“Deus ajude essa criança” expõe à crítica de Toni Morrison ao abuso sexual e a violência racista

“Deus ajude essa criança” expõe à crítica de Toni Morrison ao abuso sexual e a violência racista

Dona do Nobel de Literatura de 2003 e escolhida como “a melhor obra da ficção americana dos últimos 25 anos” pelo The New York Times, a professora e escritora Toni Morrison produziu uma obra marcada pela crítica racial e por personagens femininas que desafiam e combatem os estereótipos. Em seu último romance Deus Ajude Essa Criança, publicado pela editora Companhia das Letras, a violência racista, tanto a real quanto a simbólica, e o risco de abuso a que crianças e mulheres estão sempre sujeitas formam o pano de fundo de uma história sobre amor, auto-amor e perda.

Lula Ann é uma garota que nasceu com a cor de pele errada. Filha de negros de pele clara, Lula Ann nasceu escura como a noite. Desde pequena sua cor foi seu fardo perante à família: o pai a abandona assim que nasce, e a mãe, por medo e racismo internalizado, passa a infância da garota evitando encostar nela. Os EUA dos anos 60, com resquícios das antigas leis segregacionistas, eram um lugar hostil às mães solo racializadas e a crianças negras em geral: ser aceita em um bairro razoavelmente seguro e misto ainda requeria uma dose de silenciamento e invisibilidade típicas da discriminação. Nesse contexto, a infância de Lula Ann é um apanhado de solidão, desprezo e racismo.

Deus ajude essa criança
Edição da Companhia das Letras

Desde muito nova, Lula Ann escutou de sua mãe que devia se manter quieta, não chamar atenção nem atrapalhar, e que a distância entre elas era uma forma da mãe “prepará-la” para as complicações raciais da vida adulta. O que a mãe de Lula Ann não contava era que os tempos mudassem: quando adulta, a pele escura da menina passa a ser vista como algo bonito e os movimentos para libertação negra nos EUA já começavam a mudar a mentalidade da população sobre as discriminações raciais. A beleza e a cor de Lula Ann passam a contar a seu favor, e ela logo se torna uma executiva bem sucedida no ramo de produtos de beleza e maquiagem. Lula Ann Bridewell se torna Ann Bride, ou simplesmente Bride, uma mulher bem-sucedida e exuberante, rica e desejada, que deixou a memória da mãe junto com a própria infância, em um passado remoto.

O romance, em toda sua extensão, expõe de que forma o abuso sexual ou a violência racista atravessa a vida de pessoas distintas, e como é absorvido de formas diferentes, mas a marca do trauma permanece no inconsciente e é acessada em momentos de crise. A própria Bride sofre com um acontecimento marcante de sua infância, e a imagem da garota negligenciada aparece tanto em sua consciência quanto passa a ser uma metáfora fantasiosa de seu estado mental. O gatilho da personagem surge quando o namorado atual rompe com ela: acostumada a ter os homens aos seus pés, Bride tem dificuldade para entender o motivo do desaparecimento repentino do novo amor. Nesse processo de busca por essa pessoa que Bride ama, um confronto verdadeiro se destrava em sua história, e ela sente no próprio corpo as mudanças que vão acontecendo ao seu redor.

Mas não é apenas a jornada de Bride que a narrativa de Toni Morrison segue, a autora monta um retalho de vozes, indo do passado e das impressões da mãe da menina ao presente de pessoas que agora fazem parte da vida dela, e nesse retalho, um constante se mostra sempre presente: o abuso infantil, a morte prematura de jovens negros, a pedofilia abafada pelo medo, e as vidas que tentam desesperadamente superar e atravessar o trauma sem que ele também destrua seu interior. É no processo de enfrentar o passado que um futuro possível pode germinar, mas nem de longe essa compreensão e a força necessária para alcançá-lo chegam com facilidade, e as personagens do romance demonstram como o caminho para superação pode vir com muitos percalços.

Deus ajude essa criança
Toni Morrison. Imagem: reprodução
Leia também:
>> [LIVROS] Voltar Para Casa: Uma história de violência, racismo, amor e redenção
>> [LIVROS] Mulheres, Raça e Classe: O que feministas brancas podem aprender com Angela Davis
>> [QUADRINHOS] Blues for Lady Day: A vida e a voz imortal de Billie Holiday

Ao passo que a personagem desconhece os motivos e a vida do homem que ama e que a deixa, a autora também expõe a jornada de Booker, que ganha voz para apresentar sua versão dos fatos e aprofundar sua história de vida, que apesar de diferente, não é menos traumatizante do que o passado de Bride. Booker consegue acessar e compreender as circunstâncias da infância de Bride, e vê nela parte de si ao mesmo tempo que continua ressentindo sua própria história e tendo dificuldade em compartilhar seu passado. É por meio da música que Booker se expressa, e nem sempre sua melodia acerta o tom nos ouvidos dos outros.

Em Deus Ajude Essa Criança, alguns mundos se desenham (o antes e o depois dos movimentos de libertação dos anos 60 e 70) e a diferença entre eles é o que torna possível uma jovem negra se tornar uma mulher respeitada e admirada socialmente. Mesmo em uma atualidade em que sua cor de pele não seja necessariamente seu fardo, o racismo persiste. A beleza foi a chave de transformação de Lula Ann em Ann Bride, mas esse artifício se mostra constantemente dúbio, uma vez que não abala as estruturas que permitiram que discriminação racial se espalhasse pelas bases da sociedade e nem garante à própria Bride proteção de injustiças futuras.

Toni Morrison cria um romance que expõe as estruturas sociais ao mesmo tempo que oferece um lampejo de esperança. A violência é clara e presente, mas há também conexões poderosas que podem ser capazes de minar o poder dessa dominação. A compreensão das forças que atuam para a opressão ou supremacia são parte de uma batalha pessoal também, e a autora é muito eficiente em demonstrar como o pessoal e o político são dois lados da mesma luta.


Deus ajude essa criançaDeus Ajude Essa Criança

Toni Morrison

Companhia das Letras

168 páginas

Se interessou pela obra? COMPRE AQUI!

A Delirium Nerd é integrante do programa de associados da Amazon. Comprando através do link acima, você ajuda a manter o site no ar, além de ganhar nossa eterna gratidão por apoiar o nosso trabalho!

Escrito por:

37 Textos

Feminista Raíz
Veja todos os textos
Follow Me :