Hilda Hilst: potência, ousadia e transgressão

Hilda Hilst: potência, ousadia e transgressão

Após ser homenageada pelo maior festival literário do país, a Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP), Hilda Hilst (1930-2004) realizou o seu maior sonho em vida: ganhar reconhecimento e relevância nas discussões literárias brasileiras. Sua obra mudou o curso da literatura brasileira, assim como sua intensa vida.

A infância de Hilda Hilst

Hilda de Almeida Prado Hilst nasceu em 1930, em Jaú, interior de São Paulo. Seus pais, Bedecilda Vaz Cardoso e Apolônio de Almeida Prado Hilst, não eram casados oficialmente. Sua mãe, já com um filho e separada do primeiro marido, era considerada uma mulher emancipada para a época. A relação entre Hilda e o pai é muito intensa e polêmica. Poeta e vítima de transtornos mentais, Apolônio não conviveu com a filha na infância, pois ele e Bedecilda se separaram quando Hilda ainda era bebê. Essa figura de um pai perturbado, mas simultaneamente ligado à poesia e ao movimento modernista, aparece frequentemente nas obras de HH.

Bedecilda e Apolônio.
Bedecilda e Apolônio (Foto: reprodução/arquivo Hilda Hilst)

A juventude

O caso mais marcante, talvez, envolvendo o pai é quando Hilda adolescente foi visitá-lo. Ela conta que ele, fragilizado mentalmente, a confundiu com a mãe e ficou lhe pedindo “três noites de amor”. Isso aparece em vários livros dela.

Aos 18 anos, Hilda entrou na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco. Não chegou a exercer a profissão de advogada, mas, por conta da Faculdade, conheceu e se tornou grande amiga de Lygia Fagundes Telles, que também foi estudante da casa.

Lygia e Hilda na década de 50.
Lygia e Hilda na década de 50 (Imagem: reprodução/arquivo Hilda Hilst)

Essa amizade durou toda a vida (de Hilda; Lygia hoje tem 96 anos). Hilda morria de ciúmes de Lygia, principalmente com Clarice Lispector. As duas liam a obra uma da outra e se ajudavam. Hilda dizia que queria morrer de mãos dadas com Lygia.

Hilda Hilst e Lygia Fagundes Telles
As duas na Casa do Sol (Imagem: reprodução/arquivo Hilda Hilst)

Ainda estudante de direito, em 1950, aos 20 anos, Hilda lança seu primeiro livro, “Presságio“. São poemas metafísicos que impressionam a poeta já estabelecida Cecilia Meireles, que afirma: “Quem disse isso precisa dizer mais”. Até meados da década de 60, Hilda continua escrevendo poesia e lançou um livro de poemas atrás do outro, firmando sua poética como algo etéreo, metafísico, ligado às aflições da alma e da existência humana.

Hilda Hilst
Um dos poemas do livro (Imagem: reprodução)

A maturidade

Porém, na década de 60, motivada pela leitura de “Carta a El Greco”, de Nikos Kazantzakis, no qual o autor defende uma vida de isolamento próxima à terra, Hilst decide largar a vida de prazeres em São Paulo e se muda para uma chácara no interior de Campinas, a Casa do Sol, onde vive até o fim da vida. Essa mudança influencia radicalmente a sua obra, já que agora Hilda pode se dedicar integralmente à literatura, sem as distrações da cidade.

Hilda nos portões da Casa do Sol, década de 60.
Hilda nos portões da Casa do Sol, década de 60 (Imagem: reprodução/arquivo Hilda Hilst)

Dessa forma, entre 1967 e 1969, Hilda Hilst escreve oito peças de teatro, todas extremamente críticas à ditadura militar e à repressão das grandes instituições. A escrita de sua dramaturgia é feita simultaneamente à de seu primeiro livro em prosa, “Fluxo-floema“. Essa fase é importantíssima na obra, inaugurando uma estética menos etérea e mais terrena, firme no chão, aos problemas do ser humano AQUI e AGORA.

Das peças, recomendo muito a leitura de “A Empresa (A Possessa)“, que conta a história de América, uma postulante rebelde em um colégio religioso. Essa peça é interessante pois recupera alguns fatos autobiográficos de Hilda, que também se educou em um colégio religioso.

