O machismo é um conceito que supervaloriza as características físicas e culturais associadas ao sexo masculino, baseado na crença de que o homem é superior à mulher. Esta crença é difundida a todo momento, em toda parte, nos produtos culturais que consumimos, na educação que recebemos (familiar, escolar e religiosa) e na mídia. A mulher quase sempre é reduzida a um objeto, uma coisa funcional que existe para servir ao desejo do homem. E essa crença é difundida de maneira tão eficiente, que até mesmo as mulheres reproduzem o machismo. É a cultura do machismo, que está por toda parte. E o machismo mata. E para demonstrar como essa cultura nos envolve completamente, resolvemos lançar um olhar mais atento para um clássico dos clássicos: “Branca de Neve e os Sete Anões“, para observarmos como uma história tão singela e inofensiva, traz embutida uma coleção sem fim de estereótipos.
O CONTO
Branca de Neve é, talvez, um dos contos de fadas infantil mais famosos que conhecemos. Originário da tradição oral alemã, foi compilado pelos Irmãos Grimm e publicado pela primeira vez entre os anos de 1812 e 1822. O primeiro filme foi produzido em 1902, mas foi a partir da adaptação da Disney que a história explodiu e se tornou mundialmente conhecida.
“Branca de Neve e os Sete Anões” foi o primeiro longa-metragem de animação produzido nos Estados Unidos, o primeiro totalmente a cores, o primeiro a ser produzido por Walt Disney e o primeiro filme dos considerados Clássicos da Disney. Desde então já foram criados centenas de versões, refilmagens, adaptações, roteiros inspirados, além das toneladas e toneladas de produtos. Não há criança que não tenha tido contato em algum momento com essa história, que inaugurou a epidemia das Princesas.
E o que esse conto tão singelo tem a ver com a cultura do machismo? Tudo! Vamos nos concentrar na versão do filme da Disney, que é a mais famosa e deu base para quase tudo que veio depois – e que tem pouquíssima diferença do conto original.
O ESTEREÓTIPO DA BELEZA E JUVENTUDE
Branca de Neve é bela. É sua principal “qualidade”. Ela perde a mãe, é criada por uma madrasta com quem não se relaciona bem, mas esses eventos traumáticos são meros detalhes, diante do fato de que ela é bela e ser bela parece ser tudo o que realmente importa, tudo o que devemos saber, pois é a sua beleza o elemento catalisador do conflito que conduz a trama.
E o que é essa beleza? O que Branca de Neve é que a torna tão especial? Ela é branca como a neve. Lábios rubros como a rosa. Cabelos negros e lisos. Eurocêntrica. Notem também que Branca de Neve é magra e jovem. A madrasta é bela, mas os anos estão tirando sua vivacidade. Porque belo é a juventude. Em alguns filmes, inclusive, a madrasta se mantém bela especificamente roubando a juventude de aldeãs.
Reparem que a madrasta também é uma mulher bonita. Inclusive, em muitas versões a madrasta é interpretada por atrizes que tradicionalmente são mais famosas por sua beleza do que as respectivas protagonistas (como Charlize Theron em “Branca de Neve e o Caçador” e Julia Roberts em “Espelho, Espelho Meu”, ambos de 2012). Mesmo a menos bela, ainda é belíssima. Não existe espaço para representação de mulheres “comuns”.
A BONDADE E A MALDADE FEMININA
Branca de Neve é boa e compassiva. Sua história de orfandade e maltrato não é suficiente para abalar sua serenidade e alegria, e ela passa os dias a cantar e bailar com singelos animaizinhos da floresta, que são seus únicos amigos. Inclusive, sem denunciar para ninguém os maus-tratos da madrasta. Ela sofre, mas sofre calada, bela e sorrindo. Virtude é passividade e conformação. Isto é o que se espera da mulher bondosa.
A madrasta, por sua vez é má. Sua vilania vem da vaidade. O espelho é o seu amigo. E como ela destila essa maldade? Manipulando homens e usando sua beleza como arma. A madrasta é má porque tem consciência dos próprios atributos e os usa sedutoramente. Manipula o rei, manipula o caçador. Diferente de Branca de Neve, ela não é inocente e compassiva. Não é ingênua. A madrasta possui noção de seu poder pessoal, é ativa, implacável e insubmissa. Portanto, má.
