Construindo uma heroína: a saga de Natasha Romanoff nos cinemas

Construindo uma heroína: a saga de Natasha Romanoff nos cinemas

Quando Natalia Alianovna Romanova, melhor conhecida como Natasha, foi introduzida ao Marvel Cinematic Universe (MCU), sua chegada foi recebida com clamor pelos fãs de quadrinhos e das obras cinematográficas. Era a primeira mulher no mundo dos novos heróis do cinema usando um uniforme, indo para a batalha e tendo espaço onde antes apenas homens perambulavam. Natasha foi apresentada como letal, esperta, sedutora e com incrível poder de manipulação. Não era, de fato, uma heroína, mas aquele era apenas o começo de uma jornada que duraria muitos anos e a participação em diversos filmes de um universo extraído dos quadrinhos para o cinema que prosperou como nenhum outro antes o fez. Era o comecinho da sua jornada de herói.

A jornada heroica de uma anti-heroína

Natasha Romanoff
Natasha Romanoff (Viúva Negra) (Foto: Marvel Studios/divulgação)

É necessário e inevitável que o mundo dos quadrinhos e das telonas não se alinhem perfeitamente; mesmo que tal escolha seja agridoce para muitos que acompanham a leitura dos seus heróis favoritos, aconteceram muitas escolhas executivas ou criativas durante a transição que transformaram diversos personagens e histórias, tornando elas mais palatáveis ao público em geral. O mundo construído pela Marvel não é uma ode apenas aos fãs das figuras marcantes nos quadrinhos, mas a construção de todo um universo novo composto por personagens repaginados, sendo a Viúva Negra um deles.

Em sua primeira aparição, presenciamos uma Natasha (Scarlett Johansson) ainda parte da SHIELD, trabalhando como espiã no cotidiano de Tony Stark (Robert Downey Jr.), a fim de saber se ele estava apto para participar da Iniciativa Vingadores. Seus primeiros filmes são marcados por roupas coladas, falas em tons mais sedutores e uma aura de mistério envolvendo toda sua personagem. Tal caracterização vai progressivamente sendo deixada para trás, cedendo lugar para um dos principais recursos dos Vingadores, sendo a única mulher do time original. Isso vem com extrema responsabilidade, pois onde produtores homens controlam bastidores e protagonistas homens têm muito mais tempo de tela, Natasha sempre teve nos ombros o peso de fazer dar certo.

Ela “tinha” de conquistar o público para provar um ponto – um ponto que foi provado e um ponto que é injusto. Mulheres não precisam provar que levam pessoas ao cinema, pois deveria ser natural assumir que tantos consumidores de certo entretenimento não podem ser apenas de um grupo exclusivo. Mulheres fazem parte da indústria da arte e são vitais para ele, mas muitas vezes são soterradas sem chances de protagonismo. Natasha não teve nem a chance de formar amizade com outra mulher, sequer Maria Hill, na época outra única agente, que foi aparentemente esquecida em algum lugar distante da memória do MCU e reduzida a pequenas participações. É feito apenas um aceno à cumplicidade feminina quando ela divide a tela com Okoye (Danai Gurira) e Wanda (Elizabeth Olsen), em momentos-chave travado em batalhas.

A desvalorização da relevância de Natasha e de sua trajetória

O plot de Romanoff é uma coleção de promessas não cumpridas e de mistérios que não mais parecem parte do ar de incerteza envolvendo sua personagem, mas da consciente escolha em diminuir seu tempo de tela. Esperamos até hoje saber o que houve em Budapeste e o que ela quis dizer quando murmurou à Bucky (Sebastian Stan) que ele poderia ao menos a reconhecer. Não sabemos a reação de Sam (Anthony Mackie) ao seu sacrifício, não sabemos sua história, suas origens, não sabemos nem sobre o romance de estrutura desastrosa que ela compartilhou com Bruce Banner (Mark Ruffalo); algo que provavelmente foi pra melhor.

A storyline que Joss Whedon entregou para a personagem em “Era de Ultron” é perceptivelmente construída sob o olhar de um homem, um diretor que, outrora elogiado por seu incrível hit em “Buffy“, aqui tenta reproduzir sua obsessão por monstros, esquecendo que ser estéril ou não, não configura uma comparação desse tipo. E sua interpretação mais famosa é misógina e, no mínimo, para aqueles que não sentiram-se ofendidos pela premissa, bastante preguiçosa. Whedon projetou seu sonho em construir uma história da Bela e a Fera, ignorando por inteiro seus componentes.