Nesse contexto, a religião é um tema recorrente na obra hilstiana, pois a busca de Deus aparece em praticamente todos os livros, Deus esse que atende por vários nomes: a Grande Face, Uma Superfície de Gelo Ancorada no Riso, O Inominável, O Incomensurável e meu preferido: Um Flamejante Sorvete de Cerejas.

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Depois da passagem pela dramaturgia, Hilda cai de cabeça na prosa. “Fluxo-floema“, lançado em 1970, é seu primeiro livro de contos, uma porrada em forma de linguagem com fluxos de consciência e uma narrativa vertiginosa. Esse livro é muito poderoso: fala das torturas da ditadura, da repressão ao pensamento livre, do ódio aos intelectuais e à palavra – tudo muito contemporâneo ainda, infelizmente.

Após passar pela dramaturgia e pela prosa, Hilda volta à poesia em 1974 com “Júbilo, memória, noviciado da paixão”, na minha humilde opinião, sua obra prima poética.

Poemas da série "Dez chamamentos ao amigo"
Poemas da série “Dez chamamentos ao amigo” (Imagem: reprodução)
Poemas da série "Dez chamamentos ao amigo"
Poemas da série “Dez chamamentos ao amigo” (Imagem: reprodução)

Nesse livro também está a série maravilhosa “Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio”. Zeca Baleiro musicou esses poemas de amor, que foram interpretados por nomes como Maria Bethânia, Zélia Duncan e Angela Roro, e ainda tem os sensacionais “Poemas aos homens do nosso tempo”; extremamente políticos, esses textos me ajudam muito a seguir hoje nesses tempos sombrios.

Em 1982, HH lança “A Obscena Senhora D“, considerada sua obra prima, um romance sobre Hillé, mulher que completa 60 anos e se refugia debaixo da escada. A escrita do livro é marcada por uma experiência terrível de um relacionamento abusivo com seu primo Wilson Hilst, 20 anos mais novo, que a ameaçou de morte com uma arma.

A rebeldia de Hilda Hilst

A partir daí, Hilda vai escrevendo tanto poesia quanto prosa, um livro mais complexo que o outro. Mas uma coisa a incomoda: o silêncio da crítica e do público. Ela reclamava sempre de não ter leitores e não conseguir vender livros. É aí que Hilda decide radicalizar: “Vocês não querem me ler porque me acham difícil, é? Então eu vou escrever pornografia a partir de agora, porque é isso que esse povo safado brasileiro gosta”.

Assim, em 1990, lança “O Caderno Rosa de Lori Lamby“, o diário de uma prostituta de 8 anos. Explícito, “O Caderno Rosa” narra com detalhes as aventuras sexuais de Lori com homens mais velhos – e o pior: ela GOSTA. Ela adora lamber e ser lambida. Óbvio que o livro choca HORRORES a família tradicional brasileira e essa entrevista resume bem o que aconteceu:

Depois de Lori, ela lança “Contos d’escárnio. Textos grotescos” (1990) e “Cartas de um sedutor” (1991), também “pornográficos”. Claro, isso causa algumas reações – ela vende alguns livros, mais do que nunca antes -, mas continua insatisfeita.

Muito desencantada pela literatura e falta de reconhecimento, Hilda vai se isolando cada vez mais. Continua, como sempre fez, recebendo amigos e artistas na Casa do Sol, mas nos últimos anos de sua vida, escreve cada vez menos. Esse documentário de 2002 mostra isso:

Em 2018, por conta da FLIP, teve sua obra como foco de discussão pública novamente. Hoje, sua obra de poesia e prosa saiu completa pela Companhia das Letras, seu teatro pela LPM e suas crônicas pela Nova Fronteira. Hilda está em todas as livrarias, esperando ganhar novos leitores. Não perca tempo: leia Hilda Hilst e te garanto que sua vida vai mudar.


Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

Poeta, pesquisadora e professora de literatura. Autora dos livros de poesia "Anticorpo" e "Poétiquase". Estuda a obra de Hilda Hilst em seu mestrado na UFMG.
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