MATERNIDADE ROMANTIZADA X AUSÊNCIA DA FIGURA PATERNA
Isso é um detalhe sutil, mas está lá. A madrasta sempre é má, em todos os contos. Porque dentro de um ideal de maternidade romantizada, só a mãe é boa. A menina sofre porque a mãe se foi. A responsabilidade dos cuidados automaticamente é transferida para a madrasta, que como já vimos explora e maltrata a enteada. O pai? Ninguém sabe, ninguém viu. Não se questiona porque Branca de Neve sofre nas mãos da madrasta e o pai permite. Aliás, para dirimir a questão, em muitas versões o Rei morre logo no início, tal sua inutilidade.
COMPETIÇÃO ENTRE MULHERES
O grande conflito da trama acontece porque a madrasta inveja a beleza e juventude de Branca de Neve. Já que não basta ser bonita, é preciso ser a mais bonita. O espelho é o melhor amigo da madrasta. É o espelho que dá o veredicto a ela que sua beleza não é o bastante. Ela é incentivada a ver outra mulher como inimiga, pois compete com ela pelo título da mais bela do reino. Tomada pela inveja, usa de qualquer artifício, inclusive ordenar o caçador para que traga o coração da inimiga na bandeja. Branca de Neve é amiga/protegida pelo caçador e se torna amiga/protegida dos anões. É salva/protegida pelo príncipe. Todos homens. Mulheres somente competem entre si por atenção, apreciação e admiração de sua beleza. E os homens sempre aparecem para salvá-las de si mesmas.
BELEZA E SUBMISSÃO COMO SALVAÇÃO
O caçador leva Branca de Neve para a floresta, e encantando com sua beleza e candura desiste de assassiná-la. Veja bem, ele não desiste porque é errado matar pessoas. Desiste porque ela é bela e pura. Mas o que ele teria feito se não fosse? Teria a mesma misericórdia? E ele tampouco retorna com a Branca de Neve ao castelo e enfrenta a Rainha. Ele apenas orienta que ela fuja para a floresta, denotando mais uma vez que coragem e honradez não são mesmo suas maiores virtudes, já que segue permitindo que uma adolescente inexperiente se vire sozinha, vagando a esmo por uma floresta.
O mesmo acontece quando ela encontra a casa dos anões. Branca de Neve desesperada e com medo, depois de enfrentar os terrores da floresta, encontra uma casa para se abrigar. Ela entra, mas não procura imediatamente comida, banho, descanso, nada disso. Ao invés de pensar em si mesma e suas necessidades imediatas, o que a incomoda, como uma jovem bem prendada, é o estado bagunçado da casa. E sua primeira iniciativa é fazer uma faxina!
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Neste momento é importante abrir um parênteses para apontar um combo absolutamente reprovável de estereótipos. Primeiro, a ideia de que é aceitável que uma casa habitada por homens pode ser suja e bagunçada, já que estes não têm obrigatoriedade e nem constrangimento por serem desleixados com seu ambiente doméstico. Segundo, a percepção de que é absolutamente normal que uma mulher desconhecida se aproprie de uma casa para limpá-la, assim que a encontra, mesmo que essa casa não seja sua, afinal, o lar é o território feminino. Em seguida, que primeiramente a mulher deve limpar tudo e só depois descansar, porque o asseio do ambiente deve ser mais importante que o seu bem-estar pessoal.
Branca de Neve pensa que os anões são crianças, mas não são. São homens adultos, trabalhadores, e que no desenho são representados de maneira absolutamente infantilizada. Homens que chegam do trabalho, encontram sua casa absolutamente limpa, organizada e uma mulher encantadora dormindo em uma das camas. Ficam encantados com sua beleza e permitem que ela fique se escondendo ali, desde que ela permaneça limpando e, obviamente, cozinhando. Mais uma vez, nenhum dos homens está sendo magnânimo ou generoso. Estão descaradamente explorando a mão-de obra de uma adolescente fugitiva, apavorada e ameaçada de morte, que não tem para onde ir e se vê obrigada a vender sua força de trabalho doméstico em troca de casa, comida e proteção, cuidando de um lar onde vivem 7 homens adultos. Branca de Neve foi aceita porque era prendada e bela. Ela era bela, recatada e do lar.