A premissa de que uma mulher incapaz de gerar filhos talvez seja o verdadeiro monstro, foi de um nível tão tenebroso que trouxe consigo uma sólida parte dos fãs para demover o americano de seu cargo como diretor. Foi de tão mal gosto que dali em diante Natasha e Bruce viraram apenas murmúrios e olhares trocados, jamais chegando aos nossos olhos mais conteúdo sobre o suposto casal construído em cima do descaso, com todo background de ambos personagens.

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Sua melhor participação fica por conta de “Soldado Invernal“, onde protagonizou incríveis cenas de luta e foi elemento principal no decorrer e conclusão da trama. O filme também despertou atenção para excelente química que ela tinha com Steve Rogers, talvez fruto da amizade entre Scarlett e Chris Evans, talvez algo pensado antecipadamente. O fato é que funcionou, formando o que seria um dos grupinhos prediletos dentre os fãs: o trio Nat, Steve e Sam. Uma das verdades na saga cinematográfica dos Vingadores é que dentre eles existem pequenos grupos e cúmplices, naturalmente maiores aliados ou confidentes. Natasha conseguia ir de um extremo ao outro, mas seus sorrisos sempre eram maiores quando na companhia do Capitão América, Falcão (Anthony Mackie) e Gavião Arqueiro (Jeremy Renner).

Natasha Romanoff
Natasha e Steve em cena de “Capitão América 2: O Soldado Invernal” (Foto: Marvel Studios/divulgação)

Era um sentimento de amizade transmitido para a tela muito maior do que o de meros companheiros de trabalho. Foi também em “Soldado Invernal” onde vimos mais de sua competência como agente de campo, onde lhe foi dada a chance de estar em pé de igualdade com os participantes. Curiosamente, o filme desprovido de deuses, superpoderes ou grandes acessórios continua como um dos filmes prediletos dos fãs, mesmo depois de tantos anos. O fato é que Natasha é peça fundamental no sucesso dele e ali recebeu atenção tanto por sua competência quanto pela sua humanidade, formando uma verdadeira ligação com Steve.

Eventualmente, é Natasha quem consegue navegar com fluidez entre os objetivos de Steve e Tony e ligar os dois polos principais do grupo. A falta de um filme solo prejudicou sua jornada. Os irmãos Russo e o descaso em construir arcos femininos repletos de camadas prejudicaram sua narrativa. Natasha é vítima de não apenas um time de arte, mas de escolhas executivas direcionadas aos homens, mais especificamente o Homem de Ferro e o Capitão América. Normal que dois personagens polarizados e de maior renome sejam o norte emocional dos grupos, mas ignorar a evolução de sua única mulher protagonista original foi puro descaso.

O amargo sacrifício de quem pouco teve e muito já perdeu

Natasha é quem protagoniza “Vingadores: Ultimato“, não sua persona. A Viúva Negra cede espaço para a confidente de Steve Rogers, a melhor amiga de Clint Barton e a humana que, nesse cenário, não desfruta de um corpo aprimorado cientificamente ou dos poderes que a riqueza infinita pode proporcionar. Ela não é uma semideusa ou geneticamente modificada, ela é humana, uma mulher inserida num jogo perigoso repleto de homens e, posteriormente, mulheres com vantagens absurdas. Alguém cuja sagacidade, inteligência e dedicação conseguem manter a espiã no time principal dos heróis mais poderosos da Terra.

Pouco a pouco a Viúva Negra, durante os filmes que participa, vai ganhando elementos de sensibilidade essenciais para o crescimento de seu arco. Já o desejo em ver mais daquela Natasha, mais do que o retrato malfeito em “Era de Ultron”, finalmente foi atendido, mas entregue com atraso no último filme, com todos os membros originais dos Vingadores que estavam lá no primeiro grande sucesso.

