[CINEMA] A Casa que Jack Construiu: O feminicídio justificado (crítica)

[CINEMA] A Casa que Jack Construiu: O feminicídio justificado (crítica)

O novo filme de Lars von Trier, A Casa que Jack Construiu (no original: The House That Jack Built), teve sua estreia no Brasil durante a 42° Mostra de Cinema Internacional de São Paulo. Para quem que não teve a chance de conferi-lo durante a Mostra, o filme estreará nos cinemas amanhã, 01 de novembro.

O longa, que conta em seu elenco com atrizes que já fizeram parceria com Lars Von Trier em outros trabalhos (Uma Thurman, Siobhan Fallon Hogan e Sofie Gråbøl) apresenta Matt Dillon como protagonista da história, interpretando o serial killer Jack. Bruno Ganz é Verge, uma espécie de alter ego de Jack, que escuta sua história e o guia para o inferno. 

Ambientado nos EUA dos anos 70, A Casa que Jack Construiu explora os cinco ataques que definiram e foram mais marcantes na construção e desenvolvimento de Jack como um serial killer, segundo ele mesmo. Através de uma conversa narrativa entre Jack e Verge, a espectadora conhece as motivações e interesses do primeiro, aparentemente pacato e solitário, que, num dado momento, se rende a uma provocação e acaba fazendo sua primeira vítima, interpretada por Uma Thurman. 

A Casa que Jack Construiu

Jack é um arquiteto que vive do dinheiro que recebeu de uma herança e que tem como propósito de vida a construção de uma casa. Não se trata de uma casa qualquer, mas sim de um local que reflita sua definição e entendimento sobre o que é arte. Deseja, de forma obsessiva, deixar um legado artístico para a humanidade e sensibilizar a todos com seu entendimento estético de beleza que, para ele, está diretamente ligado à dor e ao sofrimento físico. Por isso, pouco a pouco e a cada assassinato, Jack descobre como se aproximar dessa estética e finalizar sua obra prima.

Para a Psicanálise a casa representa, de um ponto de vista simbólico, a nossa psiquê. Ou seja, nosso inconsciente e consciente. Portanto, nossa mente representa aquilo que faz de nós indivíduos únicos, tanto do ponto de vista cognitivo quanto emocional, sendo um depósito de nossas experiências físicas, intelectuais e afetivas. A forma como o ser humano organiza e armazena essas experiências diz muito sobre ele, que a partir delas, estabelece conexões com o mundo e avalia as relações com o outro.

Partindo desse ponto podemos entender que Jack, quando comete seu primeiro assassinato, experimenta uma sensação única cujo sentido encontra validação nas experiências passadas gravadas em sua psiquê, sua casa simbólica. Com o passar do tempo e conforme o número de assassinatos que comete aumenta, essa casa fica pequena demais e necessita de mais espaço. Para isso, precisa estar no plano real, onde todos possam ver e saber quem é e o que pensa Jack.

Poderíamos seguir por essa linha e nos demorarmos ainda mais no entendimento sobre Jack e seu desejo egóico de “contribuir” com as artes, deixando um legado de sangue e morte. Porém, além do entendimento simbólico sobre a casa e sua importância no roteiro do filme, não poderíamos deixar de tratar aqui uma questão que salta aos olhos no filme de Lars Von Trier: o feminicídio e a capacidade da sociedade de normatizar e justificar o comportamento violento de alguns homens. E é nesse ponto que retomamos ao primeiro assassinato que Jack comete.

A Casa que Jack Construiu

[TRECHO COM SPOILER] Jack estava a caminho de algum lugar quando avista, no meio da estrada, uma mulher de quarenta e poucos anos sinalizando que parasse ao lado de um carro que parecia quebrado. Ele parece considerar ignorar a jovem senhora (Uma Thurman), mas ela praticamente se joga na frente do carro e o obriga parar. [FIM DO SPOILER]

A partir daí Lars parece provocar propositadamente, em algumas passagens, a sensação de que Jack é “levado e/ou obrigado a cometer certos crimes”, principalmente contra mulheres, uma vez que os relatos feitos por ele ao seu alter ego se referem apenas aos crimes de feminicídio. Não que ele não tenha matado homens, mas, evidentemente, em um escala muito menor.

Em várias passagens, seus crimes ocorrem quando ele perde a paciência com algumas vítimas (ora por serem retratadas como “burras ou exigentes demais”, ora por desafiarem seu ego fraco), momento em que acaba matando-as brutalmente, deixando no ar a sensação de que mereciam esse fim. Inclusive, em dado momento do filme, Verge faz uma observação a Jack sobre o fato de que todas as mulheres que ele mata são burras, acabando em um diálogo onde ele se defende dizendo que não mata somente mulheres, mas homens e crianças também.

Entretanto, fica uma sensação de que estamos diante de um misógino, cujas experiências do passado o levaram a construir sua casa à base do sofrimento e do sangue de mulheres que “mereciam” morrer. É possível também verificar durante o filme o retrato de uma sociedade que não se importa com questões de violência contra mulheres.

A Casa Que Jack Construiu

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[TRECHO COM SPOILER] Em uma passagem do longa, uma das vítimas de Jack consegue se desvencilhar de seu ataque, sai para a rua e encontra uma viatura da polícia e pede ajuda aos prantos, relatando que seu visitante está querendo matá-la. O policial, por sua vez, não parece se importar e diz para a moça voltar para a casa e se resolver com ele. Diz que ela está bêbada e não lhe dá credito. Nem preciso dizer o que aconteceu com a beja jovem, não é?! [FIM DO SPOILER]

Esse tipo de reação das autoridades e das pessoas será natural ao longo do filme, o que traz certo desconforto. Por conta dessa indiferença, Jack comete cerca de 70 assassinatos sem que ninguém suspeite dele. A dúvida paira no ar: Por que ninguém nota as atrocidades que o serial killer comete? Talvez porque vivemos em uma sociedade que não protege suas mulheres e crianças, desacreditando da capacidade de julgamento desses indivíduos e os subjugando de forma severa, partindo sempre da objetificação de sua persona e avaliando aspectos subjetivos de cada ser humano, baseados apenas numa questão estética e conduta moral.

A Casa que Jack Construiu

Por isso Jack demora a ser descoberto e consegue (pois um dos sintomas de sua psicopatia é o desejo de ser descoberto. Afinal, ele é um “artista”!) ser notado como criminoso no momento em que Verge, enfim, toma forma física e o conduz ao inferno. Tudo indica que neste lugar queimará e pagará por seus pecados.

Claro que há no filme de Lars Von Trier muitas alusões de cunho religioso, notadamente na descida de Jack ao inferno, e referências ao “Inferno de Dante”. Além de, claro, alusões aos seus filmes onde o sofrimento e a concupiscência humana são mais evidentes, tais como em “Melancolia”, de 2011, “O Anticristo”, de 2009, e “Dogville”, de 2003.

Sem dúvida, estamos frente a mais um grandioso filme de Lars von Trier, que vale ser assistido e analisado por vários vieses. Esperamos que nossa sociedade escape desse mal e se reinvente, aprendendo que mulheres e crianças são feitas da mesma matéria que os homens e que, como todos, necessitam de políticas públicas que as protejam e defendam seus direitos.

Confira o trailer:

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Mulher, mãe, profissional e devoradora de filmes. Graduada em Psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo, trabalhando com Gestão de Patrocínios e Parceiras. Geniosa por natureza e determinada por opção.
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