história da televisão americana. Objetos Cortantes possui uma pegada pesada, onírica, profunda e algumas vezes melancólica, talvez não seja uma minissérie para todo mundo, mas certamente é uma obra que todos deveriam assistir.

“Às vezes acho que a doença mora dentro de toda mulher, esperando o melhor momento para florescer. Conheci muitas mulheres doentes. Mulheres com dores crônicas, com doenças sempre em evolução. Mulheres com quadros. Os homens, claro, quebram os ossos, têm dores nas costas, passam por uma cirurgia ou duas, tiram as amídalas, inserem próteses plásticas. Mulheres são consumidas. Não surpreende, considerando apenas o volume de tráfego que o corpo de uma mulher experimenta. Absorventes internos e espéculos. Paus, dedos, vibradores e mais, tudo entre as pernas, por trás, na boca. Homens adoram colocar coisas dentro das mulheres, não?”

– Objetos Cortantes, capítulo 14, Gillian Flynn


Objetos CortantesObjetos Cortantes

Gillian Flynn

256 páginas

Editora Intrínseca

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Graduada em Ciências Sociais. Cineasta amadora. Viciada em livros, séries e K-dramas. Mediadora do Leia Mulheres de Niterói (RJ).
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