Viúva Negra
Viúva Negra em “Vingadores: Guerra Infinita” (Foto: Marvel Studios/divulgação)

Durante o tempo de tela que a ex-espiã russa detém no filme estreado em abril, podemos apreciar toda sua dedicação em manter-se ocupada durante os anos seguintes ao desaparecimento de metade da força viva do planeta. Natasha não os deixa ir embora, mantendo suas memórias acesas. Em suas próprias palavras, para ela os Vingadores eram sua família, a família que ela nunca teve e que foram cruelmente retirados dela pelas mãos de Thanos (Josh Brolin).

É Natasha quem fica no quartel general dos Vingadores, mantendo o diálogo entre Nebula (Karen Gillan), Carol Danvers (Brie Larson), Okoye, Rhodey e Rocket.  É ela quem se apega ao trabalho como quem tenta se apegar ao último suspiro de sanidade. E é ela quem está ali todos os dias, dando a Scott Lang (Paul Rudd) um lugar apropriado para visitar, visto que sem seu esforço talvez o quartel estivesse abandonado. A paixão dela não para por aí, sendo outra premissa importante a de tentar recuperar seu melhor amigo e outrora parceiro de trabalho, Clint Barton.

A compaixão e empatia de Natasha 

O Gavião, afetado pela perda de sua esposa e filhos, atravessa o mundo numa jornada pessoal de eliminar grandes criminosos. Em algum lugar no meio dessa jornada, Natasha sabia que ele acabaria por perder sua humanidade, tanto quanto ela o tivera antes dos Vingadores. É Natasha quem procura por ele, luta por ele e estende sua mão para buscar o antigo amigo de volta de um caminho tortuoso. Ela o entrega esperanças e ela quem faz o sacrifício final, dando a vida em troca da joia da alma. Mas aquele momento singular não significa apenas a conquista de um dos principais acessórios na derrota de Thanos, significa um sacrifício íntimo.

Natasha o faz pela humanidade, pela volta dos que ama e em nome da perda dos que ficaram. Ela encerra um ciclo; é assim que o roteiro e os irmãos Russo nos propõem seu ato final e é assim que a memória dela deveria continuar viva. No entanto, justamente pelo tamanho e significado tão grandioso do que Natasha fez, ela merecia um momento muito mais delicado do que morrer em meio ao choque e pressa, lá pela metade do filme. Sua morte é uma das poucas reais surpresas que vieram com Ultimato, visto que, dado seu contrato para o filme solo, não se esperava que ela fosse morrer. O sentimento de choque e surpresa acabam substituindo o luto que lhe era devido.

Natasha
Natasha e Barton em “Vingadores” (Foto: Marvel Studios/divulgação)

A espectadora tem de interpretar as lágrimas de Steve e a dor de Clint para tornar a ausência dela realmente sentida pelo grupo. Sam merecia saber sobre sua morte e Fury também; o público feminino, principalmente, merecia uma despedida maior do que um choque no meio da tempestade que Thanos trouxe consigo. Mas talvez por ser um filme onde tantos eventos ocorriam ao mesmo tempo, não a tivemos. Indo além, podemos falar que sua morte pode ser assim descrita pelos diretores e acordada entre os escritores, mas o sentimento de incômodo permanece. Usar a morte de Natasha como motivador para Clint é de um recurso narrativo já visto ao cansaço.

Natasha ainda poderia fazer parte da nova fase da Marvel, onde tantas personagens femininas vem sendo inseridas, e provavelmente, com um pouco de sorte, vão tomar conta das telonas. Existiam múltiplas oportunidades, escolhas que talvez façam parte dos possíveis finais filmados, só que foi este que chegou ao corte principal: uma mulher sacrificada quando seu auge e oportunidade de tomar o centro nunca foram realmente entregues. O protagonismo ficou por conta de Steve Rogers e Tony Stark, com Thor ganhando provavelmente o terceiro lugar. Para Natasha, fica o sacrifício corrido e as lágrimas de poucos com os quais trabalhou e teve amizade por tanto tempo.  

Oportunidades perdidas em um tempo que não voltará

Viúva Negra
Nat em “Capitão América 2: O Soldado Invernal” (Foto: Marvel Studios/divulgação)

A verdade é que Natasha merecia muito mais, independente de gostos pessoais ou de achar a personagem cativante ou não. Isto não foi questionado quando Capitão América e Homem de Ferro foram escolhidos para liderar. Este argumento pode ser quebrado por toda premissa dos quadrinhos, onde ambos são opostos de liderança e ideais, mas vale lembrar que o MCU não segue os quadrinhos à risca e a fama também não pode ser uma justificativa razoável, pois foi entregue para Thor a oportunidade de protagonizar sua própria trilogia mesmo quando Chris Hemsworth não era um nome hollywoodiano de peso – e o terceiro filme aconteceu mesmo depois dos dois primeiros serem duramente criticados.