AUSÊNCIA DE CONSENTIMENTO
Branca de Neve é enganada pela madrasta e come a maçã envenenada. Morre. Os anões a acham muito bela para ter um enterro digno e deixam seu corpo morto à exposição, num caixão de cristal. Ela não é uma pessoa, é um objeto que, mesmo depois da morte, serve para ser admirado. Seu corpo fica à disposição e o príncipe chega. E então acontece a cena que deveria ser o maior absurdo de todos os tempos e ao contrário disso se torna um símbolo de romantismo: o príncipe se aproxima da desacordada Branca de Neve e, encantado com sua beleza, lhe tasca um beijo na boca. Desacordada. Beijo. Não há pedido, não há consentimento. Eles sequer se conhecem. O que há é um homem que se julga no direito de beijar uma mulher desacordada porque ela é bela. Há um homem que tudo que conhece dessa mulher é sua aparência física e isso é suficiente para que ele nomeie a atração física que sente como amor, e a beije desacordada.
Não vamos sequer entrar no mérito que, em tese, Branca de Neve está morta, e que o fetiche do príncipe por sua aparência é tamanho que ele ignora isso e beija o seu cadáver. Vamos ater ao fato simples de que não há consentimento dessa mulher para que um homem toque seu corpo. Seu corpo belo, em exposição. Exposição essa que foi definida por outros homens que fosse realizada. E então, Branca de Neve acorda do seu encantamento, literalmente pula nos braços do príncipe, sobe em seu cavalo branco e vai com ele para seu castelo ser feliz para sempre. Note que a felicidade aqui está em ser esposa de um príncipe de outro reino, sendo que Branca de Neve abre mão do seu próprio castelo, aquele que é seu de direito, que é herdeira. Ela não luta para obter seu reino de volta e se tornar rainha soberana de suas próprias terras. A felicidade está em ser escolhida, deixar tudo para trás e se tornar a esposa de alguém.
OS HOMENS DA HISTÓRIA
Todos os homens do conto são omissos ou covardes ou aproveitadores. O Rei, pai da Branca de Neve, não assume seus deveres de pai, buscando imediatamente outra “mãe” para a princesa e delegando a criação dela sem observar o que estava acontecendo, afinal, uma criança “precisa é de uma mãe”.
O caçador não mata Branca de Neve, mas é um covarde que tampouco a ajuda de fato, deixando-a à própria sorte. Os anões são homens adultos que agem como crianças, aproveitadores e incapazes de manter sua própria casa em ordem, portanto se aproveitam da força de trabalho da Branca de Neve, por quem, claramente, nutrem uma paixonite, deflagrando aí, inclusive, outra situação extremamente delicada.
Branca de Neve é entre maternal e coquete com os anões, e fica implícita uma relação de cortejamento de 7 homens adultos para com uma adolescente. O príncipe é um inútil que tem por única função admirar Branca de Neve e querê-la como esposa. Dizer que a ama é o único pré-requisito para tê-la, inclusive o autorizando a beijar o seu corpo desfalecido sem consentimento. E notem que apesar dos homens serem os verdadeiros vilões desta história, eles são vistos ou como vítimas (o Rei) ou heróis (caçador, anões, príncipe), que aparecem para salvar a princesa, que é incapaz de cuidar de si mesma.
E é esta maravilha que contamos e recontamos todos os dias para as nossas crianças, reforçando uma série de estereótipos e ideias tão problemáticas, mas tão problemáticas, que tornariam esse texto interminável se fôssemos explorar a fundo cada uma delas. E se você nunca olhou para essa história com esses olhos, se você sempre achou que era um conto inofensivo, é porque a cultura do machismo é tipo poluição atmosférica, está em toda parte. A gente inala e nem se dá conta que está ali, até entendermos que o que respiramos têm uma composição. E aí, aos poucos, conseguimos perceber que tem alguma coisa mal cheirosa no ar.