“Graças a deus que a maioria dos casos já prescreveu“, diz o cardeal Barbarin durante uma coletiva de imprensa. O padre Preynat, seu subordinado, cometeu um monte de abusos sexuais cujas vítimas foram meninos, que, agora já adultos, começaram a se dar conta da importância de denunciar. A frase desferida pelo cardeal escancara o acobertamento da Igreja Católica aos inúmeros casos de pedofilia cometidos pelo clero.
O novo longa do diretor François Ozon, que está em cartaz em diversos cinemas no Festival Varilux, joga luz sobre esse tema tão espinhoso de forma lúcida e delicada. Adotando um tom naturalista, sem recorrer ao sensacionalismo, “Graças a Deus” segue de perto três das vítimas do padre, que já são homens de uns 40 anos, se dando conta do abuso que sofreram na infância, reconhecendo a importância de formalizar uma denúncia, e buscando apoio para resolver conflitos que o abuso os causou por toda a vida.
Cada um lida à sua maneira
Alguns deles são casados e tem filhos. Uns continuam católicos, outros se tornaram ateus. E outros sequer conseguiram seguir uma vida estável. É interessante acompanhar a vida dos três homens e notar suas perspectivas tão diferentes, que se refletem na maneira que lidam com o caso. Para juntar forças, eles acabam fundando uma associação, que os ajuda a se organizar para prestar as queixas à polícia investigativa, além de funcionar como fonte de apoio emocional.
Além do apoio uns dos outros, os homens também tem o apoio de suas famílias. Algumas mães participam ativamente da associação, as esposas, e até os filhos de um deles. O filme jamais coloca a assunção do abuso como um tabu, e é surpreendente a naturalidade com que o tema é tratado.
Um vídeo bastante elucidativo do canal do YouTube Pop Culture Detective mostra como ainda há uma grande tradição de tratar o abuso sexual como fonte de piada quando as vítimas são homens. Isso também causa um enorme sofrimento para as vítimas admitirem o abuso e buscarem justiça, já que reconhecer o caso faz esses homens serem vistos como fracos, impotentes, ou (numa falta de lógica perversa) como homossexuais, já que a imensa maioria dos estupros é cometida por outros homens.
“Graças a Deus” se preocupa em explicitamente condenar a associação da pedofilia à homossexualidade, com um personagem verbalizando isso claramente em um diálogo. Isso é um excelente ponto, que demonstra o cuidado do diretor em retratar o tema devidamente. Essa desestigmatização do assunto pode ajudar vítimas do mundo real a finamente poderem confrontar seus casos, encorajando o debate público sobre esse problema social.
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Aliás, tratar o assunto como problema social também é um dos grandes méritos do filme. A sociedade em geral é colocada como responsável, e os casos não são tratados apenas como problema individual desses homens. Tanto membros das famílias que foram omissos quanto a Igreja são responsabilizados em coletivo, embora quem tenha que responder criminalmente, obviamente, sejam o padre Preynat e o cardeal que o acobertou.
Entretanto, o longa “Graças a Deus” deixa claro que a omissão de inúmeras pessoas contribui para piorar toda a situação, desde à falta de apoio às crianças que contaram a seus pais sobre o crime na época, e foram ignoradas, quanto à Igreja que mentiu aos pais que resolveram reclamar diretamente à instituição, e não tomou nenhuma atitude quanto ao padre criminoso.
“Graças a Deus” é um filme muito importante nos tempos atuais, que consegue conectar intimamente a plateia à situação daqueles homens, reconhecendo sua dor. Os flashbacks que mostram alguns dos ataques do padre são especialmente eficazes, tanto por serem singelos e nada explícitos, o que torna os eventos estranhamente mais arrepiantes e repulsivos, quanto pela escolha do elenco mirim, que se parece muito fisicamente aos atores adultos, o que dá um ar de veracidade à trama, e contribui muito para a imersão dos espectadores na história.
Tomara que o filme continue inspirando uma nova onda de obras que abordem esse tema tão importante, e ajude o mundo como um todo a lidar e erradicar esse tipo de crime. Desestigmatizar as vítimas é um dos primeiros e mais urgentes passos.