Natasha, Bruce e Clint ficaram no banco de passageiro, apesar de Scarlett Johansson e Mark Ruffalo serem nomes bem mais promissores para liderar uma franquia. No caso de Natasha, podemos apenas apontar um culpado para sua falta de universo individual: misoginia. Não de um ou outro elemento em específico, mas dos executivos responsáveis pelas decisões finais da Marvel. Nos e-mails vazados em 2015, o ex-CEO Ike Perlmutter diz que os filmes de heroínas foram desastrosos, usando como exemplo Supergirl, Catwoman e Elektra para corroborar sua desculpa.

Existia um enorme grupo de fãs da espiã russa, um interesse perceptível por suas origens no mundo cinematográfico e a oportunidade da Marvel em lançar um filme com sua única Vingadora original. Toda oportunidade foi jogada fora, claro, pois “filmes com mulheres no papel principal não conseguem lucro”.

Especulações e expectativas para (finalmente!) o filme solo da Viúva Negra

Natasha Romanoff
Natasha Romanoff em cena de “Vingadores 2: Era de Ultron” (Foto: Marvel Studios/divulgação)

Felizmente Mulher-Maravilha e Capitã Marvel apareceram, ainda que muito depois do tempo merecido, para mostrar em números que isso não passa de um fraco pretexto. O mundo não precisa apenas de heróis (brancos) e unidimensionais. Precisamos de diversidade, de identificação, e sob o ponto de vista capitalista, que é o real motor por trás das grandes empresas conectadas ao MCU, a diversidade traz lucro e é necessária. Viúva Negra foi vítima das decisões corporativas machistas que atrasaram sua hora, comprometendo o interesse popular por seu filme solo, agora que ele finalmente vai acontecer. E levando em conta seu “status” atual, podemos apenas especular sobre o que vai se desenrolar nele: será um filme de origem?

As chances são poucas, mas existem. Vai ser uma adaptação de storyline dos quadrinhos desenrolada em algum momento-chave de sua vida no passado? Veremos a volta de Natasha? Será que o Hulk conseguiu trazê-la de volta quando estalou os dedos pela vida de quem tinha ido embora? Sendo sua morte um sacrifício pela joia da alma, isso teria de ser explicado em seu filme. Ou não, pois como já vimos, existem vários “mistérios” em suas participações; mas a principal pergunta acaba sendo o quão investido emocionalmente o público estará depois de sua morte, depois de “Capitã Marvel”, “Pantera Negra” e “Thor: Ragnarok”, todos esses filmes que trouxeram elementos de diversidade não contidos nos anteriores, todos grandes na bilheteria ou na crítica.

Teria Natasha o suficiente para sustentar esse novo momentum dos filmes? Fica a esperança e torcida, visto que ela foi usada como ferramenta acessória para as histórias de Tony Stark e Steve Rogers diversas vezes, foi maltratada em “Era de Ultron”, mal apareceu em “Guerra Infinita” e teve uma morte ofuscada em “Ultimato”. Ela merece sua chance de brilhar, ainda que muito tempo depois, mas seu brilho não pode nos levar de volta a uma fase predominantemente branca e hétero.

Fica a torcida para que seu brilho seja lapidado por um time composto por mulheres e que elas saibam captar sua essência, e a faça não para agradar o público masculino, mas para enaltecer a força da personagem como quem ela é. Para que isso seja possível, existem especulações de que seu filme será o primeiro com censura de idade mais restrita. Isso seria explicado por suas origens ou métodos de trabalho, que envolvem um pouco mais de sangue e artifícios do que a censura, envolvendo crianças, poderia permitir. Se os recursos vão ser usados de modo positivo ou não, ficamos no aguardo, e que o filme venha para celebrar Natasha e as mulheres, conseguindo superar todas as dúvidas e expectativas que vemos ao redor da internet e das mídias.


Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

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Escrevo onde meu coração me leva. Apaixonada pelo poder das palavras, tentando conquistar meu espaço nesse mundo, uma frase de cada vez.
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