“O Poder”, de Naomi Alderman, reescreve a história sob o domínio feminino

“O Poder”, de Naomi Alderman, reescreve a história sob o domínio feminino

O Poder, de Naomi Alderman, é um livro polêmico. Dependendo de como ele é lido, pode ser muito mal interpretado. A resenha a seguir pode conter spoilers, então é recomendada a leitura do livro. Foi lançado aqui no Brasil com tradução de Rogério Galindo, pela editora Planeta de Livros, no selo Minotauro. 

O detalhe interessante é que, no prólogo, descobrimos que trata-se de um livro dentro de um livro: Neil, um autor, envia a cópia de seu manuscrito para Naomi, grande amiga que promete lhe dar uma opinião sincera sobre seus escritos. Neste manuscrito de Neil, que é “O Poder”, acompanhamos a descoberta de um tipo de órgão que aparece, quase que exclusivamente, em mulheres (com raríssimas exceções). Chamado de “trama”, aparece em garotas mais novas, crianças e adolescentes, e conduz um tipo de eletricidade. As garotas que já desenvolveram o poder e a trama conseguem despertar o poder de outras mulheres.

Desde o início do livro acompanhamos quatro personagens principais: Margot, Tunde, Roxy e Allie; e o livro se desenvolve separado em partes que acompanham os últimos anos antes do grande evento deste universo, chamado “cataclismo”, com capítulos de cada um desses personagens, com suas narrativas, histórias, pontos de vista – mas não em primeira pessoa.  

Nos primeiros anos do cataclismo, a população mundial decide por ignorar o que está acontecendo. E, por negligenciar o que essas mulheres sentem, acabam perdendo o controle. Não pensam em uma forma de ajudar essas mulheres, pois tudo é muito novo e ninguém tem muito controle.

Margot, uma prefeita com sede de poder, tem problemas com sua filha Jos e não tem como ajudar, pois as pessoas não sabem como lidar com essas mudanças – e percebendo isso, Margot resolve investir no projeto, nessa ideia de fazer com que as mulheres aprendam o poder que têm.

Allie, que se transforma em Mãe Eva após fugir de casa, vai ainda mais longe: toma conta de um convento e inicia sua própria jornada. Apoiada por tudo o que passou nos anos anteriores de sua vida, todos os abusos, ela funda um abrigo para essas mulheres, que se torna seu próprio exército.

Roxy é uma personagem muito interessante. Após ver a morte da mãe, sendo filha de um grande mafioso e tendo sempre sonhado em poder participar, descobre seu poder e se torna a mulher mais forte do mundo, com o maior poder e o maior controle.

Tunde, um jornalista da Nigéria, começa a reportar desde o começo das mudanças o que está acontecendo com o mundo. Tunde inicia sua narrativa com esperança, pelo olhar de um jovem que percebe que mudanças vão acontecer, mas que elas podem ser boas, até tudo começar a sair do controle.

Até o meio do livro, mais ou menos, podemos acompanhar as mudanças que a sociedade passa de uma forma interessante. Guerras e revoluções acontecem, mulheres tomam um controle que foi tomado delas por muito tempo, mulheres querem a transformação: todo o abuso sofrido por anos está sendo posto na mesa, e elas estão se vingando.

“Elas entenderam a força que tinham, todas ao mesmo tempo.”

É bastante significativo que a primeira revolta organizada tenha sido em Riad, a capital da Arábia Saudita, após duas garotas serem espancadas até a morte por praticarem seu dom. Noor, a que conversa com Tunde, conta a ele que na Arábia mulheres não podem andar de mãos dadas com homens ou dirigirem. É significativo que as mulheres descubram sua força em um lugar que retira e isola e torna negativo qualquer tipo de força feminina. Podemos pensar nesse poder, no desenvolvimento da trama, como uma alegoria ao próprio feminismo.

“É assim que funciona. As mulheres mais novas despertam aquilo nas mais velhas; mas, de agora em diante, toda mulher terá aquilo.”

Mas, se interpretado nessa perspectiva, o livro cai num problema de demonstrar o perigo dessa descoberta. Ao longo do livro as mulheres se tornam autoritárias (algumas mais que as outras), fazendo guerras, matando homens, matando mulheres que ajudem os homens.

A personagem Tatiana Moskalev, que se torna presidente de Bessapara, o primeiro país a se libertar, como a mesma diz, rapidamente se torna aquilo que os homens temem que aconteça quando as mulheres começarem a assumir cargos altos: uma mulher descontrolada, que deseja se vingar na mesma moeda de todo o sofrimento feminino, colocando homens em posições ultrajantes, criando leis que os obrigam a permanecer sob tutela feminina, em que não podem dirigir, não podem ocupar espaços sem que outras mulheres estejam presentes, não podem criar grupos somente masculinos.

É exagerado, mas o medo e a sede da liberdade e do poder faz com que as mulheres passem a agir como os homens que viveram ali. Nada muito diferente do que acontece com mulheres em alguns lugares do mundo, não é?

O Poder
A autora Naomi Alderman. Imagem: reprodução
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Os recursos que a autora utiliza para mostrar a passagem do tempo é interessante, e a internet é um ponto chave tanto para Tunde, o único homem que “protagoniza” alguns capítulos, quanto para Allie, ou a Mãe Eva, que utiliza a internet para difundir sua nova religião.

No livro há um fórum chamado UrbanDox que é responsável pela maior parte de disseminação de grupos terroristas masculinos e de ódio contra mulheres, quando estas começam sua ascensão. E em um dos capítulos de Allie vemos comentários como em um fórum, e percebemos como isso não se distancia do que conhecemos atualmente. A linguagem de baixo calão, os xingamentos, as ofensas, as teorias de conspiração, tudo é muito semelhantes aos assuntos que nós mesmas tratamos em fóruns, quando algo se torna um sucesso.

Em determinado momento as coisas se alteram de forma tão grande que é dito que os homens são menos ameaçadores e mais diplomáticos que mulheres. As coisas estão se reorganizando, a ordem hierárquica está se alterando, e tudo caminha para uma grande mudança. Quando chegamos no momento do cataclismo, onde todas as forças se unem para que aconteça a guerra inevitável, sabemos que algo de humano morreu naquelas mulheres – e elas têm o motivo daquela guerra.

Quando terminamos o livro, retornamos às trocas de carta entre Neil e Naomi, ao que descobrimos que Naomi achou o livro fantasioso demais: jamais as mulheres aceitariam ser subjugadas da forma que eram antes do cataclismo. Naomi acredita que aquilo jamais aconteceu, ao que Neil rebate que existem provas históricas de que os papéis entre homens e mulheres já foram invertidos. Naomi e Neil, então, vivem no mundo pós cataclismo, e podemos compreender um pouco sobre o que aconteceu depois do grande evento do livro: depois de toda a guerra, a história foi reescrita e as mulheres assumiram o local que hoje, no mundo real, pertenceria aos homens. Elas têm a força, eles têm o medo. Elas trabalham, eles cuidam dos filhos.

O Poder é um livro interessante, te faz querer continuar lendo, tem uma narrativa fluída e pode ser uma ótima leitura, dependendo do que você tirar dela. Existem vários caminhos de interpretação, e é importante refletir com cuidado cada uma delas.


O PoderO Poder

Naomi Alderman

Planeta Minotauro

386 páginas

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Formada em História, escreve e pesquisa sobre terror. Tem um afeto especial por filmes dos anos 1980, vampiros do século XIX e ler tomando um café quentinho.
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